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A importância do planejamento: uma construção dialética entre Carlos Matus e Florence Nigthingale

Capítulo IV O hospital público contemporâneo e a gestão do trabalho da enfermagem na produção da saúde

4.2. A importância do planejamento: uma construção dialética entre Carlos Matus e Florence Nigthingale

Carlos Matus foi um economista chileno, nascido em 1931, que se destacou com suas proposições e conceito de planejamento estratégico de governo, capacidade de governo,governabilidade,estilosestratégicosdegoverno,entreoutrostemas.

Florence Nightingale, nascida em 1820 na cidade de Florença, na Itália, foi considerada a precursora da enfermagem moderna e se destacou porseus conhecimentos em latim e outras línguas, matemática, estatística, artes, filosofia e religião, além de protagonizar um novo papel para mulher na conservadora sociedade vitoriana. Para Carraro(64) “era dotada de muita perspicácia e, através da educação recebida e dos conhecimentos adquiridos, desenvolveu acentuado pensamento crítico.” A mesma autora elucida algumas características dessa mulher que para alguns autores é criticada por preconizaradivisãosocialdotrabalhonaenfermagem,noentanto,

(...) para compreender quem foi Florence Nightingale, o que ela fez e os escritos que ela deixou, é necessário compreender também o mundo em que ela viveu: a Inglaterra de Dickens, a Inglaterra Vitoriana, rainha dos mares, moralista, industrial, imperiosa e progressista. Para os ricos, tanto quanto para os pobres, era uma época de ignorância médica, quando fraturar um braço ou uma perna significava perde-la. No que se refere à saúde,estavam acontecendo,em várioslocaisdomundo, descobertas que levaram a grandes avanços terapêuticos. Todavia, a leitura dos registros Hipocráticos, com a Teoria Miasmática das Doenças, exercia a maior influêncianestaárea, o quepodemos perceber nitidamentenosescritos de Florence(64).

Para Florence, planejamento e observação eram fundamentais para sua atuação e, com inteligência, colocava em prática seus conhecimentos estatísticos, sanitários, nutrição, saúde pública, administração e logística para realizar o cuidado de enfermagem aos soldadosferidosnaguerradaCriméia.(64)

Carlos Matus foi preso político no Chile e, durante seu cárcere desenvolveu seus escritos com intensa crítica ao planejamento tradicional e iniciou uma construção sobre planejamento Estratégico Situacional – PES. Azevedo(65) explica que, para Matus, o planejamento é considerado “como método de governo, como ferramenta útil, flexível e eficazparalidarcomasnecessidadesdadireçãoemcadalugardaadministraçãopública”.

BusqueidesenvolverumaanalogiaentreaessênciadoplanejamentodeMatuscomo método de governo, com foco na administração pública, com a visão de planejamento do cuidado e ambiente terapêuticode Florence Nightingale. A princípio, pode parecer quenão existe correlação clara, mas, na trajetória deste estudo, aprofundando meu interesse na gestão do trabalho em saúde e em especial na área de enfermagem, direcionou-se a atenção na fundamentação do trabalho da enfermagemvoltada para o processo de cuidar, que requer conhecimento, planejamento, coordenação, visão, cálculo, atitudes e ações de forma sistematizada, pensada criticamente, para que os resultados alcançados sejam satisfatórios para todos os indivíduos envolvido nessas ações. Tudo isso aparece com destaquenascontribuiçõesdeCarlosMatuseFlorenceNightingale.

Por isso o interesse emdestacar uma parcela de todo o contexto do PES de Matus queéo‘triângulode governo’.DeacordocomAzevedo(65),governo, emMatusse refereao comando deum processo, nãoapenas do Estado,mas tambémde umministério, sindicato ou unidade de saúde, por exemplo. Dessa forma, podemos deduzir que várias outras categoriasousegmentos,governam,seorganizamparaaação.Matusesclareceque:

[...] o planejamento é o cálculoque precede e preside a ação.É o cálculo paraadecisão asertomadahoje. Introduza noçãodequeoplanejamento está voltado para o presente, já que a única formade construir o futuro é atuar, e só é possível agir no presente. Toda ação concreta se faz no presente, para impactar o futuro desejado. Assim, a decisão sobre o que fazerhojeseráeficazounãoparaaconstruçãodofuturodesejado(65).

