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O entusiasmo da voz

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 183-200)

Voz, Linguagem e Literatura

5.3 O entusiasmo da voz

Acompanhar os fios que ligam as várias vozes de “O recado do morro” permite retomar um ponto sublinhado no primeiro momento desta leitura: o “acalor” da voz de Gorgulho, que reverbera a importância do recado e estabelece algum entendimento entre o recadeiro e seo Alquiste. Com efeito, o termo que qualifica a voz de Gorgulho é fundamental porque abre um campo semântico — calor alude a quente, a fogo, a ferver; acalorado é animado, vivo, exaltado, etc. — que se dissemina por toda a narrativa, ora mais, ora menos sutilmente, mas especialmente entre os recadeiros. Em síntese, vimos que, já na transmissão entre Zaquias e Joãozezim, o menino é tomado por uma “ardição” que o leva a passar a mensagem para o Guégue. No caso do recadeiro Nominedômine, pode-se dizer que o “acalor” se manifesta no fervor religioso que domina o personagem. Sua caracterização física reafirma esse traço: “Era uma homem grenhudo, magro de morte, arregalado, seus olhos espiando e zanga, requeimava” (p.66, grifo meu); “Se via que ele estava no último ponto de escarnado, escaveirado, o sol queimara aquela cara, de descascar pele. (...) E os olhos frechavam, resumo de brasas” (p.76, grifo meu). O discurso apocalíptico de Nominedômine também enfatiza o domínio do fogo: “Olha o aviso: evém o fim do mundo, em fôgo, fôgo, fôgo!” (p.77). Mais ainda, vimos que Nominedômine toca altíssimo o sino da Igreja, e o badalo alucinado, justamente porque atua como extensão da voz do recadeiro, expressará o fervor de sua loucura: “Era só aquela fúria: dladlava, dlandoava, o sino também fervia do juízo” (p.78, grifo meu). Já o riquíssimo Coletor surge enraivecido, “avermelhado, aperuado”, quando transmite o recado. E se o sino tocado por Nominedômine fervia, já será a vez do violão de Laudelim ressoar fogosamente o alterado estado do cantador: “(...) o Laudelim mudou, cavalo de orgulhoso, estadeava. Afa, que o violão obedecia repulando teso, nas pontas de seus dedos, à virtude; com um instrumento fogoso tal, tal, em mesmo que ele podia tomar o espaço (p.94, grifo meu). Seu Alquiste, por sua vez, sente um “ardor” quando escuta a cantiga e a relaciona à saga dinamarquesa. E fechando o percurso da viagem, já se destacou que o enxadeiro Pedro Orósio apaixona-se pela cantiga porque “ela era de referver. Os belos entusiasmos!” (p.96).

Pois bem, tomada em seu conjunto, o fim dessa rede textual revela (como se dá com o próprio recado) o que mais exatamente é o calor que, desde a voz de Gorgulho, contamina

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alguns recadeiros ou mesmo os instrumentos que tocam. Trata-se de “entusiasmo”. Como energia que anima, vivifica, exalta e acalora, o “entusiasmo” mobiliza a viagem da voz em “O recado do morro”, imantando o próprio o recado e garantindo que ele seja transmitido, a despeito da desarticulação da linguagem. Diferentemente do eco, o entusiasmo vibra sem perdas na voz, recadeiro a recadeiro, até envolver Pedro Orósio e ser explicitamente referido no texto. Mas o entusiasmo expande-se uma vez mais, na própria voz de Pê-Boi, quando ele canta e se alegra, já por um triz de ser morto pelos sete traidores. Pode-se, dessa maneira, entender a relevância do comentário de Guimarães Rosa ao tradutor Edoardo Bizarri sobre o final de “O recado do morro”:

E a canção, o “recado”, opera, afinal, funciona. Mas, Pedro Orósio — que sempre, de todas as vezes, estivera presente, mas surdo e sem compreensão, nos momentos em que cada elo se liga, só consegue perceber e receber a revelação (ou profecia, ou aviso), quando sob a forma de obra de arte. E, mesmo, só quando ele próprio se entusiasma (ver etimologia: en-theos...) pela canção e canta. (BIZARRI,1980, p.59, grifo meu)

