• Nenhum resultado encontrado

A terceira viagem

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 172-183)

Voz, Linguagem e Literatura

5.2 A terceira viagem

Pontuada a fundamental presença da voz na primeira transmissão do recado, a tentativa, aqui, é dar continuidade a uma leitura da viagem da voz em “O recado do morro”. Para isso, será necessário acompanhar o enredo do conto e alinhavar os diferentes aspectos das vozes dos recadeiros que, na terceira parte dessa análise, serão retomados.

Pois bem, a primeira transmissão do recado acontece no início da viagem científica, próximo à fazenda de Juca Saturnino. Não temos no conto a segunda passagem do recado — entre Gorgulho e o irmão Zaquias, também chamado Catraz ou Qualhacôco. Essa transmissão é brevemente referida por esse outro eremita, quando ele mesmo estiver passando a mensagem. Isso se dá quando os senhores da comitiva o encontram vários dias depois, na volta da viagem. Mais precisamente, Catraz surge na fazenda de D. Vininha, onde já está a postos o próximo recadeiro, o menino Joãozezim. A inocência quase infantil do “bocó” Catraz, evidente tanto nas suas fabulosas geringonças — como o “carróço que avôa” puxado por duas dúzias de urubus — quanto na sua paixão por uma moça retratada numa “folhinha”, faz dele um “pobre triste diabo risonho”. O personagem também se destaca por um traço de excesso que se liga à palavra e à voz: ele é muito falante, não se inibe com as “altas presenças” e “esparolava, se dando a todos os desfrutes”. Respondendo às perguntas da comitiva, Zaquias é “lesto na loquela” (cf. p.56-59). Assim, quando se encontrar sozinho com Joãozezim, o recadeiro “falanfão” logo passa o recado e volta para a sua gruta. O menino, por sua vez, mal entende as palavras da mensagem, mas a sua

155

importância é mais uma vez captada: aquilo que ouvira “lhe soara tão importante por esquipático” (p.63, grifo meu).

Joãozezim cogita dizer o que escutara aos senhores da comitiva, mas pressente que os “adultos” nada responderiam — não ressoariam, pode-se dizer —, e a viagem do recado se encerraria num “silêncio” emudecedor: o “silêncio que vem antes da pergunta: e que, calados, já estão não-respondendo” (p.62). Com o recado em mãos, o menino sente uma “ardição” que o leva a passar a importante mensagem para o Guégue, que já costuma servir de mensageiro entre D. Vininha e sua filha. A escolha de Joãozezim é acertada: a primeira reação do bobo do Guégue é se colocar tão atentamente à escuta, que só “lhe faltava crescer as orelhas e avançá-las, muito peludas” (p.62).

Nessa transmissão, há algo a se perceber acerca da reverberação da voz. Primeiramente, como outros recadeiros, Joãozezim fica exaltado e pouco domina a sua fala: “falava desapoderado, como se tivesse aprendido só na memória o ao-comprido da conversa (p.62, grifo meu). O menino deseja uma “confirmação de resposta” do Guégue e, enquanto espera, “não podia deixar de mexer os lábios, continuasse a reproduzir tudo para si, num sussurro sem som” (p.63, grifo meu). Merece a justa atenção essa delicada formulação poética que surge pela primeira vez no conto e que destaco da seguinte maneira: “SuSSurro Sem Som”.

A expressão refere-se a um gesto vocal, isto é, ao modo como o menino faz soar as palavras em sua boca, notadamente reaproximando o recado de um instigante silêncio. Há algo de extraordinário nessa formulação: ela é, por si mesma, sonora; ela dá a escutar uma aliteração composta por “S”, ao mesmo tempo que se refere ao “sem som”. Som e silêncio conjugam-se, portanto, numa mesma formulação. Dessa maneira, a expressão parece recuperar — ressoando no próprio corpo da palavra — aquele “silêncio” vibrado pelo morro, que se faz passar adiante, no SuSSurro Sem Som de um menino. Dois elementos do conto corroboram com esse destaque que dou à expressão. Primeiramente, vale notar que a letra “S” já vem destacada no início do conto para indicar a forma da estrada percorrida pela comitiva e o começo de uma “grande frase”: “Desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa a grande frase” (p.27). A letra “S” é início da viagem da comitiva, da viagem da grande frase ainda a se compor (o recado, evidentemente) e, pode- se acrescentar, o “S” é início de uma viagem da voz, aludindo ao Silêncio audível do morro

156

da Garça cuja presença se refaz na expressão “SuSSurro Sem Som”. O outro dado a se notar é que, na exata outra ponta dessa viagem da voz, no decisivo momento em que o recado chegar ao seu destinatário, essa mesma expressão aliterativa ressurgirá como espécie de sopro vocal escutado por Pê-Boi, conforme se verá mais adiante.

