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PARTE III – OPERACIONALIZAÇÃO DO ESTUDO E ANÁLISE DOS DADOS

CAPÍTULO 6 ASPECTOS METODOLÓGICOS E CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO

6.2 A técnica de entrevista como instrumento de coleta de dados

A escolha da entrevista em profundidade, como técnica para a coleta de dados, deve-se ao fato de se considerar ser este o instrumento que melhor ajuda a compreender a realidade a estudar. Constitui-se numa técnica que explora um assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências de informantes para analisá-las e apresentá-las de forma estruturada. Entre as principais qualidades dessa abordagem está a flexibilidade de permitir ao informante definir os termos da resposta e, ao entrevistador, ajustar livremente as perguntas. Este tipo de entrevista procura intensidade nas respostas, e não está preocupada com representação estatística.

Efetivamente, a entrevista permite recolher informação em profundidade sobre as perspectivas dos indivíduos acerca do objeto de estudo. Tal técnica é particularmente útil quando se quer adquirir uma compreensão detalhada de determinado fenômeno ou realidade, ou para verificar um domínio de investigação que já se conhece, mas sobre o qual se deseja saber que fatores terão eventualmente evoluído ou sofrido alterações (KVALE, 1996; LEGARD, KEEGAN e WARD, 2003; MINAYO, 1999; RITCHIE, 2003; RUQUOY, 1997). Esta foi a razão central que levou à opção desta técnica de coleta de dados, tendo a opção recaído mais especificamente na entrevista semiestruturada, com questões abertas.

Nesta modalidade de entrevista, o entrevistador conhece todos os temas sobre os quais tem de obter informações por parte do entrevistado, porém, nada impede que novas categorias emirjam durante o processo, mas a ordem e a forma como os coloca são deixadas ao seu critério. Neste tipo de entrevista, o indivíduo é convidado a responder de forma exaustiva, pelas suas próprias palavras e com o seu próprio quadro de referência, a uma questão geral ou várias questões subordinadas a um tema (LEGARD, KEEGAN e WARD, 2003; MINAYO, 1999). O(a) investigador(a) possui, portanto, um quadro de referência anterior que só utiliza se o indivíduo não abordar espontaneamente um dos temas que o entrevistador conhece e pretende explorar.

As entrevistas semiestruturadas com questões abertas, segundo Minayo (1999), são mais indicadas quando se persegue: (a) descrição de casos individuais; (b) compreensão das especificidades culturais mais profundas dos grupos identitários; e (c) a comparabilidade de diversos casos. De acordo com a autora, o que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informações para as ciências sociais é a possibilidade de a fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo tempo ter a magia de transmitir, por meio de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, socioeconômicas e sociais específicas.

Através da comunicação verbal – que é inseparável de outras formas de comunicação – as pessoas refletem e refratam conflitos e contradições próprios do sistema de dominação, onde a resistência está dialeticamente relacionada com a submissão. (MINAYO, 1999: 110).

Preocupado com a teoria da prática de pesquisa, Bourdieu (apud MINAYO, 1999) contribui com algumas pistas, em resposta a uma indagação frequente na pesquisa social, particularmente nas entrevistas semiestruturadas e não estruturadas: em que sentido a fala de um é representativa da fala de muitos? Suas reflexões se referem à interação informal na situação de observação e à relação formal que se dá na entrevista. Segundo o autor, a identidade de condições de existência, tende a reproduzir sistemas de disposições semelhantes, por meio de uma harmonização objetiva de práticas e obras:

Todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe são produto de condições objetivas idênticas. Daí a possibilidade de se exercer na análise da prática social, o efeito de universalização e de particularização, na medida em que eles se homogeneízam, distinguindo- se dos outros. (BOURDIEU, 1973 apud MINAYO, 1999: 111)

Teorizando sobre a prática da pesquisa de campo, Bourdieu afirma que as condutas ordinárias da vida se prestam a uma decifração ainda que pareçam automáticas e impessoais. Elas são significantes, mesmo sem a intenção de significar, e exprimem uma realidade objetiva que

“exige a reativação da intenção vivida daqueles que as cumprem” (BOURDIEU, 1983: 71).

Insiste Bourdieu:

Cada agente, quer ele saiba ou não, quer ele queira ou não, é produtor e reprodutor de sentido objetivo: porque suas ações e suas obras são o produto de um modus operandi do qual ele não é produtor e do qual não tem o domínio consciente, encerram uma “intenção objetiva”, como diz a escolástica, que ultrapassa sempre suas intenções conscientes. (BOURDIEU, 1983: 72).

