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O sentido de “conservar” da Aufhebung

CAPÍTULO 03: A MEDIAÇÃO IMPERFEITA

3.4 O sentido de “conservar” da Aufhebung

A mediação imperfeita operada por Ricœur se inscreve na noção complexa de

Aufhebung hegeliana. Neste sentido, é necessário considerarmos a tradução realizada por Jean

Hyppolite – que é a tradução utilizada por Ricœur – e que a Aufhebung, de acordo com Hyppolite, significa: “suprimir”, “conservar” e “elevar” 48

. Neste sentido, faz-se necessário evidenciarmos que Ricœur utiliza e insiste em traduzir Aufhebung apenas como “conservar” (conserver).

Tal opção traz implicitamente a operação da mediação imperfeita com relação à teleologia e a arqueologia do si, a noção de tradição onde se sedimenta a noção do passado e a vida enquanto afirmação originária.

Aqui, traremos dois exemplos, com o objetivo de demonstrar como Ricœur utiliza o termo “conservar” como tradução da Aufhebung hegeliana. Sendo que o primeiro exemplo

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Por serem termos controversos e de difícil tradução do alemão para o francês (como faz Hyppolite) e do francês para o português (como fazemos nós), trazemos aqui os termos em francês, de acordo como foram adotados por Hyppolite, a saber: “supprimer”, “conserver” e “soulever”.

consiste na crítica do filósofo endereçada a Marx, no que diz respeito à interpretação da

Aufhebung nos Manuscritos. Ele critica a postura adotada por Marx que enfatiza o uso de

“ultrapassar” (dépassement) e “abolir” (abolition) para a Aufhebung hegeliana e que ele se esquece do sentido de “conservar” (conserver):

Com Hegel, Aufhebung, significa a superação de uma contradição, mas uma superação, uma superação, que conserva a significação positiva do primeiro momento. De maneira que, o primeiro momento é ele mesmo essa superação. Portanto, a Aufhebung suprime e conserva a força da contradição dentro da resolução que supera o primeiro momento. O conceito hegeliano é muito complexo. Nos Manuscritos, portanto, não há dúvida: Aufhebung é reduzida simplesmente a abolição. De Hegel a Marx o sentido de Aufhebung se reduziu ao significado de abolição, e mais especificamente abolição prática. Com Marx, a função da

Aufhebung como conservação desaparece e é substituída por uma acentuação da Aufhebung como superação unicamente. Por essa razão, nos Manuscritos, a tradução

mais adequada é superação49 (RICŒUR. IU, 1997, p. 83, tradução nossa).

A título de segundo exemplo, cabe ressaltar aqui que esta tradução de Aufhebung de Hyppolite que segue Ricœur é diferente da tradução de Derrida que, por sua vez, traduz

Aufhebung como “superação” (relève). A partir desta tradução é que Derrida pensa em

caracterizar o sistema hegeliano e assim ele critica o logocentrismo. Podemos dizer que Derrida se juntou à versão de Marx, traduzindo Aufhebung por “superação”, em um duplo sentido: “substituir” (remplacer) e “elevar” (élever).

O sentido de “suprimir” tem muito menos realce com Ricœur do que com Derrida. Mas cabe salientar que isso não significa que Derrida tenha compreendido mal o significado da Aufhebung hegeliana, ocorre que o destaque dado por Hegel ao sentido de “conservar” na

Aufhebung não é tão evidente em todo o seu trabalho. Por vezes, Hegel salienta o sentido de

“conservar” para a Aufhebung e em outros momentos ele a reduz a “superar” e a “suprimir” (cf. SHEN, 2010, p. 142).

Abordaremos, ainda que brevemente, o diálogo entre Derrida e Ricœur, no quarto capítulo desse estudo, na seção que trata do segundo momento da mediação imperfeita, acerca da metáfora e do sentido.