Por enquanto, vamos seguir a viagem no ponto em que está: o recadeiro Guégue, ao escutar as palavras passadas por Joãozezim, repete os gestos vocais do menino — “apenas repetia, alto, as palavras; e, no intervalo, imitava com o cochicho de beiços” (p.63) — enquanto, exaltado, encena corporalmente todas as imagens da estória, pontuando “cada estância com um feio meio-guincho” (p.63). Na sequência, ao seguirem viagem guiados pelo desorientado Guégue, os membros comitiva desviam-se de seu caminho e chegam a uma região desolada, um “plaino pardo, poeirante, lugar de malhador de gado selvagem, ermo sem vivalma, nem bananeiras, nem telhado de gente residindo perto” (p.65). O silêncio mais uma vez se instala na narrativa, mas, dessa vez, um silêncio rondado pela morte: “no silêncio daquela solidão podia-se escutar o sol. Era uma planície morta, que ia vazia até longe, na barra escura do Capão-do-Gemido” (p.65). A comitiva fica parada próxima a um paredão, com “sombrias bocas de grutas” (p.66). A aparição do próximo recadeiro, Nominedômine, é quase um desdobramento sonoro dessa paisagem silenciosa. Com efeito, Pê-Boi e Guégue escutam uma voz solta no espaço, “solene” e “cavernosa”, como se ela emanasse do lugar. Uma voz cuja origem, em seguida, deixa-se a ver sob a forma de uma estranha “cabeçona de gente” que parece despregar-se da terra:

E então foi o susto dos dois [Pê-Boi e Guégue], quando uma voz solene e cavernosa proclamou de lá, falafrio:

— Bendito! que envém em nome em d’homem...

Aí, viram. Quandão, donde viera a má voz, se soerguia do chão uma cabeçona de gente. Era um homem grenhudo, magro de morte, arregalado, seus olhos espiando em zanga, requeimava. (p.66)

Nominedômine está deitado sobre o esterco e tem em uma das mãos duas varas amarradas com cipó formando uma cruz. Seu completo desvario o aproxima de um profeta apocalíptico e, a partir desse ponto do enredo, seu discurso verborrágico dá ainda mais evidência ao anúncio de morte que paralelamente corre nas palavras do recado. A “má voz” da personagem adere às ressonâncias infernais de seu discurso — com as repetidas imagens

157

ligadas ao fogo do fim do mundo e algumas menções ao “inferno”. De modo contrastante, também sabemos, por outro lado, que a insistente viagem do recado tem como fim evitar a morte e o mal revestido de traição. E o recado efetivamente salva Pê-Boi e, a bem dizer, leva a personagem a um recomeço de seu destino nos campos gerais. Essa dimensão vital do recado (porque resguarda a vida) também se opera numa corrente, por assim dizer, vitalizante entre os recadeiros. Perceba-se, na passagem do recado por Nominedômine, que a fala da personagem obcecada pela morte e pelo fim do mundo sofre momentaneamente uma reversão: o profeta anuncia o “começo” de um novo mundo, com a renovada imagem de “uma alvorada de toda Glória”. E essa mudança decorre, como diz o recadeiro, do “poder das palavras” que escuta do Guégue. Cito todo o trecho:

— (...) Arrepende, treme e reza, e te prostra, cara no chão, infiéis publicano! Olha a trombeta! De profundas, eu escuto: olha a morte, atenção!

— Uai, então é! É que nem o Menino...

— O menino? O menino? De uns assim foi dito, que entram no Reino-do-Céu dansadamente... Que menino?

— A bom, no Boãmor: foi que o Rei — isso do Menino — com espada na mão, tremia as peles, não queria ser favoroso. Chegou a Morte, com a caveira, de noite, falou assombrando. Falou foi o Catraz, Qualhacôco: o da Lapinha... Fez sino- saimão... Mas com sete homens, caminhando pelos altos, disse que a sorte quem marca é Deus, seus Doze apóstolos, e a Morte batendo jongo de caixa, de noite, na festa, feito História Sagrada... Querendo matar à traição... Catraz, irmão dum Malaquia... Ocê falou: a caveira possúi algum poder? É fim-do-mundo?