A ideias de Bourdieu fazem parte do debate sobre a questão da representatividade na pesquisa qualitativa e, baseiam-se no esquema teórico do que denomina habitus, que acaba incorporado no inconsciente dos agentes e se manifesta por meio da linguagem e das práticas. Nas

palavras do autor, “o inconsciente da história que a história produz, incorporando as estruturas

objetivas que ele produz nesta quase natureza que é o habitus” (BOURDIEU, 1983: 74).

Minayo (1999:112) menciona que o habitus funciona como uma “lei imanente”, depositada

em cada ator social desde a primeira infância, a partir de seu lugar na estrutura social e se manifesta no discurso. Dessa forma, poder-se-ia inferir que a fala dos agentes pertencentes ao mesmo grupo social acabaria por representar o habitus daquele grupo como um todo, pois

É porque elas [as práticas] são o produto de disposições objetivamente concertadas, por constituírem a interiorização das mesmas estruturas objetivas, que as práticas dos membros de um mesmo grupo ou numa sociedade diferenciada, de uma mesma classe, são dotadas de um sentido objetivo e ao mesmo tempo unitário e sistemático, transcendo às intenções subjetivas e aos projetos conscientes, individuais ou coletivos (BOURDIEU, 1983: 74).

Minayo (1999) sublinha que o comportamento social e individual obedece a modelos culturais interiorizados, ainda que de forma conflitante. Minayo (1999), citando Goldmann, aponta que a consciência coletiva (de classe) só existe nas consciências individuais, embora não seja a soma delas; e, citando Lukács, menciona que nas consciências individuais se expressa a consciência coletiva, pois o pensamento individual se integra no conjunto da vida social pela análise da função histórica das classes sociais.

As citadas reflexões respondem à questão da representatividade qualitativa do indivíduo em relação à sociedade e conduzem a outras perguntas: em que condições esses indivíduos

representam o grupo e, em que medida o indivíduo fala por si mesmo?Noutras palavras, os indivíduos são aleatoriamente intercambiáveis?

As respostas seriam sim e não, respectivamente. Porque ao mesmo tempo em que os modelos culturais interiorizados são revelados numa entrevista, eles refletem o caráter histórico e específico das relações sociais. Desta forma, os depoimentos tem que ser colocados num contexto de classe, mas também de pertinência a uma geração, ao gênero, a filiações diferenciadas etc. E porque cada ator social se caracteriza por sua participação, no seu tempo histórico, num certo número de grupos sociais, informa sobre uma subcultura que lhe é específica e tem relações diferenciadas com a cultura dominante.

Assim, as relações interpessoais numa pesquisa, nunca são apenas relações de indivíduos. Elas refletem e são refletidas na posição presente e passada, na estrutura social que os indivíduos trazem consigo na forma de habitus em todo o tempo e lugar, que marca a relação. A grande vantagem da entrevista semiestruturada é que ela combina estrutura com flexibilidade (MINAYO, 1999). O(a) investigador(a) possui uma noção dos temas que pretende explorar, e a entrevista é conduzida com a ajuda de um roteiro que inclui as questões, ou os assuntos, a serem abordados ao longo da entrevista. Outra característica importante da entrevista em profundidade prende-se com seu caráter interativo: o(a) investigador(a) propõe uma questão inicial sobre determinado tema e encoraja, em seguida, o entrevistado a explanar o seu ponto de vista sobre o assunto. Frequentemente, a questão seguinte pode ser dependente da resposta dada pelo entrevistado à questão anterior. Portanto, os dados recolhidos durante a situação de entrevista resultam da interação que se estabelece entre entrevistador e entrevistado.

Por fim, Kvale (2006) sublinha a necessidade de se perspectivar a entrevista não como um situação de interação social, caracterizada pela neutralidade, mas como uma situação social onde se verifica uma distribuição assimétrica de poder. Quando mal usada, essa assimetria resulta num ato manipulativo, destinado a servir, exclusivamente, os interesses da parte detentora de mais poder nessa interação. Nesta medida, o entrevistador não pode perder de vista os objetivos que norteiam a sua investigação, devendo ser capaz de estabelecer padrões éticos e morais em relação à sua atuação na situação de entrevista e à utilização posterior dos dados que recolhe.

Nesta investigação, as questões constituintes do roteiro da entrevista, que se encontra em

anexo, foram elaboradas tendo por base a revisão da literatura realizada sobre o tema de

investigação. O roteiro está dividido em duas partes. Na primeira parte, são coletadas informações de natureza biográfica e sociodemográfica sobre a entrevistada. Esta fase é

usualmente concebida como a fase de se “quebrar o gelo” e de ser estabelecida uma relação

de confiança que permitisse a escuta ativa, ao mesmo tempo em que a entrevistada se sentia à vontade para desenvolver sua livre narrativa. A segunda parte do roteiro refere-se às questões de maior interesse para o estudo e estão agrupadas em quatro blocos: trajetória profissional;

balanço vida pessoal – vida profissional; dimensão corporativa; e perspectivas futuras.

