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Capítulo 3: Punitivismo, trabalho e ilusões “re”

3.1 Discurso Oficial, leis e garantias

3.1.2 O cenário nacional

a) A Lei de Execuções Penais.

A nível nacional, destaca-se na garantia de direitos e deveres a Lei de Execução Penal (LEP). Criada em 11 de julho de 1984, traz ordenações no tocante a direitos e deveres da pessoa presa, bem como da responsabilidade do Estado com esses indivíduos. Esta lei se encontra dividida em capítulos e seções que discorrem sobre diversos pontos importantes para a qualidade de vida e garantia de direitos de apenados, com destaque para as diretrizes no tocante à

assistência, na qual defende que é dever do Estado garantir acesso à saúde, justiça, educação, entre outros preceitos básicos para o bem-estar dos indivíduos (Brasil, 1984).

A LEP (Brasil, 1984) também estabelece diretrizes com relação ao trabalho da pessoa presa, tanto internamente como externamente. Para ilustrar, por exemplo, o artigo 31 garante que aqueles em pena privativa de liberdade são obrigados a trabalhar na medida de suas aptidões e capacidade; já para os presos provisórios, o trabalho não é obrigatório; no artigo 34 consta que o

trabalho poderá ser gerenciado por fundação ou empresa pública com autonomia administrativa, com objetivo de formação profissional do condenado. Ainda nesse artigo, o segundo parágrafo informa que os governos federal, estadual e municipal poderão celebrar convênio com a iniciativa privada para implantação de oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presídios. Também está garantido na LEP que a prestação de trabalho à entidade privada depende do consentimento expresso do preso. Aqueles que cumprem a pena em regime fechado ou semiaberto poderão remir parte do tempo de execução da pena (Brasil, 1984).

A LEP (Brasil, 1984) é uma lei fundamental no que se refere aos processos de ressocialização, pois, em tese, seria de suma importância para garantir que o preso tenha condições favoráveis a uma possível reintegração social. Porém, apesar de ser uma lei e dos avanços na garantia de direitos humanos, é constantemente desrespeitada. A realidade prisional no Brasil demonstra claramente que não há um compromisso do Estado em propiciar o

cumprimento das garantias impostas e o que comumente presencia-se são presídios lotados, higiene precária, instalações quentes, péssimas condições de alimentação, relatos de tortura, além da impossibilidade de acesso à saúde médica e odontológica, à justiça e à educação.

O laboratório de pesquisa e extensão em subjetividade e segurança pública, LAPSUS, vinculado ao Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB, na Paraíba, realizou uma pesquisa no ano de 2012 na qual trouxe alguns dados do sistema prisional paraibano que demonstram a diferença entre a realidade prisional e o que está previsto na LEP. Foram entrevistados 236 familiares de presos em presídios masculinos da cidade de João Pessoa nas filas para visitação. Através de entrevistas semiestruturadas, foram abordadas questões sobre acesso à educação, justiça, saúde, entre outros. Os dados demonstram que, das pessoas entrevistadas:

• 199 afirmam que seu familiar preso não fez ou faz algum tipo de curso profissionalizante na prisão;

• 188 afirmam que seu familiar preso não participa ou participou de aula do ensino regular dentro da prisão;

• Numa escala de 0 a 10, 151 pessoas deram nota entre 0 e 3 para o sistema educacional dentro dos presídios;

• No tocante à saúde, 76 pessoas consideram a assistência “péssima/horrível”, seguido de “precária” (35) e “não existe” (29);

• Dos entrevistados, 208 afirmam que seu familiar preso não trabalha dentro do presídio; • Os que trabalham (27) dividem-se entre trabalho com artesanato, limpeza e cozinha; • 140 pessoas deram nota entre 0 e 3 para as condições de trabalho dentro do presídio,

numa escala de 0 a 10;

