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A TRADIÇÃO DO PENSAMENTO ECONÔMICO E SOCIAL BRASILEIRO E OS

Foi ao longo da primeira metade do século XX, portanto, que efetivamente se inicia no Brasil um período de solidificação dos novos alicerces intelectuais os quais se tornariam, posteriormente, os principais responsáveis pela constituição ideológica de boa parte das mais importantes vertentes do pensamento nacional-desenvolvimentista brasileiro. É dentro deste período histórico, portanto, que podemos encontrar, de forma mais ou menos consistente, um núcleo inspirador de pensamento (uma tradição13), responsável último por um profundo processo de transformação crítica em relação às antigas interpretações racistas sobre as quais se vinham constituindo a base do pensamento social brasileiro desde a segunda metade do século XIX.

Foi ao longo das décadas de 20, 30 e 40, principalmente, que novas interpretações sobre a realidade nacional se consolidam no cenário intelectual das ciências sociais no Brasil14. Num momento de efervescência cultural, em uma época em que a intelectualidade local buscava novas perspectivas para se reinterpretar o Brasil. Um período crítico sobre o qual,

13 O que queremos definir aqui por “tradição” refere-se ao conceito cunhado inicialmente por Antônio Cândido em Formação

da Literatura brasileira, o qual quer representar um sistema literário integrado aonde existiria, ao mesmo tempo: “um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um caminho transmissor (de modo geral uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns aos outros” (CÂNDIDO, 1959, p. 23-24).

14 Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, tem sua primeira edição datada de 1933; Caio Prado Jr. publica Evolução

Política do Brasil em 1933 e Formação do Brasil Contemporâneo é publicada pela primeira vez em 1942; Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, publica Raízes do Brasil em 1936.

segundo Antônio Cândido (1995), alguns novos autores “parecem exprimir a mentalidade

ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 30 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo” (CÂNDIDO, 1995, p. 9). Ou seja, uma mentalidade que se impôs fazendo brotar interpretações que se tornariam indispensáveis para a compreensão posterior da realidade brasileira a partir de uma perspectiva nacional- desenvolvimentista. Tal como viria a ocorrer, principalmente, a partir da segunda metade da década de 30 com a instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas.

No entanto, é claro que este movimento intelectual que se inicia na década de 20 e se prolonga por toda a primeira metade do século passado, não pode ser compreendido adequadamente sem que se leve em consideração uma análise pormenorizada do contexto histórico de seu surgimento ou emergência. Para alguns historiadores como Lúcia Lippi Oliveira (1997), este período histórico representou um momento em que o impacto do fim da Primeira Guerra Mundial se tornou presente em vários países do mundo, com todas as suas conseqüências em termos da necessidade – que se impuseram por força dos fatos –, de se repensar as velhas interpretações que nos faziam ver o Brasil a partir de uma mentalidade basicamente européia.

Era preciso, portanto, quebrar este constrangimento externo – ou seja, a evidente decadência européia no período imediatamente posterior ao fim da guerra –, voltando-se para elementos mais próximos de nossas raízes históricas e culturais. Ou seja, “era preciso

inventar a autenticidade” (OLIVEIRA, 1997, p.189). Movimento que tinha como elemento comum para a época, uma espécie de “busca pelo novo”; ou seja, um sentimento de insatisfação e de reação (no caso do Brasil) às formas tradicionais de expressão intelectual e cultural que se manifestavam a partir das formas de organização social e política da República Velha. Formas identificadas com uma visão oligárquica: bacharelesca, particularista e patriarcal. Contra as quais se manifestavam diferentes tendências intelectuais e políticas Tanto à esquerda como à direita15. Ambas as tendências identificadas, de uma ou de outra forma, com o ideal da busca por uma espécie de “redescobrimento” do Brasil16.

15 Entre os principais exemplos que nos ajudam a caracterizar este momento histórico impar, temos: a criação da Ação

Integralista Brasileira (AIB); o movimento Tenentista; a formação da Aliança Nacional Libertadora (ANL); a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB); a formação da Coluna Prestes e a Semana de Arte Moderna.

