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Capítulo I. Fundamentação teórica

I.4. A teoria dos polissistemas e Jorge de Sena

Gostaríamos de recordar as concepções do escritor, teórico e professor português Jorge de Sena (1919-1978), que em diversos aspectos se cruzam com as propostas da teoria dos polissistemas, embora adoptando outras terminologias, e que, nesse sentido, nos parecem muito pertinentes. Em Dialécticas Teóricas da Literatura, Jorge de Sena aborda as «duplicidades da literatura» num ensaio com o mesmo título, argumentando que em quase todos os momentos há «duas literaturas paralelas»1 e que raramente coincidem. Nas coincidências e divergências, «a literatura é dúplice, enganadora, e usa, para com a crítica, de uma malícia equivalente à presunção dos críticos»2. O autor defende que as literaturas não são uma sequência contínua nem descontínua orientada por objectivos geracionais e considera que existem «literaturas oficiais» e «literaturas não-oficiais». Estas últimas não correspondem ao «maldito», pois «falar do que é proibido, exibir-se cada qual como réprobo, estadear através das artes o mais escatológico do inconsciente colectivo, que foi ou é tido por “maldito”, nunca constituiu impedimento para a tácita oficialização»3. É necessário, isso sim, que esses elementos sejam excepcionais ou que o autor se apresente como anormal ou perverso. Sena refere que a História e a crítica padronizam as chamadas artes maiores, na medida em que «as suas obras envolvem aventuras espirituais que são, para a rotina, para o pretensiosismo inovador, ou para a simples ordenação metódica, uma desordem irremediável, uma denúncia acusadora, um riso superior e intolerável»4.

No artigo «Sobre a dualidade fundamental dos períodos literários», Jorge de Sena critica a tendência para a simplificação e esquematização nos estudos literários

1

SENA, Jorge de, Dialécticas Teóricas da Literatura. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 171.

2

IDEM, ibidem.

3 Ibidem, p. 177. 4 Ibidem, p. 183.

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que levam a que os períodos estéticos sejam reduzidos a «reacções contra» ou «prolongamentos de», advertindo que:

se esquece com demasiada facilidade que a periodização não pode senão ser

aproximada, mesmo quando se considere simplisticamente a sucessão dos

períodos, porque nada se extingue ou aparece por decreto-lei, e onde as circunstâncias não sofrem alteração substancial será difícil que diversas formas ou tendências se sobreponham às que daquelas circunstâncias acaso tenham eventualmente resultado1.

Sena sublinha que as expressões «percursor», «fundador», «participante» ou «epígono» são apenas artifícios, pois «tudo foi percursor de tudo (num sentido positivo ou negativo), e tudo continua tudo, porque nada surge de novo por milagre, mas por transmutação qualitativa, e nada desaparece por completo»2. Para Sena, qualquer inovação estética inovadora resulta de experiências anteriores, «até que a quantificação delas atingiu um momento explosivo, ou uma sublimação, ou um ponto de reversão em que elas passam a significar diversamente, ou se transmutam numa

expressão inteiramente nova»3. Nesse sentido, defende o conceito de «transmutação dialéctica», que reflecte, não explosões ou revoluções, mas a continuidade e a interpenetração culturais. E aponta como erro fundamental da historiografia literária a adopção de um critério evolucionista e nacional, pois:

nenhuma literatura em nenhum período da sua história se explica inteiramente por si mesma, e nenhum movimento estético, a não ser em raríssimos casos especiais, tem a sua história confinada ao país ou à língua da sua origem4.

Sena propõe a metáfora de «sistema hidrográfico», complexo e histórico, que alimenta silenciosa e paulatinamente sensibilidades estéticas e criações que 1 Ibidem, p. 186. 2 Ibidem, pp. 186-187. 3 Ibidem, p. 188. 4 Ibidem, p. 189.

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aparentam ser súbitas. A uma historiografia nacional opõe uma visão global, que reconheça a subordinação a áreas de influência das culturas mais poderosas e que apresente periodizações mundiais. Chama a atenção para uma das falácias mais comuns, a de que os campos de saber e criação não tiveram uma evolução sincrónica, classificando esta ideia como uma impossibilidade histórica. O próprio conceito de evolução – em analogia com o corpo humano – é criticado, pois resulta numa concepção das civilizações «como organismos isolados, atingindo um apogeu, seguido de um declínio e extinção»1. Para Sena, o desaparecimento de uma cultura num determinado lugar não significa a sua extinção, mas sim «a sua transformação por desenvolvimento em outra parte»2. Assim:

Não é em termos de acção e reacção que os períodos se sucedem, ainda quando a

reacção contra possa parecer que constituiu um dos principais pilares da

transformação. A cultura não é uma repetitiva viagem pendular entre pólos

opostos, mas uma progressão (não necessariamente «progresso») dialéctica de numerosos pares de contrários, cuja relevância varia de período para período. Ou cuja diferenciação correlatamente se acentua3.

Os períodos distinguem-se por ambas as faces de um plano e cada um entrecruza e entredevora faces diferentes. Este tragar mútuo pode levar à aparente vitória de uma face – «mas isso não é senão uma ilusão de óptica cultural»4. Os períodos estéticos devem ser caracterizados em função das dualidades que os constituíram, pois não é possível que algo exista sem provocar o seu contrário.

Em «Sobre o perspectivismo histórico-literário», Sena destaca a importância de conhecer tanto o passado como o presente para compreender o mundo e refere vários erros comuns, entre eles a classificação da história cultural ou literária por géneros, a forma exagerada de tratar «vultos excepcionais» e o desprezo com que os restantes são encarados, e o isolamento de diferentes expressões contemporâneas entre si. «Só 1 Ibidem, p. 193. 2 Ibidem, p. 194. 3 Ibidem, p. 200. 4 Ibidem, p. 201.

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no conjunto de todas as suas manifestações pode uma época ser compreendida»1, escreve.

I.5. O caso de Bartolomeu Cid dos Santos: «Quando mentes distantes se