Sobre a determinante elaboração do recado “sob a forma de obra de arte”, Meneses (2010) apresenta-nos uma leitura em que, na esteira de Antonio Candido, trata da eficácia da forma poética. Conforme nos mostra a autora, somente quando o recado se estrutura em versos rimados, ritmados, sonoramente organizados, ele corresponde a uma forma mais generalizante — transformando-se, nesse caso, em uma cantiga sertaneja — que “assegura sua comunicabilidade” e, dessa maneira, é capaz de transmitir o aviso. O recado assume uma organização poética que poderá ser reconhecida e acolhida pelo povo do sertão: “Comovido, ele [seo Jujuca] pressentia que estava assistindo ao nascimento de uma dessas cantigas migradoras, que pousam no coração do povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas”. Além disso, a estória narrada por Laudelim, afirma Meneses, também tem um viés universalizante porque trata de questões que dizem respeito “a todos nós”: fundamentalmente, “a dialética entre Destino x ação humana; entre Fatalidade x iniciativa pessoal, entre ‘sorte’ x ‘valor’”. Isso tudo permite, justamente, que Pê-Boi reconheça seu destino no destino do “rei” de que fala a cantiga. (cf. MENESES, 2010, p.203-210)

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A essa eficácia da forma poética deve-se agregar o outro componente responsável pela transmissão do recado pontuado por Rosa. Se as primeiras linhas de “O recado do morro” dizem que “conseguiu-se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte”, a leitura até aqui estabelecida pretendeu mostrar que o fundamental “entusiasmo” sentido pelo destinatário do aviso também pode ser rastreado no conto, como uma espécie de corrente vocal, acalorada, que reverbera inclusive na música, nas cordas do violão de Laudelim. Mas o comentário de Guimarães Rosa permite ir além, porque remete ao termo grego enthousiasmós, que etimologicamente corresponde a “en – theós” e significa “com um deus dentro de si”, conforme já indicado (em nota) nesta tese. Nesse caso, vale recorrer a um texto que permite dar maior desenvolvimento à questão: o diálogo Íon, de Platão, sobre a “inspiração poética”. Na fala mais longa e mais conhecida deste diálogo, Sócrates, questionado por Íon, busca explicar por que esse rapsodo consegue falar belamente sobre Homero e declamar tão bem seus poemas, mas, quando se trata de outros poetas, pouco se envolve e chega mesmo a cochilar. Transcrevo somente os trechos que poderão interessar à leitura de “O recado do morro”:

Sócrates – Eu vejo mesmo, Íon, e vou te mostrar o que isso me parece ser. Pois isso existe, não sendo, todavia, uma técnica, em você, de falar bem acerca de Homero, como acabei de dizer, mas um poder divino que te move, como na pedra que Eurípides chamou de magnética, mas muitos chamam de pedra de Hércules. Pois essa pedra não apenas atrais os anéis de ferro, mas também coloca nos anéis um poder tal que eles são capazes de fazer isto do mesmo modo que a pedra: atrair outros anéis; de tal modo que, às vezes, numa grande série, os anéis de ferro pendem totalmente uns dos outros; mas, para todos, esse poder depende daquela pedra. E também assim a própria Musa cria entusiasmados, e através desses entusiasmados uma série de outros entusiastas é suspensa. (...) Pois os poeta nos dizem ― não é? ― que, colhendo de fontes de mel corrente de certos jardins e vales das Musas, eles nos trazem as melodias; como as abelhas, também eles assim voam. Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra, e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado e ficado fora de seu juízo e o senso não esteja mais nele. Enquanto mantiver esse bem, o senso, todo homem é incapaz de fazer poemas e cantar oráculos. (...) o deus retira deles o senso e se serve deles como servidores, e também dos cantadores de oráculos e também dos adivinhos divinos, para que nós, os ouvintes, saibamos que não são eles — aqueles nos quais o senso está ausente — os que falam essas coisas

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assim dignas de tanto valor, mas o próprio deus é quem fala, e através deles se faz ouvir por nós. (PLATÃO, 2011, p.40-41)53