Apesar de referentes à situação prisional na cidade de João Pessoa - PB, os dados acima acabam por traduzir uma realidade nacional, na qual se verifica o descaso das autoridades em cumprir com o estabelecido em lei, tornando os presídios verdadeiros depósitos de pessoas. Através do Mutirão Carcerário, o CNJ realiza visitas a presídios de todo o país com o objetivo de evitar irregularidades e garantir o cumprimento da LEP. O último relatório disponível em visita na Paraíba, em 2011, confirma essa realidade. Segundo apontado, há muitas violações a direitos garantidos legalmente pela LEP. Por exemplo:

As pessoas presas, de forma praticamente unânime em todas as prisões inspecionadas, reclamaram da quantidade da comida. Disseram que além de ser em quantidade

insuficiente, chegam a ficar por mais de 12 horas, entre o jantar e o café da manhã do dia seguinte, sem qualquer alimentação. Com isto, de forma reiterada, a não ser pelos alimentos

trazidos pelas visitas, muitos presos dormem com fome, em especial aqueles que não recebem visitas.

[...]

Não há, igualmente, de se cogitar de local com higiene, se o Estado não fornece aos presos materiais de higiene pessoal e de limpeza. Os próprios diretores das prisões admitem, em alguns casos a insuficiência no fornecimento aos presos destes materiais, enquanto outros admitem não haver o fornecimento. De sua vez, os presos, de forma unânime, referem que não recebem materiais de higiene pessoal tais como sabonete, escova e pasta de dente, papel higiênico e absorventes íntimos, este último no caso das presas do sexo feminino. Também não recebem material para a limpeza do banheiro da cela, que é único e muito utilizado devido à superlotação. Narram que tais materiais somente chegam por meio das visitas, mas a quantidade é insuficiente.

[...]

No tocante as celas, devido a superlotação, não é incomum defrontar-se com presos dormindo no chão, em redes, em revezamento nas camas, nos banheiros, ou até dividindo cama entre dois...

[...]

Nestas mesmas celas, não há portas separando o local de descanso e onde ficam os presos, do banheiro, onde fica a latrina, que por não haver fornecimento de materiais de limpeza, está constantemente suja, exalando um odor terrível (CNJ, 2011).

A existência da LEP possibilitou a criação da Cartilha da Pessoa Presa (CNJ, 2012). Criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um documento direcionado principalmente aos presos e busca auxiliar no entendimento de direitos, deveres e garantias. Defende que: “busca reconstruir o caminho da cidadania e promover ações de reinserção social de presos, egressos do sistema

carcerário e de cumpridores de medidas e penas alternativas” (CNJ, 2012, p. 9). Discorre sobre os tipos de regimes de prisão, progressões, remição de pena, disciplina, sanções, além de trazer em seus anexos modelos de formulário de pedido de habeas corpus e petição, e ainda informações tais como telefones e endereços de defensorias públicas em todo o Brasil. Apostando na prisão como um lugar onde é possível a reintegração social, a cartilha da pessoa presa é um

documento/guia importante para acesso à informação e reafirmação de direitos, mas que não garante a efetivação das garantias e dos serviços que traz em suas páginas.

b) Órgãos e programas do Governo Federal.

O DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), subordinado ao Ministério de Segurança Pública é um órgão cujas competências incluem fiscalizar os estabelecimentos e serviços penais, colaborar com as Unidades Federativas mediante convênios, colaborar com a realização de cursos de formação dentro das penitenciárias, criar políticas voltadas para o trabalho prisional, educação, saúde e cultura, entre outros atributos. Também é de sua responsabilidade a manutenção

administrativa-financeira do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP e a gestão do Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN.

Um dos grandes propósitos do DEPEN é atuar na reintegração social através da qualificação dos presos para o mercado de trabalho, organizando cursos de capacitação e profissionalização. Nesse assunto, o DEPEN se divide em dois programas: o PROCAP

(Programa de Capacitação Profissional e Implementação de Oficinas Permanentes), executado pelo próprio DEPEN, e o PRONATEC (Programa nacional de acesso ao ensino técnico), elaborado pelo MEC e que acolhe a população prisional oferecendo cursos profissionalizantes. Além deles, o órgão de suma importância no tocante às políticas voltadas para o trabalho

prisional é o FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), criado por lei complementar em 1994. Entre suas finalidades está a elaboração e execução de projetos voltados à reinserção social dos presos, incluindo-os em políticas públicas voltadas ao mercado de trabalho.