Nigthingale, em seu livro “Notas sobre enfermagem” (23) escreveu sobre o planejamento das açõesde enfermagem emtexto queé respeitado atéos dias atuais. Seu relato mostra que atuou, organizou experimentou, mediu, concretizoue, assim construiu as basesparaofuturo,ondeestamoshoje,quetemsuasraízesnessatrajetória,como salienta Castro:noprefáciodoreferidolivro

Assim, ela evidenciou “o que é e o que não é” enfermagem,mostrando a possibilidadeeanecessidadedeumapreparaçãoformalesistemática para aaquisiçãodeumconhecimentodenaturezadistintadaquelebuscadopelos médicos, e cujos fundamentos permitiriam manter o organismo em condições denão adoeceroude serecuperar dedoenças.Suapercepção dadoençacomoumesforçodanatureza pararestaurarasaúdemostrou-se umaidéiafecunda,dandoàenfermagemumadimensãooriginal,qualseja,a defavoreceresseprocesso reparativo,medianteo usodoar puro,daluze do calor, da limpeza do repouso e da dieta, com o mínimo dispêndio das energiasvitaisdopaciente(23).

Matus, em seus estudos sobre plano e cálculo, fala sobre a governabilidade do homem sobre as situações que precisa enfrentar como também a necessidade de fazer apostasparaprocurardominarasimprovisaçõesnecessáriasquepoderãosurgir(incertezas,

surpresas,apoiosounãodeoutrosatores),tentandoequilibrarasvariáveisquecontrolaeas quenão controlaparapodergovernar.Écomoseogovernanteprecisasseaprender ajogar, aserumestrategista(66).

Com a elaboração do triângulo de governo, Matus(66) busca sintetizar como se comporta um governante diante de uma realidade, ou seja, precisa elaborar um plano de governo, estabelecer estratégias para ter governabilidade para lidar com as variáveis controladase as não controladas e a eficácia de suagestãodependerá da sua capacidade de governo. Esclarece que esta tem um aspecto pessoal e outro institucional, entendendo que

[...]a baixacapacidadede governoafetaa governabilidade,a qualidade da propostadagestãodogoverno. As exigênciasdoprojetodegoverno põem em prova a capacidade de governo e a governabilidade do sistema. A governabilidade dosistema, porfim, impõe limites aoprojetode governoe

fazexigênciasàcapacidadedegoverno(66).

Partindo de sua base nigthigeliana e utilizando a lógica matusiana para analisar o processodetrabalhodoenfermeironaatualidadeesuaatuaçãonasinstituiçõesdesaúde,o “projetode governo”daenfermagem seriainstituído a partirdaqualificação daassistênciae do papel imperativo do enfermeiro; a governabilidade corresponderia à competência do profissional (conhecimento, habilidade, atitudes/ações), e a capacidade de governo diz respeito à efetividade das ações colocadas ‘em jogo’ (métodos de cuidado) aliado à eficiência da equipe para atingir as metas ou propósitos. Outro dispositivo que podemos agregar a esse raciocínio sobre planejamento e ação, é uma dimensão historicamente instaladanasorganizaçõeshospitalares,queéadopoder.

Organizar, planejar, articular, agir, avaliar, liderar são competências fundamentais paraaspessoas/sujeitosrealizaremumtrabalhoquepossaexercerumpoder,namedidaem que esse trabalho ocorra, de forma compartilhada e que a liderança desse trabalho seja agregadora, pró-ativa, não considerando que essa lida refere-se mais a um gerenciamento de coisas, mas simde um liderar pessoas parase conseguir sucesso.O conceitode poder aqui referidorelaciona-se com o desenvolvidopor Foulcault, em 1993epor Hannah Arendt em1994,utilizadosnosestudosdeRozendo.(67)

Considera-se neste estudo a visão de Foulcault (19) sobre o poder como algo que funciona e se exerce em rede, está atrelado auma prática social construídae que atua no corpo dos sujeitos (regulamentação, hierarquização, disciplinamento), o que, para Arendt traduz-se para o conceito de violência, utilizando-se das relações de poder existentes nos microespaços,paraexercerdominaçãoexcludente(68).

