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Um novo papel para o estudo das ideologias: a perspectiva hermenêutica de Paul

2.2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO DE REFERÊNCIA

2.2.2 Um novo papel para o estudo das ideologias: a perspectiva hermenêutica de Paul

Um dos mais importantes temas de discussão das ciências sociais desde o final do século XIX está diretamente relacionado ao papel que o conceito de ideologia tem assumido enquanto possível elemento constitutivo ou responsável último por uma espécie de deformação de toda ou qualquer forma de produção de saber e conhecimento. O conceito de ideologia, desde Marx, representa, portanto, esta expressão de saber que é concebido como elemento de desfiguração da realidade em nome de um interesse de classe. Um saber que se apresentaria em nome da dominação e do obscurecimento da realidade social9. Desde o

9O termo ideologia foi empregado pela primeira vez por Destutt de Tracy, em 1801 (em um livro chamado Eléments

d`Ideologie). Com ele, Tracy queria significar o estudo científico das idéias. Mas tarde, no entanto, em 1812, Destutt de Tracy e seu grupo (discípulos todos do enciclopedismo francês) entraram em conflito com Napoleão, que passou a ridicularizar os adeptos de Tracy, chamando-os de ideólogos, no sentido de que viviam na abstração das idéias e esqueciam a realidade. Foi Marx, por fim, quem deu ao termo o seu formato mais conhecido como caráter de ilusão, de deformação, de inversão do real (ARAÚJO, 1998, p. 173; LÖWY, 2003, p. 11).

aparecimento do conceito marxista de ideologia, até os dias de hoje, no entanto, uma série de outras conotações e usos passa a compor a literatura básica de referência que tem estudado as relações entre ciência e ideologia. No campo da sociologia, Mannheim atribuiu à ideologia um papel mais geral de representação de todo ou qualquer grupo ou classe social, legitimando, estabilizando ou reproduzindo o todo social (ARAÚJO, 1998, p.173). Para ele, o próprio cientista social deveria estar consciente de que fala sempre a partir de um lugar ideológico (não há lugar privilegiado fora da ideologia para as ciências, segundo Mannheim). Sendo assim, Mannheim propõe, em termos epistemológicos, um campo específico para o estudo da ideologia; qual seja: a chamada sociologia do conhecimento (ARAÚJO, 1998, p.185). Numa linha de raciocínio que se inicia em Mannheim, mas que vai muito além dele, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, defende que o papel fundamental de toda ou qualquer análise crítica da ideologia é o de desvendar os interesses por detrás de toda forma de saber – aqui, inclusive, o próprio saber científico. Neste sentido, a crítica da ideologia assume, para Habermas, um papel transcendental enquanto instrumento voltado para a busca da emancipação humana. Uma função que só pode ser corretamente compreendida num contexto onde a mesma possa realmente representar uma atitude auto-reflexiva e não instrumental. Atitude que se daria em função de uma necessidade de desobstrução das barreiras ideológicas que perpassam a esfera da compreensão hermenêutica (a qual teria o objetivo, por sua vez, de compreender o sentido das normas que institucionalizam os papeis sociais em nome da ampliação da razão comunicativa10), e que invadem o campo da razão reflexiva voltada para a busca de objetivos de caráter emancipatórios (função típica das

ciências sociais críticas) (HABERMAS, 2009).

A grande diferença, portanto, entre a dimensão do pensar reflexivo de Habermas e o pensamento crítico de Marx, por exemplo, é a pretensão marxista de falar da ideologia a partir de fora – pressupondo a possibilidade de um saber que pudesse ser, ao mesmo tempo, científico e emancipatório –; enquanto que Habermas (neste ponto mais próximo de Mannhein), desde o início, já pressupõe a impossibilidade de tal empreitada. Para Habermas – seguindo aqui seus mestres da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer –, a crítica é

10 Para Habermas, segundo Ricoeur, a esfera da ação comunicativa representa a esfera do interesse prático (no sentido

kantiano), voltado para a “interpretação das mensagens trocadas na linguagem ordinária, mediante a interpretação dos textos transmitidos pela tradição” (RICOEUR, 1990, p. 122).

tida como apenas “uma” das dimensões da razão humana (a qual teria a função reflexiva ou filosófica específica da busca pelo interesse emancipatório); enquanto que às ciências

empírico-analíticas, caberia um pensar ou saber instrumental voltado para o domínio de seus objetos de estudo; tendo ainda às ciências histórico-hermenêuticas a função de interpretar e ampliar o domínio da ação comunicativa.

Outro ponto de divergência entre Habermas e Marx, neste ponto, é a pressuposição marxista em considerar a ideologia enquanto fenômeno estritamente voltado para sua determinação em termos de classes sociais; o que a vincularia diretamente à sua condição restrita de fenômeno relacionado às condições de trabalho e reprodução material da sociedade. Para Habermas, no entanto, a ideologia representa uma forma de obstrução da comunicação e do interesse emancipatório que pode estar atrelada a várias outras formas de representação social. Representações que não se restringiriam estritamente à sua representação de classe, mas que também se estendem ao domínio, inclusive, das ciências empírico-analíticas, as quais contém uma espécie de saber que representa uma forma de poder (instrumental) que acaba, muitas vezes, por se sobrepor politicamente sobre quaisquer outras formas de manifestação cultural11.