— É o começo dele, é o começo — alvorada de toda Glória! Um arcanjo sabe o poder de palavras que acaba de sair de tua boca... Ajoelha às graças, ajoelha, já! O Guégue obedecia, se ajoelhava. (p.69)

Decidindo terminar sua penitência e jejum, Nominedômine some deserto afora. A comitiva, que havia feito uma breve incursão na região, reencontra Pê-Boi e segue viagem. Dias depois, numa sexta-feira, o grupo finalmente chega ao arraial, encerra a expedição e se prepara para ver a festa do Rosário. No sábado, todos acordam cedíssimo com os “gritos grados” de Nominedômine, a quem alguns também chamam de Jubileu ou Santos-Óleos. Ensandecido, com um tufo de pano em cada pé, ele atravessa a rua principal convocando os moradores para a sua prédica e fazendo menção, num registro religioso, à voz e à palavra: “—‘É a Voz e o Verbo... É a Voz e o Verbo... Arreúnam, todos, e me escutem, que o fim- do-mundo está pendurando! Siso, que minha prédica é curta, tenho que muito ir e

158

converter” (p.76). Em meio a um discurso delirante, efusivo, e com laivos de humor, Nominedômine sugere que a voz do “Senhor” pode ser escutada na voz de uma simples criatura humana como ele:

Mas eu sou zerinho zero, malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem sou a Voz... Vinde povo: senvergonhas, pecadores, homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por vosso serviço, Deus enviou por mim, ele requer o vosso remimento. Dele tenho o praz-me. Olha o aviso: evém o fim do mundo, em fogo, fogo, fogo!” (p.77, grifo meu)

Se, por um lado, essa figura absurda mereceria pouco crédito dos moradores, que logo o veem sair correndo em direção à igreja, por outro, a voz de Nominedômine — mais do que suas palavras — tem força suficiente para convocar e ativar a crença desses mesmos moradores: “Por um vago, a gente estremecia, salteado do aflêcho comandante daquela voz, que instava calafrios: quase que se ia acreditando. As mulheres se benziam” (p.77, grifo meu).

Esse mesmo poder de convocação será, curiosamente, transferido para o sino da igreja, quando Santos-Óleos começa a tocá-lo. De início, é a loucura da personagem que ressoa no bater do sino, que antes vinha “col a col, cantarol”, mas começa a “bedelengar a torto, dlá e dlém, parecia querer romper de vez a forma de seu caroço dele” (p.77) e assim “perdia qualquer estilo” (p.78). Transtornados com o barulho, uns querem que o grandalhão Pê-Boi se apresse em retirar aquele doido do “santo assoalho da igreja, e socar paz e sossego, a bem dos usos da razão” (p.79). Mas o sino, que explicitamente, no texto, atuará como extensão da voz de Nominedômine, conseguirá reverberar — para além do seu próprio desvario, mas fruto dele — um ideal de salvação muito próximo daquele expresso pela personagem quando ouvira o recado:

E o sino feria, estalava facas no ar, feito raios. Mas no plém dele se sentia um alegria maluca e santa, rompendo salvação, pelas altas glórias. A voz do Nominedômine, em seu despropósito de urgente felicidade. (p.79)

Aqui, já estamos absolutamente fora do campo da palavra, mas o circuito que leva o recado adiante segue vivíssimo, inclusive nesse inusitado deslizamento da voz para as ressonâncias mais altas de um instrumento sonoro. Perceba-se que, nesta viagem da voz,

159

depende-se, fundamentalmente — desde o “acalor da voz” de Gorgulho — deste seu poder de invocar fortemente a escuta do outro e de que esse outro, no caso dos recadeiros, sinta-se convocado a repassar a mensagem. Por isso, em seguida, quando Nominedômine faz sua prédica e apresenta sua versão do recado, o personagem faz clara menção à voz que escutara, a do “Anjo dito, o papudo” — o Guégue, que tem um papo grande — como se essa voz se atualizasse na voz que toma conta da igreja: “Escutem minha voz, que é a do Anjo dito, o papudo: o que foi revelado. Foi o Rei, o Rei-menino, com a espada na mão! Tremam, todos! Traço o sino de Salomão... Tremia as peles — este é o destino de todos: o fim de morte vem à traição (...)” (p.80, grifo meu)

Anunciado o recado, Nominedômine submete-se à autoridade do frei Florduardo, que logo chega ao altar. A voz do recadeiro, até então marcada por um “aflêcho comandante” ou uma “urgente felicidade”, sofre uma notável mudança, como se, ao ter cumprido sua função, perdesse em seguida seu caráter de excesso: “E o Nominedômine se levantou e foi puxando vagaroso, pela beira da igreja, de olhos postos, rezando cantado em latim o Credo e o Padre-Nosso, com voz tão enfadonha” (p.81).

