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Um Sopro de sentido

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 85-92)

Voz, Linguagem e Literatura

2.4 Um Sopro de sentido

Estamos aqui num ponto importante da discussão. Já foram abordados alguns estudos estilísticos em torno da oralidade rosiana; apresentaram-se elementos de um vocabulário da voz em Guimarães Rosa e foi discutida a centralidade dos gêneros orais na composição da sua obra. Esses elementos contribuem, como se argumentou, para criar uma dimensão de vocalidade no ato de leitura. No entanto, estudar a vocalidade em Guimarães Rosa exige que se vá além dessa análise, ainda que complexa, de uma incorporação do discurso oral. Para isso, retomarei aspectos estilísticos de Guimarães Rosa por outra via.

O ponto de partida é a ideia mais ampla, desenvolvida por Suzi Sperber em Signo e Sentimento (1982), de que, em Guimarães Rosa, a criação de uma palavra inédita e de estruturas sintáticas que diluem o encadeamento lógico entre seus termos têm como efeito, na ordem da recepção, a suspensão contínua do sentido e, em contrapartida, a sua busca incessante. É verdade que, de modo geral, essa característica estilística de Guimarães Rosa ― essa conexão menos explícita ou mais frouxa, por assim dizer, entre os elementos de uma frase ― já havia sido apontada anteriormente como marca de oralidade. Sperber avança a discussão ao considerar especialmente o efeito que essa “abertura” estrutural pode ter sobre o leitor: “A sequência incompleta em seu sentido, ou insatisfatoriamente completa, apresenta um paradigma aberto, o qual, no dizer de Roland Barthes, equivale a uma perturbação lógica” (SPERBER, 1982, p.7).

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Em conclusão de sua análise da obra de Rosa, Sperber afirma que esse processo corresponde a uma “derrota da inteligência do leitor”, no sentido de que essa perturbação lógica “pode permitir o salto para a descoberta, para a iluminação ― novas, desautomatizadas, até então desconhecidas” (p.150). Isso também significa que será exigido do leitor um contato com outras potencialidades da linguagem que não somente a intelectiva, ou seja, aquelas que se vinculam à ordem do corpo. Guimarães Rosa é, nesse caso, mais do que exemplar: o também pioneiro estudo de Oswaldino Marques (1957) já havia ressaltado a qualidade fortemente sinestésica de sua linguagem, que chega a reduzir o conceito a um mínimo residual para que a leitura seja em grande medida atravessada por sensações táteis-térmicas, por transposições de sensações do campo visual para o auditivo e vice-versa ou por uma palavra que atua como um gesto ou uma “mímica” (cf. p.43-44).

Vale lembrar que, desde Sagarana¸ a palavra rosiana reverbera seu “canto e plumagem”, sua característica mais nuclear, de acordo com a poética que o autor expõe no conhecido episódio do “rol de reis”, no conto “São Marcos”. O próprio título Sagarana, neologismo inaugural de sua obra, tem a função de resguardar essa dimensão sensória da palavra. Pode-se evidentemente explicá-lo etimologicamente: trata-se, como se sabe, de uma composição de SAGA (designação comum às narrativas em prosa, históricas ou lendárias) + RANA (sufixo do tupi que exprime semelhança); portanto, os contos reunidos no livro seriam como sagas, ao modo das sagas ou ainda falsas sagas (cf. MARTINS, 2001, p.439). Essa análise etimológica (e tantas outras que vemos em torno de neologismos, nomes de personagens e de lugares da obra de Rosa) obviamente interessa à crítica literária e a todo leitor porque convida a investigar a relação entre o título Sagarana e os contos que serão lidos. No entanto, é preciso também entender que a apreensão dessa palavra nova também depende de uma interação mais global, corpórea e sugestiva. Parece ser essa, aliás, a expectativa de Guimarães Rosa, se considerarmos o que afirma, em carta à tradutora para o inglês Harriet de Onis, sobre a “eficácia” ― poética, está claro ― do título Sagarana:

Veja, por exemplo, a senhora, a eficácia do título. SAGARANA, totalmente novo, para qualquer leitor e ainda não explicado, virgem de visão e entendimento. Não é? Por isso, é que eu quereria que esse título fosse conservado, na tradução em inglês, e em todas as outras. (apud MARTINS, 2001, p.439)

