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PARTE I COMPREENDENDO O CAMPO

CAPÍTULO 2 – GÊNERO, SUA NECESSÁRIA CONCEITUAÇÃO E O DIÁLOGO

2.1 Judith Butler e o gênero como performance

Judith Butler publica no início dos anos 90 Gender Trouble, traduzido para a língua portuguesa somente em 2003, uma obra que integra perspectivas filosóficas e culturais em torno das reflexões sobre gênero, feminismo e identidade. Segundo Lamas (2008), em ensaio

anterior9 Butler já havia se perguntado até onde o gênero poderia ser uma escolha. Partindo da

ideia de que as pessoas não são somente construídas socialmente, mas que, em certa medida,

constroem a si próprias, Butler apud Lamas (2008:16) considera gênero como “o resultado de

um processo mediante o qual recebemos significados culturais, mas também os inovamos”.

O livro apresenta formulações teóricas em torno da crítica foucauldiana do sujeito, de leituras das teorias estruturalistas, feministas e psicanalíticas, e da teorização das identidades melancólicas e performativas. O ponto de partida é um ponto de ruptura: as feministas teriam

erroneamente partido do princípio da existência de “um sujeito” acriticamente designado por

Mulher ou mulheres. Gender Trouble questiona isto, propondo ao invés um sujeito-em- processo que é construído no discurso e pela ação performática. Butler defende que a identidade de gênero é uma sequência de atos, mas também defende que não existe um

através de conteúdos conceituais relativos a solidariedade orgânica, complementaridade, conciliação, coordenação, parceria, especialização e divisão de papéis. A segunda remete a uma visão mais marxista e que opera em termos de relações antagônicas, através dos conteúdos conceituais relativos às relações de contradição, oposição, dominação, opressão e poder” (MENDES, 2008: 46). Operacionalizando tais visões nas práticas cotidianas das executivas, foco do estudo, observa-se que essas não parecem operar sempre em suas formas puras e estanques, haja vista se encontrar uma mescla de atitudes e comportamentos que reportam a traços de complementaridade e de dominação numa mesma situação, ao que é preferível atribuir certa relatividade à análise quando se trata das práticas de gênero que se apresentam bem mais complexas do que os esquemas em que podem ser inseridas.

performer ou ator pré-existente e que faz os atos. Por isso estabelece uma distinção entre

performance (que pressupõe a existência de um sujeito) e performatividade (a ação em si; no limite, questionadora da própria performance). (BUTLER, 2008)

De acordo com sua lógica da performance o gênero não é algo que se é, mas algo que se faz, um ato ou, melhor, uma sequência de atos; um verbo e não um substantivo. Assim, em manobra semelhante a de Joan Scott, Butler pretende historicizar o corpo e o sexo, dissolvendo a dicotomia sexo/gênero, que fornece às feministas possibilidades limitadas de problematização da natureza biológica de homens e de mulheres. Para Butler (2008:47), em

nossa sociedade estamos diante de uma “ordem compulsória” que exige a coerência total entre

um sexo, um gênero e um desejo/prática que são obrigatoriamente heterossexuais.

O debate feminista sobre gênero foi sacudido por sua proposta de conceituação do gênero como performance. A autora argumenta que o gênero é algo que se faz, como um estilo corporal, apenas em pequena medida involuntário, já que está enraizado profundamente em

scripts culturais prévios. Nas palavras da autora

Ser mulher constituiria um “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade” constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? (...) Que outras categoriais fundacionais de identidade – identidade binária de sexo, gênero e corpo – podem ser apresentadas como produções a criar o efeito do natural, original e inevitável? (BUTLER, 2008: 9).

Ao se interrogar se essa naturalidade se constituiria através de atos culturais que produzem reações no corpo (ser feminina é um fato natural ou uma performance cultural?) e, como consequência, quais seriam então as categorias fundantes da identidade, Butler (2008) se propõe a analisar uma série de práticas paradoxais que ocasionam a resignificação subversiva do gênero e sua proliferação para além de um marco binário. A autora elabora um questionamento muito pertinente ao essencialismo com sua busca do genuíno (LAMAS, 2000). Além disso, distingue o âmbito psíquico do social e assinala que não se deve conter a tarefa política na exploração das questões de identidade.

Butler (2008) constrói seu discurso com metáforas teatrais e performáticas e utiliza o jargão filosófico para avalizar sua proposta feminista de distinguir o comportamento de gênero do corpo biológico que o hospeda e, para tanto, dialoga com Simone de Beauvoir, Monique Wittig, Michel Foucault, Nietzsche, Freud, entre outros/as.

Para Lamas (2000), muito do êxito do trabalho de Butler se baseia na desconstrução inteligente por ela elaborada, e no fato de que se posiciona de forma nova frente a duas linhas de argumentação sobre as quais o feminismo constituiu suas interpretações sobre o conflito sexo/gênero/identidade. Uma, a que pensa a diferença sexual, está relacionada com a experiência corporal e enfatiza que há algo específico das mulheres devido a seu ser sexual e de sua função maternal. Esta linha reproduz a concepção convencional da distinção corpo/mente no uso de sexo/gênero. A biologia se pensa como um dado material, sobre o qual se estabelece uma simbolização que se desdobra em prescrições sobre o próprio dos homens e o próprio das mulheres. Porém, a forma pela qual o dado biológico é simbolizado no inconsciente não é levada em consideração.

