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A tradição das feiras livres no Agreste de Pernambuco

CAPÍTULO III – Costumes em Comum no Agreste de Pernambuco

3.3. A tradição das feiras livres no Agreste de Pernambuco

De acordo com os dicionários especializados, de modo geral, uma feira é um mercado de produtos variados, de caráter temporário e itinerante, em um local público, em que as pessoas, em dias e épocas predeterminadas, comercializam mercadorias. Pode ser ainda, uma exposição comercial, industrial, cultural, tecnológica ou recreativa ou um parque de diversões. As feiras existem desde a Antiguidade e Idade Média, as quais eram atreladas a festividades religiosas e dias santos. Nelas se reuniam mercadores de terras distantes trazendo os seus produtos autóctones para trocar por outros. A etimologia da palavra feira demonstra que a religião andou de mãos dadas com o comércio. A palavra latina feria, que significa “dia santo ou feriado”, é a palavra que deu origem à portuguesa “feira”, à espanhola feria e à inglesa fair. Na Idade Média, com a crise do feudalismo a partir de fins do século XI, a afirmação das feiras medievais indica o momento em que ressurge o

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comércio na Europa, associando-se à afirmação do poder régio, à gênese dos burgos e da burguesia enquanto classe social.

No Brasil, as feiras balizaram importantes linhas de fluxo de transporte, que mais tarde vieram a orientar traçados básicos dos planos brasileiros de viação. Feira de Santana, por exemplo, na Bahia, Juazeiro e Paulo Afonso, e várias outras cidades nordestinas, têm

feiras típicas de interesse local e turístico marcante. Campina Grande na Paraíba e

Caruaru em Pernambuco surgiram de feiras oriundas da passagem de viajantes entre o Litoral e o Sertão. Paragens para tropeiros, mascates e tangerinos, no Agreste nordestino, região intermediária do Litoral úmido para o Sertão seco.

Mas, como foi que tudo começou no Agreste de Pernambuco? “No começo, simples rancho para pernoite das boiadas vindas do sertão bruto... Foi a origem...”, assim se inicia o romance épico do mais ilustre dos escritores caruaruenses – José Condé (2011, p. 25) – um clássico da literatura nordestina. Os estudos antropológicos do pesquisador Josué Ferreira (2001) ratificam essa origem. Segundo o autor, o caminho pelo rio Ipojuca foi o segundo roteiro do gado que se instituiu já no século XVIII, como alternativa para o primeiro roteiro estabelecido no século XVII, pelo rio São Francisco. Ferreira apresenta três motivos para o processo de urbanização de Caruaru: a localização geográfica da Fazenda com seus currais próximos à ribeira do Ipojuca; o caminho das boiadas, tendo como posto de apoio e pernoite a Fazenda; e, o que ele considera como elemento mais forte: a construção da Capela. Pelo seu ponto estratégico, a Fazenda Caruru, durante o século XVIII, servia de paragem para os que usavam o roteiro das boiadas do litoral/sertão. Porém, com a construção da Capela, no fim do século XVIII, vimos, no século XIX, o aumento da população, o crescimento e desenvolvimento do povoado. Ora, depois de Bezerros, aquela Capela era o único lugar para atos religiosos e, por este motivo, ponto de convergência de toda a população da região. Quando da presença do vigário, todos tinham que aproveitar para, além de assistir a missa, realizar os casamentos, batizados, encontrar os amigos e parentes. Aproveitando o aglomerado de pessoas, muitos traziam seus produtos agrícolas para vender ou trocar. O mascate, de passagem, se instalava no local com suas novidades. Com o aumento do movimento de pessoas, esses encontros, com o tempo, tornaram-se semanais, as transações comerciais, mais diversificadas e as relações foram se metamorfoseando. As relações sociais daí derivadas foram se tornando permanentes e as pessoas foram se fixando ao redor da Capela e transformando o povoado numa cidade.

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A Feira de Caruaru (Fig. 31) foi crescendo e se diversificando. Com a expansão das transações comerciais, uma organização espontânea em setores foi se estabelecendo: a

feira de gado, onde tudo começou; a feira de verdura, para onde convergiam os

indivíduos que dispunham deste produto; a feira de frutas, onde se reuniam os que tinham excedentes de frutas; a feira de flores; a feira de queijo, produto derivado da atividade agropastoril, que tradicionalmente serviu para complementação da renda familiar do sítio;

o mercado de carne, que dependia do rebanho e era atrelado à feira do gado; o mercado de farinha, para escoar a produção tradicional das casas de farinhas ligadas aos roçados

de subsistência de mandioca e herança também indígena, que desenvolveu uma cultura da farinha, alimento que passou a compor a alimentação básica do povo da região; a feira

de artesanato, primeiramente reproduzida por objetos utilitários, como as panelas de

barro, as lamparinas, as colheres de pau, as gamelas de madeira, e que depois se transformou em arte figurativa de argila; a feira de ervas, medicina popular e crendices religiosas, também herança dos nativos que sabiam manipular as plantas nativas; e assim por diante.

