• Nenhum resultado encontrado

A terceira tentação hegeliana

CAPÍTULO 02: RESISTIR À TENTAÇÃO HEGELIANA

2.3 Renunciar a Hegel

2.3.1 A terceira tentação hegeliana

Paul Ricœur inicia a primeira seção do capítulo anunciando que, a história, tema da obra Lições sobre a filosofia da história23 e, portanto, da filosofia da história de Hegel já não é uma história de historiador, mas, sim, de filósofo. Ele diz: “Porque a ideia capaz de conferir à história uma unidade – a ideia de liberdade – só é entendida por quem fez todo o percurso da filosofia do Espírito na Enciclopédia das ciências filosóficas” (RICŒUR. TR3, 2012, p. 330). Logo, é necessário que se tenha compreendido todo o Sistema de Hegel, portanto, os filósofos. Nas palavras dele: “por quem pensou integralmente as condições que fazem com que a liberdade seja a um só tempo racional e real no processo de autorrealização do Espírito. Neste sentido, somente o filósofo pode escrever essa história” (RICŒUR, loc. cit.).

Assim, a história a que se refere Hegel só pode ser compreendida por filósofos, aqueles que compreendem, por sua vez, as condições que fazem com que a liberdade, seja racional e real, no processo de autorrealização do espírito. Não é mais uma história de historiadores, mas de filósofos. E, neste sentido, o estudo sobre os “tipos de histografia” que compreendem o “Primeiro esboço” contido na Introdução às Lições sobre a filosofia da

história (1955) é na verdade um projeto didático que se destina a um público que não é

familiarizado com as razões filosóficas que são estabelecidas pelo sistema hegeliano, que consiste em considerar a liberdade o motor de uma história capaz de ser concomitantemente racional e real.

Por isso, a necessidade de uma introdução, que Ricœur chamará de exotérica, que acaba por conduzir, passo a passo, à ideia de uma história filosófica do mundo que só é recomendada, com bem frisa Ricœur, por sua própria estrutura filosófica. O movimento que Hegel sugere – que vai da “História original” à “História reflexiva”, e depois à “História

23

O texto Die vernunft in der Geschichte (1955) de Hegel teve publicação póstuma. Como Hegel não deixou um manuscrito finalizado, mas apenas anotações de aula, a edição alemã deve ser considerada uma versão "preparada", naturalmente, em sua essência baseada nas notas do próprio Hegel. Estas notas foram suplementadas e clarificadas por notas dos alunos, de que, felizmente, se encontrou dois conjuntos bastante extensos que foram utilizados pelo primeiro editor de sua obra, Eduard Gans. A edição de Gans apareceu em 1837. Uma edição revisada e ampliada, preparada por Karl, o filho de Hegel, foi publicada em 1840. Georg Lasson preparou uma terceira edição, ainda mais abrangente, publicada em 1917. Esta última edição difere no arranjo e no alcance da primeira e da segunda. Em geral se considera a segunda como a mais autorizada versão. (cf. HARTMAN, 2001, p. 41).

filosófica” – repete o movimento da representação (Vorstellung)24

. Eis aí o motivo pelo qual Ricœur afirma que somente o filósofo pode escrever essa história.

Não há verdadeiramente uma introdução à “consideração pensante” da história, ao contrário, ela se estabelece sem transição nem intermediário, ou seja, sem mediação, apenas no ato de fé filosófico no sistema. O que se tem então é a ideia de razão, portanto, que esta governa o mundo e, nesse sentido, a história, por ser a história do mundo, se dá racionalmente. Logo, tem-se então o mesmo estatuto epistemológico que a “convicção” (Ueberzeugung), que se liga à certeza de si25, no momento em que o agente se tornou um, tanto com sua intenção quanto com o seu fazer.

Aqui nos parece importante ressaltar que como coloca Ricœur (TR3, 2012, p. 331- 332):

Para o historiador, essa convicção é uma hipótese, uma “pressuposição”, portanto uma ideia a priori imposta aos fatos. Para o filósofo especulativo, tem a autoridade da “autorepresentação” (da Selbstdarstellung) do sistema todo. É uma verdade: a verdade de que a Razão não é um ideal impotente, mas uma potência.

Neste sentido, as compreensões do filósofo e do historiador diferem quanto ao estatuto da razão. Para o filósofo, não há dúvidas quanto a essa convicção de que é a razão que governa o mundo e, portanto, a história do mundo não poderia ser outra, senão uma história racional, que se desenrolou racionalmente. Para o historiador, por sua vez, isso não passa de mera pressuposição, como ressalta Ricœur, algo que, talvez, ele até possa tomar como verdadeiro, mas somente enquanto hipótese de trabalho, ou seja, como uma ideia a priori imposta aos fatos, nada além disto.

Por outro lado, para Ricœur (TR3, 2012, p. 332), esse credo filosófico é capaz de resumir não apenas a Fenomenologia do espírito, mas também a Enciclopédia, refutando assim a dicotomia entre um formalismo da ideia e um empirismo do fato. O que é tomado como uma sentença verdadeira, a saber: “o que é, é racional – o que é racional, é” (RICŒUR, loc. cit.). E isso é comprovado por todo o sistema hegeliano. Logo, somente o filósofo que é conhecedor e compreende todo o projeto hegeliano seria capaz de aceitar tal argumento. Desta

24

A representação (Vorstellung) é uma mediação entre a imediatidade da intuição e a efetividade do conceito. Há no interior da representação três modos que são distintos, mas se inter-relacionam: a) interiorização (ou rememoração, Erinnerung); b) imaginação; c) memória. (cf. HEGEL, 1995, p. 225-262).