A segunda linha, influenciada pela psicanálise lacaniana, considera que a determinação sexual está no inconsciente. Isto não elimina a possibilidade de criticar a definição patriarcal do feminino na ordem simbólica; ao contrário, muitas psicanalistas iniciaram uma busca para registrar esta alteridade ou diferença que não é o feminino tal como é dito na cultura masculina. Esta corrente defende que a diferença sexual se funda não apenas em anatomias distintas, mas em subjetividades vinculadas a um processo imaginário: o sexo se assume no inconsciente, independente da anatomia (LAMAS, 2000).

Segundo Lamas (2000), Butler representa uma ruptura no discurso feminista sobre gênero que, durante os últimos anos, havia se concentrado na discussão sobre as consequências do gênero, dando forma a um corpo de teorizações e postulados parciais, preocupados quase que exclusivamente com o processo de socialização. Porém, ainda que a autora rompa com essa linha, não logra transmitir a complexidade da aquisição de gênero pelos corpos sexuados em uma cultura. É preciso, pois, completar tal compreensão com uma concepção não essencialista do ser humano, onde o inconsciente desempenhe um papel determinante.

Perguntar-se como se inscreveram, foram representadas e normatizadas a feminilidade e a masculinidade implica realizar uma análise das práticas simbólicas e dos mecanismos culturais que reproduzem o poder a partir do eixo da diferença sexual. Isto requer desentranhar significados e metáforas estereotipados, questionar o cânone e as ficções regulativas, criticar a tradição e as resignificações paródicas. Porém, a desconstrução dos processos sociais e culturais de gênero requer também a compreensão das mediações psíquicas e o aprofundamento da análise sobre a construção do sujeito.

Apesar da quantidade de trabalhos escritos pelas feministas, a maneira voluntarista com que se formulam muitas demandas e análises relativas às preferências sexuais apaga a distinção biológica macho/fêmea e, o que é pior, ignora a complexidade da diferença sexual (LAMAS, 2000).

No entanto, é por meio da interlocução crítica com autores contemporâneos que tais lacunas tem sido preenchidas. Entre esses autores, talvez tenha sido Michel Foucault um dos pensadores cuja teoria proporcionou maior possibilidade de diálogo com o feminismo, especialmente, por suas análises sobre as questões do corpo, da sexualidade, da Medicina, das tecnologias de poder, mostrando como produzem sujeitos/corpos disciplinados. Alguns

aspectos de sua teoria foram utilizados pelas estudiosas feministas – a analítica do poder, a

crítica ao sujeito único universal, a aceitação da diversidade e multiplicidade das relações

sociais – e apresentam elementos com muitas afinidades com o feminismo e que contribuíram

para o avanço das teorias de gênero. Não foi por acaso que Joan Scott, Gayle Rubin, Judith Butler, entre outras, mantiveram diálogo com sua teoria.

Para Scavone (2008), apesar dessa reconhecida influência, algumas autoras têm mostrado que o diálogo de Foucault com o feminismo, também, foi construído com muitas ambiguidades e tensões. Isto porque, ao mesmo tempo em que o autor contribuiu para desconstruir o discurso normativo sobre dominação e poder na sociedade, construiu uma outra normatividade para o

desenvolvimento da “emancipação futura”, que, por estar demasiadamente ancorada na

realização das identidades subjetivas, tenderia a esvaziar a possibilidade de saídas coletivas, chocando-se com a proposta do movimento feminista. Entretanto, é sempre bom lembrar que o feminismo do final do século XX explode com a noção de fixidez e sugere uma luta política móvel de resistências aos poderes instituídos e aos micropoderes.

Por outro lado, foi o sociólogo Pierre Bourdieu um dos teóricos que mais suscitaram adesões, críticas e rejeições entre as teóricas feministas com os seus estudos e reflexões sobre a dominação masculina, provavelmente, por seu lugar de intelectual dominante, mas, sobretudo, pela aplicação de sua teoria a um objeto cujo desenvolvimento teórico já estava muito mais avançado do que o construído por seu campo analítico. De fato, o seu primeiro artigo sobre a dominação masculina não incluiu referências significativas à produção feminista, que só foram incluídas, posteriormente, em seu livro sobre o tema (SCAVONE, 2008).

Uma das críticas feministas mais recorrentes à sua teoria da dominação masculina refere-se ao

teriam para com os dominantes (no caso, os homens) pelo fato de terem internalizado em seus corpos os esquemas de dominação como habitus, isto é, sistemas de disposições adquiridas que internalizam as estruturas sociais. As críticas a essa análise costumam considerar que as mulheres apareceriam como responsáveis da dominação.

Em contrapartida, os conceitos da sociologia de Bourdieu foram e são utilizados, frequentemente, em estudos e pesquisas acadêmicas e militantes de cunho feminista, particularmente, os relacionados a dominação, poder e violência simbólica, a trabalho e a condições de sua reprodução, e a própria noção de habitus, de campo, entre outros, para o entendimento da permanência da dominação masculina.

O diálogo com Pierre Bourdieu constitui-se em pilar fundamental para o desenvolvimento deste trabalho e será desenvolvido na seção 2.2, a seguir.