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"Chez Hegel, Aufhebung veut dire le dépassement d'une contradiction, mais un dépassement, une suppression, qui conserve la signification positive du premier moment. Dans son dépassement, le premier moment devient ce qu'il est. Donc, Y Aufhebung à la fois supprime et conserve la force de la contradiction à l'intérieur même de la résolution qui dépasse le premier moment. Le concept hégélien est très complexe. Dans les Manuscrits, par contre, il n'y a aucun doute : Aufhebung veut dire simplement abolition. De Hegel à Marx, le sens de Y

Aufhebung se réduit jusqu'à signifier abolition, et plus spécifiquement abolition pratique. Chez Marx, le rôle de Y Aufhebung comme conservation disparaît et il est remplacé par une accentuation de Y Aufhebung comme

Ricœur. em Renoncer à Hegel, critica a filosofia hegeliana da história pela noção de “sem Aufhebung”. Ele refuta o caráter totalizante da filosofia da história, e a noção de eterno

presente onde está ancorada a Razão divina da história, assim como também a noção de passado ultrapassado. Com a noção de passado ultrapassado, o sentido de “conservar” da Aufhebung assume uma posição à margem na filosofia hegeliana da história. E é justamente,

neste sentido, com a noção de “conservar” da Aufhebung e a noção de “passado” que Ricœur analisa e critica a noção do passado ultrapassado de Hegel.

Após refutar Hegel, como demonstramos no segundo capítulo deste estudo, quando tratamos da “terceira tentação hegeliana”, Ricœur coloca:

Tendo Hegel sido abandonado, pode-se ainda pretender pensar a história e o tempo da história? A resposta seria negativa se a ideia de uma “mediação total” esgotasse o campo do pensar. Resta outra via, a da mediação aberta, inacabada, imperfeita, ou seja, uma rede de perspectivas cruzadas entre a expectativa do futuro, a recepção do passado, a vivência do presente, sem Aufhebung numa totalidade em que a razão da história e sua efetividade coincidiram50 (RICŒUR.TR3, 2012, p. 352).

Quanto à noção de “conservar” que Ricœur utiliza da Aufhebung hegeliana, ela se diferencia da negatividade radical, por sua potência afirmativa. E, também, “os seus conteúdos e estratégias das contradições produtivas” 51 (RICŒUR. DA, 1989, p. 298-299). Portanto, o sentido “conservar” se inscreve na contradição produtiva. Para Ricœur, ainda que “conservar” se inscreva na contradição produtiva, ele não adota uma visão muito positiva, porque acredita que, apesar de estar num estágio mais elevado, ainda é possível que se seja atingido pelo mal (cf. SHEN, 2010, p.143).

Ricœur demonstra, no artigo Le paradoxe politique, que um maior mal é possível por uma maior razão, a instituição política. O mal político do passado é “conservado” e elevado ao invés de ser suprimido. Contudo, ele pode também ser ignorado à medida da efetuação da Razão histórica, uma vez que o bem é garantido pela Razão divina que guia o destino da história.

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“Hegel quitté, peut-on encore prétendre penser l’histoire et le temps de l’histoire ? le réponse serait négative si l’idée d’une « médiation totale » épuisait le champ du penser. Demeure une autre voie, celle de la médiation ouverte, inachevée, imparfaite, à savoir un réseau de perspectives croisées entre l’attente du futur, la réception du passé, le vécu du présent, sans Aufhebung dans une totalité où la raison de l’histoire et son effectivité coïncideraient".

51

A partir da filosofia hegeliana da história é possível perceber que o sentido de “conservar” da Aufhebung não é utilizado de forma homogênea por Hegel, e nem sempre na sua forma positiva e produtiva, mas Ricœur o utiliza implicitamente para pensar a obra de Hegel.

Contudo, para a mediação imperfeita operada por Ricœur, o sentido de “conservar” se faz extremamente importante, porque é ele que permite uma visão positiva do passado, que permanece no presente e no futuro, ao invés de ser suprimido.