Figura 31: Foto da Feira de Caruaru na década de 1960

Como podemos observar na análise histórico-antropológica de Josué Ferreira (2001), a

feira livre agrestina se constituiu como um espaço não só produtivo-comercial, mas

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reprodução dos costumes do povo dessa região. Como bem observou Alana Moraes de Souza, na sua dissertação de mestrado “A gente trabalha onde a gente vive” – a vida

social das relações econômicas: parentesco, “conhecimento” e as estratégias econômicas no Agreste das confecções (2012), entender a feira como espaço central para

o comércio da produção é essencial para entendermos a organização social produtiva da região.

Thompson (1998, p. 44) explica que os agentes sociais da Inglaterra rural do século XVIII também tinham o costume de exercer suas relações econômicas e sociais através de mercados semelhantes às feiras agrestinas, nos quais eles faziam trocas diretas de produtos primários. “Essas feiras não só propiciavam um nexo econômico, mas também um nexo cultural, além de um grande centro para informações e troca de novidades e boatos”.

A feira livre, espaço que foi produzido no início para escoar excedentes da produção familiar agropastoril, improvisadamente e sem a interferência de intermediários, continuou se reproduzindo e se diversificando, ao longo do tempo, no Agreste pernambucano. Teve como um de seus mais expressivos desdobramentos a constituição da Feira da Sulanca, conferindo aos produtores relativa “independência” e “autonomia”, a sensação de não ter patrão e poder trabalhar por “conta própria” - característica principal desse mercado que foi instituído desde suas origens sem a regulação das leis formais do poder constituído, por isso o caráter “espontâneo” do território produtivo-comercial chamado de feira. Ou seja, a feira livre originalmente foi uma “invenção” dos atores

sociais agrestinos para escoar seus produtos e complementar a renda do núcleo familiar

agropastoril, tendo, historicamente, sofrido alterações nos produtos oferecidos devido ao contexto de dificuldades para sua reprodução social na década de 1950, como vimos mais detalhadamente com a história dos retalheiros no Brás, bairro industrial de São Paulo. O pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Campus do Agreste, Marcio Sá (2011), na sua pesquisa sobre o setor gastronômico da Feira de Caruaru, a qual foi publicada no seu livro Feirantes: quem são e como administram seus negócios, reitera o argumento de Hart (1973), de que a Feira como mercado informal é um local de oportunidades para os desempregados dos centros urbanos em desenvolvimento, como também para os imigrantes do meio rural. Na sua grande maioria, os feirantes são descendentes ou remanescentes da zona rural e muitos são migrantes que foram para São

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Paulo e ao retornar procuraram um espaço na Feira. A pesquisa do Programa Regional del Empleo para America Latina e Caribe – PREALC, analisada por Tokman (1977, 2001), confirma essa origem rural dos agentes sociais desses mercados informais. Esse ambiente informal e improvisado funciona como uma porta de entrada ao emprego urbano de baixa produtividade. Essa inserção no mercado de trabalho urbano aumenta as possibilidades de mobilidade vertical futura.

Por sua vez, de acordo com Romenyck Barbosa da Silva, na sua monografia Fios, Nós,

Redes e Malhas: A Feira de Santa Cruz do Capibaribe (2012), os registros históricos

apontam o surgimento da Feira de Santa Cruz posterior à Feira de Caruaru. Segundo sua pesquisa, Santa Cruz do Capibaribe surgiu a partir da fazenda Santa Cruz, pertencente ao alferes José Francisco Cordeiro de Arruda (patriarca da tradicional família Arruda), que seria localizada onde hoje está a Avenida Padre Zuzinha, marco zero da cidade, cujo território pertencia ao município de Taquaritinga do Norte. Na década de 1860, Antônio Francisco Aragão (patriarca da tradicional família Aragão) teria comprado a fazenda ao alferes e a partir daí teria começado a surgir um pequeno povoado formado principalmente pelos trabalhadores da fazenda. Na década de 1870, José Francisco Cordeiro teria feito uma doação de 130 braças de terra à Igreja Católica, que serviram para a obra missionária do Padre José Antônio Pereira Ibiapina, de passagem pela região, onde foi construída a igreja, o açude da caridade e o cemitério. Essas obras serviram para atrair pessoas, aumentando assim a população e, já na década de 1880, aparecem os primeiros sobrados, elevando o povoado à categoria de Vila e segundo distrito do município de Taquaritinga do Norte em 1892.

Porém, segundo o pesquisador, existe também outra versão oral sobre a origem da cidade, mas sem comprovação escrita. Conforme a tradição oral, em meados do século XVIII, Antônio Burgos, de origem portuguesa, vivendo no Recife, teria adoecido e sido aconselhado pelos seus médicos a procurar um local de clima mais ameno. Então, o português, acompanhado de seus escravos, teria subido o rio Capibaribe até chegar às terras onde hoje se encontra a cidade de Santa Cruz do Capibaribe e lá se fixado. Supostamente o nome Santa Cruz teria sido originado a partir da grande cruz de madeira colocada em frente à capela construída próximo a sua casa, de onde teria se originado o povoado. No entanto, não existem registros sobre o referido lusitano, que supostamente teria morrido e deixado a casa e a capela com a cruz.