Sem querer enquadrar o texto de Rosa ao texto de Platão, as imagens utilizadas para explicar a inspiração poética (o enthousiasmós) poderiam sintetizar, por analogia, o processo de viagem da voz no conto rosiano. Primeiramente, a imagem da pedra magnética que, metaforicamente, tem o “poder divino” de atrair e entusiasmar o poeta e o rapsodo ganha, traçando aqui um paralelo com “O recado do Morro”, a concretude da grande pedra que é o Morro da Garça. Uma pedra que igualmente atua como origem de uma voz que anima seus mediadores, sendo uma espécie de centro irradiador de toda a narrativa. Além disso, o conto de Rosa chega a sugerir que essa grande pedra tem um efeito magnético. Há, de início, um dado que pode, evidentemente, ser lido como mera informação geográfica: quando Gorgulho diz que o morro está “avisando coisas”, o recadeiro se benze e aponta o dedo no “rumo magnético de vinte e nove graus nordeste” (p.39, grifo meu). Trata-se, está claro, de uma orientação espacial, como as que se verificam nas bússolas; de todo modo, existe aí uma referência ao atuante campo magnético produzido pelo planeta. No conto, esse efeito vem sugerido numa imagem um tanto caricatural, quando Gorgulho se sente atraído (magnetizado, eu diria) pela presença do Morro da Garça, e seus olhos quase saltam em direção ao morro:

“Lá — lá estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide. O Gorgulho mais olhava-o; de arrevirar bogalhos; parecia que aqueles olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, como pedúnculos, como tentáculos.” (p.39, grifo meu)

Outro ponto no mínimo curioso é que, no texto platônico, a pedra magnética é referida como pedra de “Hércules” (versão latina do nome do herói grego Héracles)54. Uma

53 Escolhi esta tradução de Claudio Oliveira por ela manter no texto em português a repetição do

termo “entusiasmo” e seus derivados. Em outras versões, em vez de “entusiasmados”, por exemplo, lê-se “inspirados” ou perífrases como “saturado do deus” (v. trad. de Carlos Alberto Nunes. Universidade Federal do Pará, 1980). Em contrapartida, essas versões enfatizam a ideia de que a atração entre os inspirados forma uma “cadeia” que “articula” seus anéis e que “comunica” a cada um de seus elos o poder da pedra magnética (v. tradução de André Malta. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2007), o que, a meu ver, dá maior concretude ao processo descrito por Sócrates do que a noção de “série” da tradução escolhida.

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hipótese aventada em nota de rodapé em uma das traduções do diálogo (cf. PLATÃO, 2007, p.32) é de que a força da pedra magnética corresponderia à força de Hércules (Héracles). Se aceitarmos essa hipótese, pode-se ver esse mesmo elemento despontar em “O recado do Morro” no hercúleo protagonista Pedrão Chãbergo, cujo nome, sabemos, faz da personagem um representante da pedra e, por extensão, do Morro da Garça. Na abertura do conto, o personagem é efetivamente caracterizado como um gigante que tem uma força extraordinária:

Debaixo de ordem. De guiador — a pé, descalço — Pedro Orósio: moço, a nuca bem feita, graúda membradura; e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de encravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás, com um soco em sua cabeloura, e de levantar do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro, esquivando-se de seus coices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos. (p.28)

Há outras referências ao seu tamanho e força espalhadas pela narrativa: ele é “primão em força, feito um touro ou uma montanha” (p.32); por “culpa de seu tamanho, nem acharia cavalgadura que lhe assentasse” (p.29); por “seu tamanho em desabuso, forçudo assim, dava gosto e respeito” (p.82); e numa das tantas analogias que operam nesse conto rosiano, seo Alquiste chama-o de “Sansão” (p.37). O forte corpo de Pê-Boi, último elo da cadeia de magnetizados, também é comparado ao ferro: “(...) inchos de músculos, aquilo era de ferro” (p.101). Além disso, vale pontuar que esse personagem namorador também exerce certo magnetismo sobre as moças do lugar, que muito facilmente se sentem atraídas por ele — “as moças todas mais gostavam dele do que de qualquer outro” (p.32). Mas não só elas: o próprio Pê-Boi, um tanto narcisicamente, demora a se admirar num espelhinho que traz com ele: “Com frequência, Pedro Orósio tirava do rosto um espelhinho redondo: se supria de se mirar, vaidoso da constância de seu rosto” (p.33).

