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Capítulo 1: Política Criminal e Sistema Prisional

1.1 A pena

1.1.3 A teoria do Etiquetamento Social

A consolidação da sociologia entre o século XIX e início do século XX, com Durkheim, traz consigo uma nova forma de pensar o crime, passando a entendê-lo como funcional para a sociedade. Em contraponto com a Escola Positivista, Durkheim entende que a pena não tem função de “curar” o criminoso, mas sim de satisfazer a sanha vingativa da sociedade, ferida pelo ato cometido por um dos seus. Discordando do pensamento sustentado pelos expoentes da Escola Italiana, ele não entendia o crime como algo patológico, mas como um fato social, defendendo que o mesmo está presente em todo tipo de sociedade, podendo ser considerado algo normal e útil, pois seria impossível que não existisse. Assim, não há sociedade em que os indivíduos não divirjam e que o crime não ocorra. Essa ideia afasta o entendimento do criminoso como alguém à parte da sociedade, insociável, e o interpreta até mesmo como um agente regulador da vida social (Durkheim, 2007).

Durkheim deduz das teorias sobre as penas que as mesmas não teriam função de prevenir que o ato ocorra novamente, mas sim de satisfazer a consciência comum castigando aquele considerado culpado. Assim, a abordagem sociológica sobre o fenômeno criminal trazida pelo autor provoca mudanças nas formas de prevenção de delito.

Já no século XX, na década de 1960, provocada pelas ideias de Durkheim, surge nos EUA a Teoria do Etiquetamento Social (ou Labeling Approach). Essa teoria criminológica rompe com o modelo positivista ao abandonar o estudo etiológico do criminoso, propondo um olhar a partir do controle social e da relação entre a sociedade e os processos de criminalização. Ao apostar que as noções de crime e de criminoso são construídas socialmente e vinculadas ao Direito Penal e às instituições de controle, afasta-se do entendimento da criminalidade como algo inerente ao indivíduo, defendendo que são atribuídas “etiquetas” ou “rótulos” a pessoas consideradas pela sociedade como delinquentes (Girardi & Mazoni, 2012).

O Direito Penal decorre da Política Criminal. Esta, se refere aos princípios e regras que o Estado adota para definir sua conduta frente aos processos de prevenção e repressão da

criminalidade, o que abrange a política de segurança pública, a política judiciária, a política penitenciária e a ciência política. Para isso, conta com a criminologia e seus estudos, pois depende do conhecimento sobre a criminalidade, causas e consequências, transformando teorizações em estratégias de controle que são utilizadas como ferramentas pelo Estado no combate ao crime (Guindani, 2006).

Baratta (2010) aponta que o Direito Penal se apresenta como o direito desigual por

excelência e a Política Criminal tem nele o seu maior instrumento, passando a gerir as situações relacionadas à segurança pública. Segundo defende a Teoria do Etiquetamento Social, a Política

Criminal dá subsídios legais aos processos de criminalização juntamente ao Direito Penal, aos costumes, valores e práticas sociais.

Para entender a ideia sustentada pela teoria do Etiquetamento Social, é importante falar sobre a existência das chamadas cifras ocultas. Estas se referem ao fato de que há muitas práticas que seriam delitivas mas que o sistema penal17 não alcança (e também não os interessa),

resultando numa distribuição desigual da criminalidade - o que é mais correto denominar criminalização - tornando alguns tipos de crime livres de investigação e penalidade. Esse conceito é importante para entendermos que crimes são cometidos em todas as esferas sociais, mas só alguns ganharão o status de criminosos (Baratta, 2010). O delito registrado é uma amostra não representativa da delinquência. Não é comum que apareçam nas estatísticas os delitos

cometidos por pessoas em posição socioeconômica privilegiada, crimes geralmente diferentes daqueles cometidos pela população subalterna, como fraudes, estelionato, os crimes de

“colarinho branco”, entre outros (Castro, 1983).

Segundo a teoria do Etiquetamento Social, entende-se que existem três instâncias de criminalização e rotulação. A primária se refere ao fato de que o crime é uma criação do

legislador, declarado pelo Direito Penal e é assim entendido simplesmente porque entende-se tais condutas como desviantes. Isso não se dá de forma imparcial, pois geram leis penais severas que comumente incidem sobre condutas da população mais pobre enquanto protege crimes típicos da população de posição econômica mais elevada.

17Quando fala-se em Sistema Penal, vale destacar que entende-se como a totalidade das instituições que operam o

controle penal, as normas, os saberes, a cultura, incluindo desde a polícia, a prisão, a constituição, as políticas criminais, até a mídia, as universidades, o mercado de trabalho e o senso comum (Andrade, 2012).

Na criminalização secundária, entram em cena órgãos de controle social como a polícia e o judiciário, bem como psicólogos, assistentes sociais e até a mídia, que atuam de forma a endossar e consolidar a criminalização da população pobre, tomando-os como suspeitos por características típicas relacionadas à classe à qual pertencem (Martini, 2007).

A terceira etapa do processo de criminalização diz respeito à manutenção do rótulo de criminoso ao indivíduo considerado delituoso pelas instâncias anteriores. Essa manutenção interfere diretamente na sua saída desse lugar social, reforçando esse estigma. Isso se estende à internalização desse rótulo pelo próprio indivíduo, principalmente quando o mesmo passa pelo sistema penitenciário e precisa lidar com a condição de ex-presidiário, a qual se estenderá socialmente por toda a sua vida, na grande parte dos casos (Martini, 2007).

Assim, a seleção de bens e comportamentos lesivos instituiria desigualdades simétricas: de um lado, garante privilégios das classes superiores com a proteção de seus interesses e imunização de seus comportamentos lesivos, ligados à acumulação de capitalista; de outro, promove a criminalização das classes inferiores, selecionando comportamentos próprios desses segmentos sociais em tipos penais. O processo de criminalização, condicionado pela posição de classe do autor e influenciado pela situação deste no mercado de trabalho

(desocupação, subocupação) e por defeitos de socialização (família, escola), concentraria as chances de criminalização no subproletariado e nos marginalizados sociais em geral. Desse modo, o processo de criminalização cumpriria função de conservação e de reprodução social: a punição de determinados comportamentos e sujeitos contribuiria para manter a escala social vertical e serviria de cobertura ideológica a comportamentos e sujeitos socialmente imunizados (Baratta, 2011, p. 15).

A teoria do Etiquetamento Social avança significativamente ao não entender o desvio como algo natural, mas sim criado socialmente, fruto da aplicação de leis e regras tendenciosas. Assim, o comportamento desviante é aquele que é considerado como tal. Seu intuito é agir com vistas a dificultar os processos secundários de criminalização, sustentando pautas como a reintegração de apenados, o desencarceramento, penas alternativas e o resgate da identidade dos sujeitos

condenados. Ela abre precedentes para o surgimento de outra corrente criminológica, sendo considerada por muitos autores como um período de transição entre a criminologia clássica e a criminologia crítica, que será discutida no capítulo 2. Apesar dos avanços, é considerada uma teoria de médio alcance pois não atua nas questões estruturais produtoras de desigualdade nem na política de criminalização primária, fundamental para que ocorram os processos

seguintes (Anitua, 2008).