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Ainda de acordo com o relato do autor, o fato de a Vila de Santa Cruz do Capibaribe ser distante da rodovia que leva ao sertão fez com que sua emancipação demorasse a chegar. Durante a primeira metade do século XX, houve algum esforço por parte dos coronéis locais para o seu desenvolvimento: a estrada ligando a Vila à Sede, Taquaritinga do Norte, em 1921; o primeiro motor gerador de energia elétrica, em 1923; a Fábrica de Desfibrar Caroá (Fig. 33/34), em 1930. Não obstante, a agricultura se mostrou incipiente como principal atividade econômica por causa da irregularidade das chuvas, levando a população a buscar alternativas através do comércio. Dessa forma, sua feira livre (Fig. 38/39) se desenvolveu através de diversos produtos em forma de escambo, ou seja, através de trocas e permutas. Surgiram, então, na primeira metade do século XX, pequenas bodegas (secos e molhados) (Fig. 32 e 35) e a fabricação de alpercatas artesanais de couro, atividade que foi substituída pela confecção a partir da década de 1940. Com o desenvolvimento desse comércio, a Vila teve sua emancipação política em 1953. O movimento em direção à utilização de retalhos para confecção de colchas começou com retalhos trazidos das fábricas têxteis de Recife e Olinda, pelos membros das famílias mais tradicionais de Santa Cruz, na década de 1940 e, trocadas por galinhas, ovos, queijos, com os chamados “gaioleiros”, de acordo com Barbosa da Silva (2012), e “galinheiros”, de acordo com Elaine Bezerra (2011), que levavam as cobertas para comércio no sertão. Posteriormente, as costureiras levaram as colchas para vender no chão das calçadas. Na década de 1960, esse movimento se ampliou e tomou proporções nacionais com os

retalhos trazidos do centro industrial de São Paulo, dando início a uma pequena feira.

Todo esse movimento estabeleceu uma rede nacional de parentesco e amizades em todas as etapas de produção e comércio dessas confecções a partir dos retalhos.

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Figura 32: As bodegas de Santa Cruz do Capibaribe: A “Budega de Zé Vicente”. Fonte: Arquivos do professor Arnaldo Vitorino de Santa Cruz do Capibaribe

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Figuras 33 e 34: Produção extrativista. Fábrica de caroá (fibra vegetal nativa), anos 1940/50.

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Figura 35: As bodegas de Santa Cruz do Capibaribe: A “Budega de Zé Gangarra”.

Figura 36: Carga de galinhas, queijos e ovos para o Recife. Segundo o professor e pesquisador Arnaldo Vitorino, esta foto foi concebida na cidade de Jataúba em meados

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Figura 37: Carga de Algodão no caminhão de Biu Santana. De acordo com o professor e pesquisador Arnaldo Vitorino, esta foto foi tirada ao lado do Banco do Brasil, em

meados dos anos 1960.

Figura 38: Foto da Feira livre de Santa Cruz do Capibaribe em 1918 Fonte: Romenyck da Silva (2012)

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Figura 39: Foto da Feira livre de Santa Cruz do Capibaribe em 1947 Fonte: Arquivos do professor Arnaldo Vitorino

Figura 40: Foto da Rua dos Currais, local das feiras de gado, no final dos anos 1950, de acordo com a informação do professor e pesquisador Arnaldo Vitorino.

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Figura 41: Foto dos sapateiros em dia de feira em Santa Cruz do Capibaribe na década de 1940, época da produção de alpercatas.

Figura 42: Foto datada da década de 1960 em Alana Souza (2012), da década de 1970 no trabalho de Romenyck Silva (2012) e informado pelo professor e pesquisador

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Diríamos, então, que as feiras livres são uma espécie de nicho de acolhimento dos agentes

sociais de origem agropastoril no cenário laboral urbano, mas, também, espaços de

expressão cultural e social desses agentes. Assim se expressa Elizângela, sulanqueira de produtos para embalagens: “A Sulanca é uma feira que acolhe” (entrevista concedida à autora em 22 de outubro de 2012). Como também, Gildo, sulanqueiro de roupa infantil feminina: “A Sulanca é como um alimento, quem conhece não quer sair. Ela é muito atrativa” (entrevista concedida à autora em 22 de outubro de 2012).

Outro elemento muito importante na história socioeconômica da Sulanca é a seca cíclica do semiárido nordestino, interferindo nas vidas dos agentes sociais que protagonizam a sociabilidade rural da região agrestina. Vamos nos deter um pouco sobre esse fenômeno climático e a influência que exerce na organização social.