No que diz respeito à viagem da voz, interessa sobretudo o processo mais global de atração entre os “anéis de ferro” que encadearia, em “O recado do morro”, os sete recadeiros e o destinatário do aviso. Note-se que a pedra magnética, além de atrair um anel, 54 Nas outras duas traduções consultadas: “pedra de Héracles” e pedra de “heracléia” (nome de uma

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transfere-lhe seu poder de atração, e este anel ao próximo, sucessivamente. Toda a cadeia fica igualmente imantada pela pedra ou, no jogo comparativo, entusiasmada pela Musa. Ora, isso se aproxima muito do processo que, de modo geral, pode ser observado no conto de Rosa: vimos que os sete elos do recado deixam-se continuamente entusiasmar por uma voz emanada pela montanha, que, por sua vez, encontra na própria loucura que atravessa quase todos os mensageiros um aparato sensível e aberto a essa voz divina e oracular. A “mania” ou “fúria” ou “acalor” ou “ardor” ou “referver” que toma cada um deles, intensificando a alucinação de alguns, enfatiza a ausência de “senso” ou “juízo” necessária para que, seguindo o texto platônico, poemas sejam criados e oráculos cantados. E, efetivamente, em “O recado do Morro”, temos uma síntese de tudo isso: um poema oracular cantado. Com isso, a contribuição feita por cada um dos malucos recadeiros na elaboração do recado oracular poderia ser entendida como um gesto “criador” e ao mesmo tempo “desvelador”, ainda que aparentemente sem sentido, o que daria à própria loucura um estatuto visionário.

Curiosamente, também a leveza que, no texto platônico, caracteriza o poeta entusiasmado ou inspirado encontraria paralelo no próprio nome do poeta Laudelim Pulgapé, que, aliás, quando capta o recado do Coletor, fica com o “pé no ar”. Mas não é somente o poeta que fica leve. Até mesmo o Pê-Boizão, cujos pés enormes ficam devidamente plantados na terra, sente o corpo sem peso ao se inspirar com a cantiga e a lembrança de Laudelim: “Entremente, ia cantando (...) Era bonito, era bom. Pulgapé devia de ter vindo. Ao que se podia arejar, cabeça e corpo ganhando em levezas.” (p.99-100).

Vale notar que a própria noção de “recado” se adequa a essa imagem de uma cadeia dinamizada pelo entusiasmo. De acordo com Wisnik, o recado difere de uma mensagem justamente porque supõe não somente um destinador e um destinatário, mas um “circuito” com um ou mais intermediários que fazem “passar o recado”. Dessa maneira, o recado pode ser definido como “algo que passa” e cuja “vocação é fazer parte de uma cadeia”. Além disso, ele não necessariamente supõe uma resposta, uma troca de mensagens. Ao ser “mandado”, o recado tem como fim ser recebido e assim completa o seu percurso (cf. WISNIK, 1998, p.162).

Pois bem, ao lado dessa cadeia de recadeiros, é importante aqui discutir o lugar ocupado por seo Alquiste. Ainda que a crítica, de modo geral, anote a especial atenção que

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o cientista dá ao recado na sua primeira transmissão, a tendência é enquadrar o naturalista na objetividade da ciência e no seu lugar de homem letrado, em oposição aos lunáticos recadeiros. Bento Prado Jr., por exemplo, sublinha a “olhar neutro e objetivante de quem vem de fora e cataloga a paisagem”, o que permitiria a Alquiste reconhecer o herói Pedro Orósio na sua diferença (o seu talhe de gigante), além de chamar a atenção para o “valor inesperado” de elementos da natureza que ali não teriam qualquer serventia, mas são recolhidos pelo cientista (cf. PRADO JR., 1985, p.214). No entanto, em se tratando das transmissões do recado, a escuta de seo Alquiste é equiparada a dos outros homens letrados do conto: Frei Sinfrão e seo Jujuca do Açude. Todos estariam distantes de apreender as ressonâncias da voz do morro escutada por Gorgulho, como de fato é o caso de Frei Sinfrão, que reduz a fala do eremita a um dado objetivo: o grito do morro seria o som de um desabamento de pedras calcárias “deformado” pela alucinação do recadeiro. De acordo com Bento Prado Jr., “Letrados, proprietários, homens ‘normais’, permanecem insensíveis ao recado, interpretando-o como a deformação, pelo surdo Malaquias, de um fenômeno geográfico corrente” (op. cit., p.219). Wisnik (1998) chama a atenção para o fato de que o cientista seo Alquiste, o frade Sinfrão e o fazendeiro Jujuca do Açude são “gente de poder e saber” que representam a “elite colonial brasileira” e compõem um trio de senhores da cultura da escrita. De acordo com o crítico, isso marca um “contraponto” entre Gorgulho e Alquiste, personagens que se separam “pela língua, por todas as distâncias profundas ou aparentes que vão da Dinamarca ao sertão mineiro, da vidência à revelia de uma razão científica humanista do outro, da oralidade à escrita” (WISNIK, 1998, p.165). De todo modo, o crítico menciona o “entendimento virtual” que se dá entre as duas personagens, apesar de não se demorar nessa questão.