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Basicamente, o que importa na palavra? O fato de ela ser inédita, ou seja, o fato de não ter ainda um significado estabilizado (é uma palavra ainda não explicada), cujo sentido virá aliado ao que nela é som (a sequência sugestiva da vogal A) e, como o diz o autor, também à sua visualidade (é uma palavra “virgem de visão”). O que importa é justamente provocar a percepção do leitor a partir dessa camada sensorial da palavra, para, com isso, chegar a algum possível sentido. A explicação da formação da palavra parece não ser importante e inclusive se negaria a quem, num primeiro momento, lesse em inglês. De modo geral, em Guimarães Rosa, essa margem de incompreensão lógica parece ser condição para que a palavra possa ser poeticamente mais eficaz. Suponho, aliás, que a dificuldade que muitos leitores enfrentam ao ler Guimarães Rosa relaciona-se, em alguma medida, com a resistência em aceitar essa experiência literária que só se realiza corpo a corpo com uma palavra que, exatamente porque mantém essa margem de não dito, poderá dizer mais e alçar-se para um plano metafísico.

A questão da palavra nova, cuja significação é difícil de apreender, retorna evidentemente em várias passagens de correspondência que Rosa manteve com outros tradutores. Cito, especialmente, o trecho de uma carta ao tradutor Edoardo Bizarri sobre a palavra “Sarajava”, que Rosa escutara no sertão, mas cujo sentido ele mesmo desconhece. A palavra, no entanto, irradia uma beleza poética que vem de sua propriedade sensorial, particularmente sonora, numa sequência de “as”:

Mas o verbo sarajava, eu o ouvi, e o contador não soube explicar-me o que é. Verbo só em aa, belíssimo! Irradiava, como que transfigurado? ― O francês traduziu: “gagnait une splendeur peu commune”... (...)

É uma coisa misteriosa, que não podemos racionalizar. É o “Thabor” do Boi? Sua teophania? (Traduzir + ou – como: irradiava luminoso em rajas?) (BIZARRI, 1980, p.35)

Vale esclarecer que o verbo aparece no final da novela “Uma estória de amor”, talvez em seu momento mais significativo, quando o Velho Camilo narra a estória de um vaqueiro e um boi encantado. Perceba-se, na citação, que o que há de extraordinário no boi corresponde, textualmente, à beleza da palavra “sarajava”. É esse corpo de palavra que, a bem dizer, irradia sobre o “campo” e para o leitor:

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O Boi deitou no chão - tinha deitado na cama. Sarajava. O campo resplandecia. Para melhor não se ter medo, só essas belezas a gente olhava. (p.254)

Essa inegável qualidade hipersensorial da linguagem é importante para a dimensão da vocalidade, na medida em que, entre as várias faculdades perceptivas revigoradas pela invenção de Guimarães Rosa, está a que julgo central ― a percepção de uma voz ― porque dela depende o próprio ato de leitura, conforme se argumentou, teoricamente, no capítulo anterior. Ao darmos o corpo de nossa voz ao corpo de sua palavra, passamos a escutar a voz de uma linguagem cujo objetivo é quase sempre exceder as fronteiras de sentido, lançando o leitor num mundo sonoro com significações muito mais abertas e moventes do que se poderia supor em uma “fala sertaneja”.

Por vezes, o texto rosiano pode mesmo chegar ao limite de ser pura presença vocal, pura voz, como veremos na análise de “Meu tio o Iauaretê” e “Buriti”, quando o autor leva sua linguagem às bordas perigosas do sertão, onde a própria palavra corre o risco de se perder. É importante salientar, porém, que mesmo quando a linguagem chega a esse limite, a leitura não sofre, por assim dizer, uma suspensão absoluta de sentido, mas é como que lançada num fluxo em que “mostrar-se-á como pura intenção de significar, como puro querer-dizer, no qual alguma coisa se dá à compreensão sem que se produza ainda um evento determinado de significação” (AGAMBEN, 2006, p.53). Para deixar mais claro esse importante tópico, cabe aqui apresentar a noção de flatus vocis [sopro da voz], expressão que Zumthor traz do contexto medieval para tratar da vocalidade (1993, p.132) e que será mais detalhadamente apresentada por Agamben (2006).