Para Arendt apud Rozendo(67) o poder existe quando a palavra e o ato não se divorciam, requerendo consenso e convicções comuns. É algo que se processa coletivamente,ouseja:

Para que ocorra o exercício do poder, as pessoas precisam estar conscientes de sua participação efetiva nos processos em que estão envolvidos, necessitam não apenas apoiar e estar de acordo com as decisões que devam ser tomadas, mas necessitam empenhar-se para agirem juntamentecom as outras pessoas, expondo seus pontos devista, comunicando-se, fazendo-se valer de sua condição humana de ser plural, político, comunicativo, de ser que não apenas faz, mas age em comunhão com outros seres em igual condiçãoe cujaação nãoestá orientada parao própriosucesso.(67)

Outroaspectoimportanteno campodasaúdeéo processodetrabalhonalógicadas profissões,umadasformasdecoordenarasaçõesnagestãohospitalar. Cunha(56) baseado em CecílioeMerhy explicaqueserefere aumtipodecoordenaçãopautadanasdiferentes categorias profissionais (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e demais), mais enfaticamente entremédicos e enfermeiros, cuja proximidade de ações provocam tensões, porém,deve-sebuscarmecanismosquefacilitem esseprocesso.

Cecílio explica que “quando se propõe a fazer mudanças ou transformações nas organizações, pode ocorrer instabilidades, pois tais mudanças poderão ser interpretadas comoameaçasaoesquemadepoderjáinstituído.”(69)eesclareceque:

[...] no tradicional modo de se fazer a gestão em hospitais, os médicos gozam dealtograu deautonomia, não estandosubmetidos a praticamente nenhummecanismodecontrole[...].Nocorpodeenfermagem,essaslinhas depoder são maismarcadas quando seolha nalinha verticalde comando que vai da enfermeira à auxiliar de enfermagem, mas são menos nítidas quandoseolha a relação entreas enfermeirase destas com osmédicose direçãodohospital[...].

O que se quer evidenciar é que, com modelos de gestão mais democráticos, descentralizados, maisparticipativos,valorizandoaautonomiadosprofissionais pormeiode seusconhecimentos, épossíveltransformar asrelaçõese adistribuição depoder;tendo um espaço de gestão mais claro, mais coerente com o modo de trabalho em equipe em que todosestãovoltadosparaamesmafinalidade:prestarassistênciacomqualidade.

Cecílio e Mendes(70) baseados em Moreira destacam as três dimensões de poder nas organizações hospitalares e estas apresentam certa correlação com o Planejamento Estratégicode CarlosMatos eo pensamentode FlorenceNigthingale, conforme jáexposto.

Aprimeiradimensãoestárelacionadaàestrutura,contratos,normas,arranjoshierarquizados de autoridadeeatua paraquehaja umaorganizaçãoformale decontrole dosprocessosde trabalho. A segunda dimensão diz respeito à regulação do trabalho das corporações, do ‘como fazer’, o limite das ações,fluxo e disciplinamento do paciente, disciplinarização dos atoshospitalares,registros, normasinternas,certificação entreoutras.Aterceiradimensãoé maisvoltadaaopoderdedecisão,deformacoletiva,participativaecoerentecomopropósito daorganização.

As três dimensões contribuem para o entendimento dos processos de gestão do trabalhoemsaúde,constituindo-secomo“modosde sefazer agestãoqueseorientampara aconstruçãodeumnovopacto ético-políticono hospital,quetenha comoreferência eponto departidasempre,omundodotrabalhoeasrelaçõesreaisqueseestabelecemseusatores entresiecomosusuários” (70)

Ressaltoaimportânciadoagirdemodoestratégiconasváriasdimensõesdotrabalho do enfermeiro na gestão hospitalar e na organização do trabalho da enfermagem. Exemplificando, se atuar predominantemente na dimensão normativa/disciplinar desenvolverá uma gestão predominantemente autocrática. O foco na dimensão regulatória torna seu trabalho concentrado na definição e cumprimento de metas, enquanto que concentrar sua atuação na dimensão do consenso, poderá contribuir para a instituição de umagestãointegradora,interdisciplinareemancipatória,mascomsériosriscosdeseportar, emmuitosmomentos,simplesmentecomoumrepresentantedosinteressesdacorporação.

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