A passagem do recado pelo próximo recadeiro, o Coletor, é bastante rápida. O louco obsessivo por contabilizar suas posses estava colado ao altar e escutara a prédica de Nominedômine. Já do lado de fora da igreja, enchendo as paredes brancas com os algarismos mais altos, ele encontra Laudelim e Pedro Orósio e se refere ao aviso que escutara: “E, de costas mesmo, sempre registrando, ele ponderou em voz: ‘Frioleiras!’... Ih, ah, que aqui ele estava ficando com raiva. ‘— ‘Frioleiras, baboseira! Fim de mundo... Já se viu?!’ Virou a cara — avermelhado, aperuado.” (p.85). Inconformado com o anúncio do fim do mundo justamente quando se encontra riquíssimo, o Coletor transmite o recado à medida que extravasa a sua raiva:

— “Um tana! Mistifo do homem... Por meu seguro... Onde é que já se viu?! O rei- menino... Bom, isso tem na Festa: um rei menino, uma rainha menina, mais o Rei Congo e a Rainha Conga, (...) Baboseira! Morrer à traição, hora incerta, de tremer peles... Doze é dúzia — isso é modo de falar? (...) Carece de prender esse Santos- Óleos, mandar guardar em hospícios... Vê lá se a Morte vem vindo, daí da banda do Norte, feito coisa de embaixador, no represento de festa de cavalhada? (...) Novecentos milhões... Nove e seis e um — sete... Acabar? Posso dar meu

160

juramento. Acaba nunca! Isso de mundo se acabar é coisa de gente pobre... Arrenego! Uma tana! Que seja p’ra o Capataz, e esta aqui p’ra o Malaquias” (p.85- 86).

O personagem continua, insistentemente, a “resmonear” o sermão de Nominedômine, enquanto o poeta Laudelim, à escuta, deixa transparecer um movimento sutil de seu espírito criador: “Mas o Laudelim cismara tanto e tanto, enquanto estava ouvindo, seu rosto se ensombreceu, logo se alumiou ainda mais.” (p.86). Naquelas palavras aparentemente “sem-pé-nem-cabeça”, o cantador encontra o mote de sua cantiga e sinaliza o gesto pelo qual será responsável: trazer à luz, sob a forma organizada da arte, o recado do morro. Mas, antes mesmo de elaborar sua composição, o cantador ilumina-se também porque entende que a fala do Coletor traz algo absolutamente “importante”:

Ave, matutava. E mesmo, quando Pedro Orósio o pegou pelo braço e ia levando, ele entreparou, asseteado, pé no ar. — “Isso é importante! — disse. E pendurou cara, por escutar mais. — “...O extraordinário de importante... Tremer as peles... Cristãos sem o que fazer... Quero ver meu ouro...Um danado de extraordinário!... (p.87)

É fácil notar que as expressões acima grifadas evocam uma reação à escuta do recado que vem se repetindo desde a fala de Gorgulho, quando seo Alquiste entende, pelo “acalor da voz” do recadeiro, que ele “diz xôiz’ imm’portant!”. Captar a importância da mensagem, mais do que a mensagem em si, é um dado comum aos recadeiros e, excepcionalmente, também à figura emblemática de seo Alquiste. Como vimos, esse dado às vezes se transmite exclusivamente pela voz. Dessa maneira, ainda que a ação do artista Laudelim lhe garanta um lugar bastante especial nesta narrativa — afinal, não se trata de mais um maluco, mas de um poeta que finalmente elucidará o aviso —, a primeira reação desse poeta corresponde a uma mesma resposta vital que, recadeiro a recadeiro, sustenta as transmissões do recado. Laudelim deixa-se invocar pelo que inegavelmente há extraordinário nesta mensagem, ainda que essa dimensão ainda esteja oculta no plano da linguagem.