Ao tratar da articulação entre voz e linguagem, Agamben (1999, 2006) parte de uma passagem de Santo Agostinho, em De Trinitate, em que o filósofo cristão medita sobre a possível escuta de uma palavra desconhecida, vinda de uma língua morta, como temetum, do Latim. Para Santo Agostinho, ouvir o som dessa palavra sabendo que ela significa algo ― isto é, sabendo que ela não é uma “voz vazia” (inanem voce) ― corresponde a abrir uma procura ardente de sentido, o que, em última instância, corresponde ao amor como vontade de saber. Agamben capta dessa passagem agostiniana uma experiência da palavra que, pode-se dizer, atualiza-se no fato relativamente comum de se ouvir uma palavra cujo sentido desconhecemos, mas à qual necessariamente atribuímos o intuito de significar, por

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ela estar inserida na ordem do discurso (e não seria isso, em certa medida, o que também se dá quando nos deparamos com os neologismos rosianos?). Essa experiência, afirma Agamben, aponta para uma “articulação originária” entre voz e linguagem, em que a voz é flatus vocis, ou seja, em que ela não é mais puro som e não ainda um significado, mas aponta para essa possibilidade de significar. Por isso, como salienta o filósofo italiano, toda voz é indicação de “que a linguagem tem lugar” (cf. AGAMBEN, 2006, p.54-55).

Essa colocação permite formular mais exatamente a diferença entre oralidade e vocalidade em Guimarães Rosa. Pode-se dizer que, mais do que recriar ficcionalmente um falar do sertão, um mundo da oralidade, a linguagem rosiana tende a ser flatus vocis, habitando esse lugar inconclusivo do querer-dizer, onde a escritura pode simultaneamente revelar e ocultar os mistérios do sertão. Note-se que a perspectiva da vocalidade pode, no limite, se desprender da referência da oral ou regional, porque chega a tocar no cerne da criação rosiana.

Com efeito, se considerarmos esse lugar fulcral ocupado pela voz e apontado por Agamben, lugar a partir do qual a voz indica a possibilidade de haver linguagem, pode-se pensar que Guimarães Rosa tenha levado a palavra a seu ponto de voz para justamente indicar que pode haver lugar para uma nova linguagem literária, linguagem porosa e fronteiriça que adere a tantas vozes dissonantes de seu sertão. É quando a vocalidade, como um dos princípios de composição literária, insistentemente expõe a materialidade do significante, misturando formas mais ou menos reconhecíveis que continuamente reabrem e vibram todo um campo de sentido.

Numa citação mais acima, não é o próprio vaqueiro Grivo (emblemático personagem de Rosa que, como fizera o próprio escritor em viagem de 1952, sai em busca da poesia do sertão) que, entre as variadas expressões e imagens que tentam definir a palavra poética, notadamente a apresenta como “Palavras de voz”? Com efeito, nessa “Demanda da Palavra e da criação poética”, tal como Benedito Nunes define “Cara-de- Bronze”, Grivo escuta a voz da poesia figurada naquela noiva “imaginária”, a vaga “Mulher Branca-de-todas-as cores”, com olhos “verdes” e “gázeos”: “Mas ― é a estória da moça que Grivo foi buscar, a mando de Segisberto Jéia. Sim a que se casou com o Grivo, mas que também é outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir” (p.137, grifo do autor).

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“Palavras de voz” ― vale a pena atentar para a expressão: a preposição de indica, simultaneamente, que a criação da palavra se alia a uma voz, que a sua materialidade poética é, por assim dizer, feita de voz e que essa palavra pode ser escutada como voz. Depara-se, novamente, com a verdade de que a voz antecede e tem como destino a palavra para nela continuar a vibrar, inclusive como princípio poético da escrita de Guimarães Rosa.

Dessa maneira, esse campo de vocalidade no corpo da linguagem poderá ativar, no plano da construção ficcional, um imenso circuito de vozes que nos chegam de todos os lados: vozes de uma natureza indevassável, cujos sons desafiam a compreensão que os personagens possam ter do meio em que vivem; vozes de sertanejos dominados por algo como o sem sentido da loucura, mas que inversamente também podem transmitir o insondável do sertão; vozes e silêncios que vêm de Deus ou do demo; vozes de contadores que trazem estórias e cantigas que sustentam e renovam a vida sertaneja; vozes de bichos, vozes da noite ou vozes que se encadeiam ao grito de um morro.