Já o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)32 foi o primeiro órgão criado com foco nas questões de execução penal. Visa à implementação de uma nova política criminal e penitenciária a partir da fiscalização do sistema criminal e prisional. Sugere algumas medidas como: alternativas penais, justiça restaurativa, redução do encarceramento feminino, novo tratamento para crimes contra o patrimônio, fortalecimento da política de integração social e ressocialização.

Em 2007 o governo federal criou o PRONASCI, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, destinado à prevenção e controle da criminalidade, bem como à criação de políticas prisionais por meio da integração entre União, Estados e municípios. Entre seus eixos de atuação estão: formação e valorização dos profissionais da segurança pública, envolvimento da comunidade na prevenção da violência e reestruturação do sistema penitenciário. Essa reestruturação, ou modernização, diz respeito à criação de novas vagas em presídios com condições de cumprir com a proposta de reintegração social, com ambiente favorável, salas de aula, laboratório, entre outros. Nesse sentido, o PRONASCI propõe a criação de oficinas dentro dos presídios através de convênios do Estado com instituições e empresas (Brasil, 2007a)

c) Agenda Nacional pelo Desencarceramento.

A partir de uma audiência em que estava envolvido o movimento Mães de Maio33, organizações de enfrentamento ao Estado Penal e o Governo Federal, surge em 2013 uma

proposta de programa para desencarceramento com vistas a reduzir a superlotação prisional, entre outros fatores. Cria-se, então, a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, atualizada em 2016. Seu primeiro encontro nacional nesse mesmo ano reuniu mais de 30 organizações de 14 Estados do país e, no ano seguinte, cerca de 40 organizações, o que demonstra sua ampla aceitação e importância no que diz respeito à elaboração de políticas pelo desencarceramento e pela desmilitarização.

O intuito da Agenda é reverter o histórico de violência no Brasil e traçar um caminho em prol de uma sociedade sem cárcere. O documento mais recente é do ano de 2016-2017. As diretrizes que compõem a Agenda são:

• Suspensão de investimento em construção de novas unidades prisionais; • Limitação máxima das prisões cautelares e redução da população prisional;

• Redução de penas e descriminalização (principalmente no que envolve uso de drogas); • Redução do sistema penal;

• Ampliação das garantias da LEP; • Abertura do cárcere para a sociedade;

• Proibição da privatização do sistema prisional;

• Combate à tortura e desmilitarização da polícia, da política e da vida.

A principal motivação da Agenda Nacional pelo Desencarceramento é incidir sobre o encarceramento em massa, reduzir a população prisional e garantir direitos a presos e familiares. Uma iniciativa de suma importância para o fortalecimento da luta contra violações de direitos,

bem como para aproximarmos do horizonte abolicionista. As garantias e leis expostas até então existem na tentativa de melhoria das condições de encarceramento, influenciam diretamente na formulação de Políticas Prisionais e servem de base para a criação de políticas de ressocialização. Hoje, no Brasil, vivenciamos um período preocupante no tocante às questões de segurança

pública. Historicamente sofrendo os efeitos de uma política neoliberal, a política criminal que opera no país sustenta um viés extremamente punitivista que inflama violações de direitos e o superencarceramento. Frente a isso, torna-se preocupante a efetividade das leis e políticas para cárcere no país, tendo em vista que presencia-se constantemente o desrespeitos a tais garantias.

Os pontos a seguir apontam os limites das políticas para o cárcere e do discurso da

ressocialização. O fato de haver uma crítica não significa que as mesmas não devam existir. Mas, é importante pontuar o que sustenta alguns discursos falaciosos dentro de um sistema que opera para o inverso do que propõem as garantias abordadas nessa pesquisa. A finalidade não é cortar ou enfraquecer tais garantias, mas ampliar a visão sobre a Política Criminal e, através de um olhar crítico, modificá-la, tornando-a mais justa e humanizada.