Ora, vimos que, no traçado da viagem da voz em “O recado do morro”, a figura de seo Alquiste comparece em momentos determinantes. Nas duas pontas do recado — na primeira versão de Gorgulho e na sua forma de canção — o cientista se exalta e chama a atenção para a importância da mensagem, isto é, para a sua dimensão oculta, que escapa ao viés objetivista. Em certa medida, isso aproximaria a percepção deste personagem àquela conferida aos recadeiros e, mais diretamente, ao poeta Laudelim, que igualmente apreende a importância do recado quando o recebe do Coletor. Lembre-se, também, de que seo Alquiste, ao brindar Pê-Boi com um sonoro “Escola”, dá uma última palavra ao enxadeiro

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antes de ele seguir em direção à emboscada; palavra fundamental porque, reenunciada por Pedro Orósio, desata todo o processo de reconhecimento do herói. Em outros termos, esse lema passado pelo seu Alquiste — skol! ou Viva! — incide sobre a própria revelação do recado do morro ou, em termos aristotélicos, sobre a anagnórisis do herói.

Essa relevância da personagem obriga-nos a abrir as fronteiras que o enquadrariam na figura muito ideal do cientista. Na verdade, algumas características de seo Alquiste parecem mesmo se cruzar com as de alguns recadeiros. Numa única passagem do conto, a ele se atribui uma inocência próxima a de uma criança, uma capacidade de adivinhação e, é importante notar, uma disposição para o “entusiasmo”:

O seo Alquiste, por um exemplo, em festa de entusiasmo por tudo, que nem uma criança no brincar; mas que, sendo sua vez, atinava em pôr na gente um olhar ponteado, trespassante, semelhante de feiticeiro: que divulgava e discorria, até adivinhava sem ficar sabendo. (p.34)

Se esta leitura de “O recado do morro” sublinha o “entusiasmo” como uma força motriz da narrativa, isso nos permite redimensionar o lugar atribuído a essa personagem. É preciso entender que, diferentemente de um frio homem da ciência, seo Alquiste apresenta a excepcional particularidade de ser o homem letrado que se deixa animar pela vitalidade e beleza da natureza sertaneja — aliás, como o próprio escritor Guimarães Rosa em suas viagens pelo sertão de Minas Gerais, especialmente a de 195255. Por isso mesmo, no conto,

o impacto que essa região “maravilhal” tem sobre Alquiste extrapola o objetivismo científico, e o personagem também traz algo da ordem do excesso:

Daquelas cumeeiras, a vista vai de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze, vinte, trinta léguas lonjura. — De açoite de se ajoelhar e rezar...” — ele [Seo Alquiste] falou. E sorria de ver, singular, elas trepando pela reigada da vertente, as labaredas verdes dum canavial. Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído de seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço? (p.32)

55 Ana Luiza Martins Costa, em “Rosa, ledor de relatos de viagens” (2000), ao estabelecer

aproximações e diferenças entre as anotações nas famosas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa (Boiada 1 e 2) e os relatos de viajantes naturalistas do séc. XIX, mostra-nos que, embora o rigor e a minúcia de detalhes aproximem esses textos, Guimarães Rosa, diferentemente desses viajantes, abre mão de um cientificismo e objetivismo restritos e estabelece uma proximidade e empatia com o mundo sertanejo. Essas características certamente poderiam ser conferidas a seo Alquiste.

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 183-200)