Tome-se, como um breve exemplo, o conto “Tarantão, meu Patrão”, de Primeiras estórias (cf. 143-151). No conto, um velho amalucado, já “sem o escasso juízo na cabeça”, sai cavalgando pelo mundo para se vingar de seu sobrinho-neto, um doutor, que lhe havia aplicado injeções e lhe fizera uma lavagem intestinal. O velho, que se diz tomado pelo demo, quer matar o “Magrinho”. O humor do conto vem não somente do inusitado da situação, mas do fato de, um tanto sem explicação, esse velho “tarantão” juntar uma trupe ao seu redor conforme segue viagem: seu empregado Vaga-Lume, a quem convoca com “uma voz toda, sem sobrossos nem encalques”; uma mulher e seu filho; o rapaz Jiló, o cigano Pé-de-Moleque e outros tantos, num grupo de catorze, “todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho”. Enfim, todos o seguem pelo que há de carisma em sua figura e pelo desmedido de sua ação. No final do conto, chegam à casa de Magrinho, onde há uma festa, e o momento, por assim dizer, mais forte do texto ― quebrando, aliás, a expectativa da ação, como é comum em Primeiras estórias ― dá-se quando o velho dirige a todos a sua voz, a voz de sua desrazão, e essa voz (e não as “baboseiras” que diz) terá o poder de agregar todos ao seu redor, na mesa de uma festa. Vamos ao trecho:

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O velho nosso, sozinho, alto, nos silêncios, bramou - dlão! - ergueu os grandes braços:

― "Eu pido a palavra..

E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê, e o velho, meu patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! ― e se saiu, foi por aí embora afora, sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar. Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, idéias já dissolvidas. O velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia. (p.150-51)

Atente-se para alguns detalhes. O velho surge “alto, nos silêncios” e se faz presente ao bramar um “dlão”, interjeição cujo sentido nos escapa. Na sequência, ele usa uma reconhecida fórmula social para abrir um “discurso” ― “Eu pido a palavra” ―, cria certa expectativa por meio de outra intervenção que tem por base a voz, uma tosse ― “bruba” ― e, por fim, o que seria um típico discurso ― inclusive com a expectativa do domínio da palavra por parte de quem o faz ― ironicamente descamba para um “nada se entender”. Mas, então, dá-se outra e mais importante inversão: o que seria a falta de sentido da loucura do velho revela-se, por meio da voz, uma extraordinária reverberação de sentido. Mais detalhadamente, perceba-se que, justamente por haver esse “nada se entender” das “baboseiras” ou “ideias já dissolvidas” da personagem, cria-se, ficcionalmente, uma situação em que a voz pode ganhar especial destaque. Assim, em vez de a voz veicular os sentidos da palavra, esses sentidos saem de cena para que venham à tona os sentidos da voz e seu poder de invocação daqueles que escutam. E, de fato, a voz descrita como portentosa segue, como um rio generoso, “sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras”. O texto rosiano notadamente sublinha o efeito que essa voz tem sobre os ouvintes: eles suspendem a cabeça, sentem-se revigorados, choram e, “mais sentidos, mais calados”, dão corpo a um silêncio que indicia que algo de muito importante está sendo dito e, mais do que isso, transmitido pela voz do “tarantão”, ainda que nem os ouvintes nem nós leitores possamos dizer exatamente o que seja. Entendemos que alguma transformação se dá, inclusive no próprio velho, que “só se crescia” e se torna “supremo” conforme se deixa

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transpassar por essa voz. Lendo o trecho, ficam as perguntas: o que se passa nessa voz e o que ela passa aos que a escutam? O que ela diz sobre a desrazão desse velho? O que são os “históricos dessa voz”? Ainda que nos aproximemos de seus possíveis sentidos ― trata-se certamente de uma voz que transmite alegria, carisma e elevação de espírito ―, essa voz permanece em aberto, em seu puro e intenso querer-dizer. Escutar esse sopro de sentido é escutar a vocalidade em Guimarães Rosa.

No documento Vocalidade em Guimarães Rosa (páginas 85-92)