É exatamente esse dinamismo que finalmente atingirá o seu destinatário, quando Pê- Boi escutar a canção de Laudelim. Iniciada a festa do Rosário, o cantador aceita fazer uma apresentação para o estrangeiro seo Alquiste no hotel do Sinval. De fora, Pedro Orósio

161

apoia-se em uma janela, tem a seu lado o companheiro Ivo Crônico, e está a um passo de cair na emboscada preparada pelo companheiro traidor. A partir deste ponto, há uma confluência cada vez maior entre as palavras do recado e o destino de Pê-Boi, o que significa que o protagonista encontra-se num momento decisivo: ou capta o recado ou morre. Em outros termos, Pedro Orósio está literalmente entre a vida, que insiste em ganhar voz e palavra numa corrente de recadeiros, e a morte de um destino previamente traçado. Cabe a Pê-Boi, na sua hora e sua vez, também reverberar a voz que a natureza do sertão lançara em sua proteção. Vejamos como isso se dá.

Ao pedir licença para tocar a cantiga que inventara — “pobre coisinha minha, se licença me dão. Composição...”, dirá Laudelim (p.94) —, o último dos recadeiros ganha um renovado estado de espírito e faz correr os dedos pelas cordas do violão, dominando o espaço. Em seguida, “com rompante”, o recado é cantado em estrofes regulares, todas compostas por seis versos, com rimas e ritmos bem marcados, percorrendo, passo a passo, a história de um Rei traído. É quando, justamente, Pedro Orósio recebe uma forte impressão: ele sente “que estava gostando apaixonado dessa cantiga, ela era de referver. Os belos entusiasmos!” (p.96). Sem ainda traçar qualquer analogia com sua vida, o destinatário primeiramente se alia ao dinamismo de transmissão do recado e se deixa “referver” e entusiasmar-se.

No texto de “O recado do Morro”, são apresentadas quase nove estrofes do poema de Laudelim, e o restante daquela estória “terrível” é sintetizado pelo narrador. Vale ressaltar que, na cantiga, o destino de morte se cumpre com uma verdadeira “matança”: o rei é atacado pelos sete traidores, em cenas marcadas pela extrema violência, por urros, uivos, por um ódio animalesco, por “estrondo” e “estraçalho” como em “estouro de boiada”, e pela imagem do rei rebebendo o sangue de seu corpo cheio de “talhos sofridos”, até conseguir matar o “derradeiro sétimo” traidor e morrer vendo a sua sina escrita nos altos do céu (cf. p.94-97). Evidentemente, além de organizar os elementos narrativos apresentados na confusa fala do Coletor, o poeta Laudelim faz seus acréscimos ao recado. É importante destacar um deles, na última estrofe apresentada no corpo da cantiga:

A viagem foi de noite por ser tempo de luar Os sete nada diziam

162 porque o rei iam matar: Mas o rei estava alegre e começou a cantar...

(p.96, grifo meu)

Ora, se a estória do Rei desata na morte, esses dois versos têm especial relevância porque sinalizam, com precisão, o ponto de viragem desse mesmo destino no caso de Pê- Boi. Os versos dizem claramente que, em oposição à intenção de matar, está a alegria sentida pelo rei e o fato de começar a cantar. Se isso, no poema, pode até indicar a distração e o engano do rei em relação aos traidores, no caso de Pedro Orósio, alegrar-se — ou entusiasmar-se — e cantar a cantiga de Laudelim quando estiver cercado pelos sete traidores será o gesto fundamental que lhe salvará a vida. Dizendo de outro modo, é como se o cantador Laudelim incluísse na cantiga a própria chave que leva Pê-Boi a se reconhecer como destinatário do recado e escapar à morte, conforme veremos adiante.

Além disso, cabe aqui pontuar que a escuta bastante aguçada de seo Alquiste leva o naturalista a insistir, mais uma vez, na “importância” da mensagem sem que ele entenda o significado dos versos, mas escute uma vibração sonora produzida no próprio corpo da linguagem, na “pedra das palavras”:

— “Importante... importante...” — afirmava o senhor Alquiste, sisudo subitamente, desejando que lhe traduzissem o texto digestim ad districtim, para o anotar. Sem apreender o inteiro sentido, de fora aquele pudera perceber o profundo do bafo, da força melodiã e do sobressalto que o verso transmuz da pedra das palavras. (p.97- 98, grifo meu)

Em “surdina”, seo Jujuca traduz a cantiga para o naturalista, que se exalta ao relacionar a estória do rei com a “saga de Hrolf filho de Helgi”, escrita por “Saxo

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 172-183)