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SEÇÃO I – PREÂMBULOS METODOLÓGICOS

Tipo 1 A terra e “aquele amor do lado esquerdo”

A formulação do tipo empírico 1 justifica-se pois julgo ser representativa a relação das famílias entrevistadas com a terra, o laço de pertencimento com o local inundado e por compreenderem negativamente a experiência que vivenciaram com o episódio da construção da barragem de Jaguara. No caso, entrevistei quatro famílias que, a partir das experiências vividas, enquadram-se no tipo empírico 1, quais sejam: família do Sr. Alberto Devós, família da Sra. Elzira Rodrigues, família do Sr. Josué Marães e família da Sra. Veridiana Andrade.

A notável relação de cumplicidade, reciprocidade e sentimento de pertencimento às terras que “a CEMIG inundou” é justificada por tais famílias estarem inseridas em uma lógica do rural tradicional trabalhado por Brandemburg (2010b), em que o rural resulta das ações que o camponês faz nele, como um espaço de vida e de trabalho. Nesse sentido, criam-se laços de pertencimento a uma comunidade, resultado direto dos laços estabelecidos naquele local, como a relação de compadrio, de ajuda mútua e mutirão, tal qual concebida tradicionalmente (BRANDEMBURG, 2010b)11.

11O autor analisa o rural brasileiro considerando três momentos historicamente diferenciados: o rural tradicional, o rural moderno e o rural socioambiental. Não podemos, portanto, compreender o rural brasileiro como algo homogêneo no território, mas observar os “diferentes tempos de ruralidade quanto os diferentes espaços”. Por isso, para o autor, o rural brasileiro pode ser caracterizado como um “mosaico, no qual cada espaço recebe uma coloração no tempo” (BRANDEMBURG, 2010b, p. 427).

43 Por o município localizar-se às margens do Rio Grande, os moradores da cidade de Rifaina estavam inseridos em um sistema de produção fundamentalmente dependente do movimento do rio. Tal sistema consistia em uma combinação de agricultura e atividades cerâmicas que revezavam a produção com base na variação das águas, ou seja, em tempo de cheia, produzia-se agricultura de várzea, priorizando arroz, feijão e milho. Já no tempo de seca, quando as águas do Rio Grande baixavam, os camponeses tinham acesso ao barro e à argila para a fabricação de cerâmicas (ZANFELICE, T; ETCHEBEHERE, M.L.; SAAD, A.R, 2009). A rigor, aqueles que tinham as terras na margem do rio eram privilegiados, com terrenos altamente valorizados tanto monetária quanto simbolicamente, já que tinham o privilégio de margear as “águas sagradas” (Alberto Devós, tipo empírico 1) que davam condições de plantar e produzir objetos únicos.

Eventualmente, os que tinham a propriedade de terra às margens do rio investiam nas produções agrícolas e de cerâmicas e empregavam moradores da região, como fez a família Devós. Dona de grandes quantidades de terras que margeavam o rio, a família destacou-se economicamente numa época em que o Rio Grande comandava a produção agrícola da cidade, utilizando aquele espaço para gerar a renda familiar. O trabalho girava em torno da produção agrícola de arroz, café e milho em tempos de cheia, e da produção de tijolos e telhas nas cerâmicas e olarias em momentos de seca. A abundância de barro lhe deu oportunidade de construir dois grandes fornos que produziam tijolos para a região, além de gerar emprego para famílias da cidade. Entretanto, suas terras foram alagadas. Seu instrumento de trabalho ficou debaixo d’água, precisando assim “rapar o tatu com machado até hoje” (Alberto Devós, tipo empírico 1) para gerar renda para a família. A rigor, isso explica a percepção negativa do patriarca sobre a construção da usina, sobre esse processo que fez sua vida ficar em “um balaio de gato” (Alberto Devós, tipo empírico 1).

Josué Marães, migrante nordestino que chegou em Rifaina com 16 anos, trabalhava de madrugada nas olarias e cerâmicas tirando barro das margens do rio e, de dia, pescava nas águas do Rio Grande. Um dos seis pescadores profissionais da região, foi diretamente impactado com a construção da barragem de Jaguara já que, com o represamento, a quantidade e o tamanho dos peixes mudaram, restando apenas, “peixes pequenos, não eram grandão não. Aquilo era mixaria, não dava quase nada” (Josué Marães, tipo empírico 1). A transformação do curso natural do rio, mais os transtornos para o recebimento da indenização, explicam a percepção negativa e o sentimento de revolta, uma vez que, em seu entendimento, a “CEMIG acabou com Rifaina” (Josué Marães, tipo empírico 1).

44 A geração de renda da família de Elzira Rodrigues esteve ligada diretamente com a terra a partir da criação de galinhas, engorda de porcos e, principalmente, gado e cultura leiteira. Por não ser terra boa para grandes plantações, terra branca e arenosa, investiu na produção e venda de leite para a cidade de Rifaina e, ainda, plantava hortaliças e frutas para o consumo familiar. Ao se deparar com a inundação das terras, a família iniciou um processo de migração à procura de uma residência que lhe conferisse os mesmos padrões de produção, rendimento monetário e a mesma relação de encanto e reciprocidade que tinham com a antiga propriedade alagada. Guiada pela tentativa de permanecer em um local que não dispusesse apenas dos recursos produtivos para a sobrevivência familiar, mas carregasse em seu bojo os elementos essenciais de permanência daquele modo de vida camponês, ou seja, uma natureza que não é apenas instrumento “útil” de trabalho, mas um espaço de dimensão subjetiva que deve ser sacralizado e preservado pelos elementos naturais (BRANDEMBURG, 2010a), chegou à cidade e se instalou em um pequeno terreno que “não tinha jeito de ter galinha, de ter nada” (Elzira Rodrigues, tipo empírico 1). A posição da família com relação ao evento da construção da barragem também é um quesito relevante de análise, já que, na percepção da mãe, os filhos analisam positivamente a chegada da UHE, pois lhes proporcinou novos rumos de vida e emprego. Contudo, sua percepção é a de que as águas que tomaram a cidade atingiram negativamente sua vida pessoal, já que tirou a terra em que plantava e vivia.

Trabalhar com a família de Sra. Veridiana é relevante pois julgo ser representativo a relação de gênero na família e o importante papel da mulher para a geração de renda familiar. Apesar disso, o trabalho árduo de Sra. Veridiana aparecia para a família como ajuda e cuidado dos filhos e serviços domésticos. Outro elemento que evidencia a divisão sexual do trabalho e as hierarquias e dominações de gênero no contexto familiar foi o distanciamento da mulher nas transações econômicas de compra-venda da terra pela CEMIG. A mulher foi invisibilizada e o homem, responsável direto pelo processo da “negociação”.

Como podemos notar, no tipo empírico 1 é representativa a tríade: organização de trabalho, produção e geração de renda familiar, além do sentimento de pertencimento às terras alagadas e a percepção negativa da experiência do deslocamento compulsório.

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