Cremos, neste sentido, que não seja possível identificarmos qualquer perspectiva teórica com alguma relevância no debate político ou intelectual brasileiro durante a primeira metade do século XX, que não se refira em algum momento a interpretações como as de: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Paulo Prado, Oliveira Viana e Alberto Torres. Autores que, de alguma forma, expressaram a preocupação com a explicação das origens e características centrais de nossa identidade nacional. Gerações que viram um período descrito por alguns estudiosos como um período no qual se concebeu intelectualmente uma série de “retratos” ou interpretações sobre vários aspectos da formação cultural, política e econômica do povo e da nação brasileira. Um período em que se começou a configurar no Brasil uma maior percepção a respeito de uma suposta superficialidade (teórica e ideológica) das tradicionais interpretações historiográficas formadas, no século XIX, dentro do quadro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (criado em 1838). Interpretações que, a partir da década de 20, passariam a ser vistas como expressão intelectual representativa de interesses que se identificavam com interesses específicos de uma elite “empenhada na valorização dos feitos dos heróis da raça branca” (MOTA, 1994, p. 28) e não da nação brasileira como um todo. Fruto de uma concepção, entre outras coisas, racialmente preconceituosa, e que buscava fundamentar sua interpretação sobre os motivos do atraso econômico (e da maioria das mazelas) do Brasil, a partir da existência da miscigenação, e da formação histórica de sub-raças (supostamente inferiores) na constituição étnica (mestiça) do povo brasileiro.

Este sentimento geral de insatisfação e reação às formas de pensar o Brasil em bases preconceituosas e racistas contagiou a Semana de Arte Moderna de 1922, influenciando uma ampla gama de intelectuais e artistas brasileiros a buscar novas formas de expressão e compreensão sobre a formação da realidade histórica do país. Formas que fizeram este movimento tornar-se um marco em termos de influência cultural em relação a toda uma geração de artistas e intelectuais brasileiros ao longo de toda a primeira metade do século XX. Um movimento com traços de revolução cultural que se retro-alimentava a medida que os primeiros impulsos artísticos fomentavam a formação de novos pensadores e intelectuais que, por sua vez, alimentavam de novas idéias esta nova classe artística em plena ebulição. Todos, de certa forma, constituindo, numa espiral, a formação discursiva de uma nova matriz cultural

de interpretação17 da realidade histórica brasileira. Uma nova perspectiva que passa a dar importância maior à força e a identidade cultural e mestiça do povo brasileiro – tal como apresentadas por Gilberto Freyre (1933) –; a natureza mercantil da colonização e suas conseqüentes mazelas para a constituição da sociedade brasileira – interpretação de Caio Prado Jr (1933, 1942) –; a herança neoportuguesa e patriarcal segundo a qual se constituiria o cerne da “cordialidade” do povo brasileiro – segundo Sérgio Buarque de Holanda (1936).

Foi, no entanto, com advento do Estado Novo (1937-1945), que se iniciou efetivamente a constituição, no Brasil, de um ambiente institucional, político e econômico mais favorável à solidificação do que viria a se conhecer posteriormente como uma ideologia

desenvolvimentista. A diferença básica, portanto, está em que com o advento do Estado Novo as novas matrizes de interpretações históricas, sociológicas e antropológicas sobre o Brasil, puderam melhor ajustar-se – do ponto de vista operacional –, a partir de propostas mais consolidadas de planejamento e programação econômica estatal. O marco que separa o “período modernista” e a formação da nova “ideologia desenvolvimentista” – dentro do quadro de formação do pensamento econômico e social brasileiro – está associado, portanto, à incorporação da dimensão do planejamento econômico enquanto elemento central no debate sobre a constituição de um Estado-Nação soberano e independente. Impulsionado a partir de um processo de crescimento econômico induzido pela industrialização, e coordenado e fomentado pela atuação estatal.