25

forma, “os argumentos que são capazes de revelar a inadequação do sistema são eles mesmos tomados de empréstimo da doutrina completa, que não tem precedente” (RICŒUR, loc. cit.).

Hegel não pôde, numa obra relativamente popular como Lições sobre a filosofia da

história, retomar e explicar todo o seu sistema, ou mesmo reproduzir o aparelho da prova que

a Enciclopédia das ciências filosóficas toma emprestado da lógica filosófica e, por isso, o que ele nos traz é uma explicação mais exotérica e construída em quatro momentos, a saber: objetivo, meios, material, efetividade. De acordo com Ricœur (TR3, 2012, p. 333), “essa progressão em quatro tempos tem ao menos a vantagem de lançar luz sobre o caráter dificultoso do equacionamento entre o racional e o real, que uma reflexão mais curta, restrita à relação entre meios e fim, pareceria poder estabelecer a um custo menor”.

Hegel coloca nesse primeiro tempo do processo de pensamento, ou seja, no que ele chama de objetivo, o postulado do fim último da história, que segundo ele, se confunde com o fim último do mundo, a saber: a autorrealização da liberdade, uma vez que a filosofia da história pressupõe o sistema todo. Esse ponto de partida distingue desde o início a história filosófica do mundo também conhecida como “consideração pensante da história”. Por isso, Ricœur (Op. cit. p. 333) salienta que, consequentemente, compor uma história filosófica do mundo será ler a história – principalmente a política – sob uma ideia (a de liberdade) que somente a filosofia legitima inteiramente. E, assim, a filosofia traz a si mesma na postulação da questão.

Para Hegel, não por acaso o processo se dá em quatro tempos, é necessário que o fim encontre o seu próprio “meio”, não algo que lhe seja externo, mas interno. Pois é assim que será possível demonstrar que a Razão é capaz de mobilizar as paixões e as ideias, revelando assim a sua intencionalidade oculta. É ao satisfazer os seus fins particulares que esses eleitos do Espírito realizam os objetivos que os ultrapassam, portanto, é necessário o sacrifício das particularidades, estas consistem apenas no primeiro passo da Filosofia do Espírito, é necessário ir além no processo, encontrar seus meios e, por conseguinte, como ressalta Hegel na Introdução às Lições mesmo ao encontrar os meios ainda falta algo para que a efetividade do Espírito seja igual à sua finalidade última.

Ainda na Introdução de Lições o filósofo alemão irá salientar que se deve seguir um longo desenvolvimento dedicado ao “material” da livre Razão. O “material” é para Hegel o Estado, o “solo” no qual está enraizado todo o processo da efetuação da liberdade. E é “em torno deste polo que gravitam as potências que dão consistência ao espírito dos povos

(religião, ciências e artes)” (RICŒUR. TR3, 2012, p. 339). E, de acordo com Ricœur, o que mais chama a atenção, chegando inclusive a causar espanto, é o tipo de corrida de perseguição que começa a partir da seção (das Material), e que parece sugerir que o projeto de efetuação (Verwicklichung) do Espírito nunca se encerra (cf. RICŒUR, loc. cit.).

No quarto estágio do processo, temos a “efetividade” que é marcada pelo estabelecimento do Estado de direito com base na ideia de constituição e, ainda, na Introdução de Lições temos uma grande seção dedicada ao “curso (Verlauf) da história do mundo” e nele o princípio de desenvolvimento deve se articular numa sequência de “etapas”, na qual nasce o próprio “curso” da história do mundo e será somente com esse curso que o conceito de história filosófica do mundo estará completo, ou melhor, com ele se poderá começar a trabalhar, uma vez que apenas o que resta é compor a história filosófica do Mundo Antigo, que nada mais é que o palco das nossas considerações, ou seja, a história do mundo.

Dito isso, parece-nos claro que, assim como ocorre com as filosofias do tempo, ao pensar uma consciência unitária do tempo, o leitor se sinta tentado a recorrer a uma consciência unitária da história e, assim, não resista à tentação hegeliana, e acabe sucumbindo a uma mediação totalizante, como propôs o filósofo alemão. Por isso, acreditou-se ser necessário, até agora, explicar ainda que brevemente, como Hegel apresenta de forma sintética e um tanto mais simples, as quatro etapas de seu sistema na Introdução de Lições. O que comprova, a nosso ver, uma das críticas feitas por Ricœur à proposta de Hegel, que a história de que trata em sua obra, não é mais uma história de historiador, mas sim de filósofo, apenas o filósofo que tenha compreendido todo o sistema hegeliano, será capaz de compreender a história, que ele chama de “história do mundo”, e não de “história universal”, como bem frisa Ricœur.

Feito isso, passa-se à apresentação dos motivos que, de acordo com Paul Ricœur, acabam por inviabilizar a mediação total proposta por Hegel, no que tange à consciência histórica. É deste tema que nos ocuparemos a partir de agora.