Convém acrescentar que o roteiro concebido para este estudo foi utilizado de forma bastante flexível, tendo como objetivo permitir que as questões fossem abordadas numa ordem não predefinida, tendo em conta o interesse dos próprios entrevistados por cada um dos temas (ou permitindo a exploração de temas que emergem e que não estão previamente contemplados). Nesta medida, o roteiro não é utilizado como um questionário, mas, sim, como um sumário, ao qual se recorre respeitando o mais possível a ordem de exposição do pensamento do entrevistado. O procedimento seguido corresponde à lógica da entrevista semiestruturada que é a de explorar livremente o pensamento do outro, permanecendo ao mesmo tempo no quadro do objeto de estudo (MINAYO, 1999).

Neste estudo empírico, a coleta de dados durou quatro meses, estendendo-se de março de 2012 (período em que foram realizadas as entrevistas exploratórias) a junho de 2012 e ficou restrita à cidade do Rio de Janeiro.

Foram entrevistadas 18 mulheres, todas pertencentes ao alto escalão das organizações, cuja caracterização será feita na seção 6.3. É importante ressaltar que uma característica comum a este grupo repousava na dificuldade de conciliar suas agendas de trabalho para a realização das entrevistas, o que levou a algumas remarcações de horário e, também, à necessidade de ouvir ex-executivas que, por óbvias razões, eram de mais fácil acesso.

As entrevistas foram feitas individual e pessoalmente no local de trabalho, na residência ou em outro local como um restaurante, um café. O processo de coleta de dados foi encerrado na 18ª profissional, pois foi considerado que nesse ponto já ocorria saturação dos dados. Ruquoy (1997) sublinha que quando o investimento necessário para interrogar uma pessoa é demasiadamente elevado, comparado com o suplemento de informações recolhidas, torna-se mais útil terminar as entrevistas, uma vez que o investimento para sua realização passa a ser

decrescente. Bauer e Gaskell (2002) reafirmam a utilização da saturação na medida em que o aumento do volume de entrevistas não implica necessariamente em uma melhora na qualidade, ou mesmo levam a uma compreensão mais detalhada do fato pesquisado, e consideram a faixa para a composição do tamanho da amostra entre 15 e 25 entrevistas individuais como um bom ponto para análise.

Com o consentimento das entrevistadas, todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para a realização da análise. Cada entrevista durou em média 50 minutos. Porém, dependendo da comunicabilidade de algumas, chegavam a durar 90 minutos ou mais. No total, foram obtidas 18,5 horas de gravação que se converteram em 296 páginas de material transcrito no editor de texto Word, com fonte Times New Roman tamanho 12, espaçamento simples entre linhas e duplo entre parágrafos. Esse material também incluiu as anotações da pesquisadora tomadas ao final da entrevista, quando o gravador já havia sido desligado e a entrevistada fazia algum comentário adicional.

Ao contrário da investigação quantitativa, a investigação de tipo qualitativo não pretende estimar a incidência de um determinado fenômeno para a população geral. O seu objetivo é ganhar uma compreensão mais aprofundada da natureza do fenômeno ou da realidade que se estuda, e desenvolver explicações ou gerar novas ideias ou teorias sobre esse fenômeno ou realidade. Assim sendo, o critério que determina o valor da amostra passa a ser a sua adequação aos objetivos da investigação. O importante neste tipo de metodologia é assegurar a diversidade dos indivíduos entrevistados e procurar garantir que situações importantes ou excepcionais para a análise não sejam omitidas ou ignoradas. Dessa forma, tenta-se garantir que o estudo contemple o maior número possível de fatores ou elementos associados à compreensão do fenômeno que se pretende explicar (RUQUOY, 1997). Efetivamente, quanto maior é a diversidade de características ou circunstâncias incluídas no estudo, maior é a probabilidade de conseguir identificar as suas diferentes contribuições ou influências para a explicação da realidade.

Como sucede com quase todos os estudos, quando partem para o campo, o acesso aos sujeitos não é fácil e foram muitas as recusas de participação, quer por omissão (nem sequer respondendo ao e-mail enviado), quer por indisponibilidade de tempo, apesar das demonstrações de interesse pelo tema da investigação. Todo este processo tornou a etapa da coleta de dados mais demorada, pois obrigou a realização de sucessivos contatos de forma a conseguir um número mínimo desejável de sujeitos para as entrevistas. De qualquer forma, o

que se pretende num estudo qualitativo é a obtenção de informação em profundidade, e não há uma preocupação com a amplitude da amostra em termos de dimensão, a etapa de coleta de dados no campo foi concluída com êxito.

A seção seguinte apresenta a caracterização das executivas entrevistadas.