O movimento modernista – assim como as obras dos principais ensaístas brasileiros das décadas de 20 e 30 –, no entanto, não deve deixar de ser visto como um movimento cultural de fundamental importância para a construção dos alicerces intelectuais e das condições de

possibilidade epistêmicas que inspiraram alguns dos principais conceitos e perspectivas desenvolvimentistas das décadas de 40 e 50 no Brasil. Neste sentido, para Lúcia Lippi Oliveira (2001), a presença de autores modernistas e progressistas como Oliveira Viana e Alberto Torres, por exemplo, foram de fundamental importância para a constituição do pensamento de um dos principais autores do movimento intelectual desenvolvimentista das décadas de 50, qual seja: Celso Furtado18. Segundo esta interpretação: “o significado dessa

17Uma trajetória, uma tradição, um paradigma no sentido kuhniano ou, simplesmente, o embrião de uma formação discursiva

no sentido de Foucault (1969).

matriz [modernista] é muito importante porque apresenta novas explicações para um velho problema” (OLIVEIRA, 2001, p.146), qual seja: o atraso político, econômico e social do país. Problema que se mantém enquanto dilema intelectual e político; mas que, ao mesmo tempo, parece mudar de objeto e figura à medida que é apresentado à luz de novas interpretações inspiradas pela revisão do pensamento social brasileiro das décadas de 20 e 30. Interpretações que vão, passo a passo, fazendo com que o Brasil comesse a deixar de se ver como um país atrasado porque sua população é miscigenada, colonizada por portugueses degredados com espírito aventureiro e predatório; ou porque a Igreja Católica impedia o desenvolvimento do capitalismo ao condenar o lucro; ou ainda porque abaixo do trópico (com as três raças tristes) era impossível alcançar-se a civilização (OLIVEIRA, 2001, p. 146).

O Brasil neste momento começava a se ver como atrasado, não mais por uma fatalidade étnica ou de natureza física, mas sim porque sua formação histórica singular o havia conduzido a esta condição; porque o sistema de comércio mundial nos havia formatado como país com estrutura econômica subdesenvolvida e dependente em relação ao comércio exterior dos países centrais; porque o Estado brasileiro havia sido formado por meio de uma relação histórica patrimonialista (o qual havia inibido o desenvolvimento político e social das camadas menos favorecidas); etc. Agora, de acordo com as novas interpretações estruturalistas, culturalistas e historicistas emergentes, não havia a priori mais problemas que não pudessem ser compreendidos e superados por dentro e por meio da nossa própria história. Através da nossa própria capacidade de organização social, econômica, política e cultural. Cabia a nós, portanto, dessa vez, a responsabilidade de mudar o rumo dos fatos e imprimir uma nova estrutura econômica e social capaz de nos elevar a uma condição de desenvolvimento, organização e progresso material e cultural.

A nova matriz ideológica desenvolvimentista que irá se consolidar de forma definitiva apenas na década de 50, se alimenta, no entanto, por esse ponto de vista, ainda desse “espírito modernista” das décadas anteriores. Substituindo a noção preconceituosa e racista que tentava explicar o atraso do país com base em preconceitos de raça e credos religiosos, por uma compreensão mais “historicista” (sociológica, econômica e culturalista), que prioriza a compreensão das raízes históricas (em sua maioria aceitas como de origem colonial) que constituíram a condição de subdesenvolvimento da sociedade brasileira. Uma nova perspectiva que se alimenta ainda da inspiração modernista que visava superar o atraso

brasileiro, facilitando o acesso de nossa consciência intelectual em relação às fontes primárias e originais de nossa fria condição histórica de país subdesenvolvido. Uma realidade que se apresenta, por fim, aos olhos da nova elite política e intelectual brasileira em formação, como o resultado histórico de um “Estado Nação” em construção.

É neste sentido que podemos afirmar, portanto, que são com base na tradição intelectual das décadas de 20 e 30 que uma nova ideologia desenvolvimentista se alimenta em suas raízes, tradição e condições de possibilidade histórica em geral. Tendo em vista o ideal da construção de um Estado nacional independente e desenvolvido. Um projeto ambicioso que terá como um de seus principais instrumentos as técnicas de planejamento econômico que despontam, em meados da década de 40, como fundamento de um processo de industrialização que começa a se afirmar como solução mundialmente considerada factível para países que, como o Brasil, passa a serem considerados como subdesenvolvidos. Ambas estas condições, portanto, compondo as condições de possibilidade que, como um todo, vão favorecer o deslanchar da ideologia desenvolvimentista durante a década de 40 e 50.

3.3 O PAPEL DO PLANEJAMENTO ECONÔMICO E A INTERPRETAÇÃO DO