Seguindo esta linha de discussão, podemos afirmar que é dentro desta complexidade de significados dados em torno do conceito de ideologia – que perpassa os pensamentos de Marx, Mannheim, Habermas entre outros – que um dos mais importantes filósofos contemporâneos de língua francesa, Paul Ricoeur, procura em meados da década de 70 nos apresentar uma alternativa filosófica que se pressupõe capaz de solucionar alguns destes impasses criados em termos da relação entre as noções de ciência e ideologia. Num texto sugestivo que leva, não por um acaso, o nome de “Ciência e Ideologia”, Paul Ricoeur procura propor que o problema da ideologia não deva ser visto como algo completamente independente de todo ou qualquer tipo de produção de saberes científicos. Para ele, o problema da dicotomia criada entre estes dois conceitos se esconde, em última instância, na própria forma dicotômica e rival de se identificar inicialmente estes conceitos. Para Ricoeur, é dentro desta própria dicotomia epistemológica que estaria a fonte de todos os equívocos existentes sobre a compreensão do problema da ideologia. Na verdade, o problema, segundo

Ricoeur, parece estar na falta de percepção do verdadeiro papel da ideologia para a construção do saber científico. Neste sentido, a ideologia não deveria representar um empecilho para o conhecimento objetivo. Muito pelo contrário, seria através da ideologia que todo conhecimento se tornaria realmente possível. A ideologia, portanto, é a fonte de construção simbólica de qualquer forma de saber. Pois é através dela que se pode constituir, de forma inequívoca, a identidade social do qual partem todas as formas de conhecimento.

Seguindo esta linha de raciocínio, Ricoeur busca desenvolver um modelo de interpretação da relação entre ciência e ideologia que busca demonstrar as vantagens de se apresentar esta questão tendo em vista o que ele chamará de suas diferentes funções; quais sejam: a função geral; a função de deformação e a função de dominação da ideologia. Funções construídas dentro de um quadro mais amplo de interpretação que busca definir, em última instância, a ideologia como um elemento constitutivo do próprio saber humano. Neste sentido, Ricoeur propõe que “o código interpretativo de uma ideologia é mais algo em que os homens habitam e pensam do que uma concepção que possam expressar” (RICOEUR, 1990, p. 70), ou seja, uma fórmula hermenêutica ou um paradigma pela qual todo saber se tornaria compreensivo e capaz de existir socialmente como fundamento ou habitat natural do conhecer.

No início de seu texto – escrito originalmente em 1972 –, Ricoeur chega inclusive a falar sobre supostas “múltiplas armadilhas a que o tema da ideologia pode nos lançar” (RICOEUR, 1990, p. 64). Ou seja, ele busca nos alertar sobre as dificuldades pelas quais o tema da ideologia se encontra ao assumirmos, ao mesmo tempo, ou uma definição do

fenômeno ideológico ou o estatuto epistemológico das próprias teorias da ideologia. No primeiro caso, Ricoeur destaca o problema de se definir o fenômeno ideológico como um fenômeno em termos de classes sociais (aos moldes da tradição marxista). Neste sentido, ele pretende propor um conceito mais amplo de ideologia que parta de uma análise sobre sua “função geral” – entendida como elemento de unificação e construção de uma identidade social (papel “mediador” da ideologia) – chegando, por fim, a identificar suas funções mais específicas voltadas, estas sim, para seu papel de dominação e de deformação (as quais seriam a chave para qualquer interpretação tipicamente marxista sobre o problema da ideologia).

Para Ricoeur, portanto, as funções de dominação e deformação, ao contrário das interpretações marxistas, não representam o elemento fundamental ou decisivo do fenômeno ideológico, mas sim funções particulares com o objetivo de restituir historicamente uma situação de identidade ideológica ameaçada. Para ele, a função inicial e fundamental de qualquer ideologia seria, portanto, – ao contrário da visão “negativa”, marxista –, o de “perpetuar um ato fundador inicial segundo o modo fundador da ‘representação’” (RICOEUR, 1990, p.71) Ou seja, a função de formar e manter a energia inicial da convicção de um grupo tendo em vista a manutenção de sua unidade. Sendo a função de dominação co- extensiva, portanto, à constituição de um grupo social; na medida em que procura, através da autoridade, garantir a tomada de decisão fundamental de uma comunidade histórica com o objetivo de constituir, finalmente, uma verdadeira realidade política (RICOEUR, 1990, p. 72). Aqui, a manutenção de uma unidade social comunitária é vista, por Ricoeur, como sendo o resultado de uma necessidade de constituição política desta comunidade. O que exigiria alguma forma de tomada de decisão que não condiz inicialmente com uma situação de dúvida ou falta de uma crença unificadora moldada a partir de uma ideologia constituída historicamente. A função de deformação, por sua vez, se tornaria necessária em situações em que a realidade, ou a vida real, não fosse mais capaz de constituir a base da unidade social. Sendo necessário neste caso, portanto, a criação de um imaginário capaz de ideologicamente operar uma inversão da realidade com o objetivo de reconstruir a unidade simbólica do grupo social.

É tendo em vista estes elementos de análise fenomenológica e hermenêutica que Ricoeur busca demonstrar de que forma ele próprio pretende propor uma concepção alternativa de ideologia que corresponda, ao mesmo tempo, a uma análise em termos de classes sociais (marxista), mas sem partir exatamente desta mesma iniciativa, desde o início, para fins de delimitação de seus próprios conceitos em termos de classes sociais (RICOEUR, 1990, p. 67). Dessa forma, Ricoeur propõe que se deva ter como objetivo “corresponder a essa análise (de classes sociais), mais do que partir dela” (RICOEUR, 1990, p.67). Ou seja, que se chegue a uma conceitualização de ideologia baseada em termos de suas funções geral e

específica, e enquanto unidade criadora de elementos voltados para a justificativa da manutenção de uma identidade de classe (tendo em vista sua função geral e simbólica de constituir uma unidade ou identidade de grupo). Uma análise onde o papel da crítica de

ideologia passasse a ser, portanto, fundamentalmente voltado para a crítica das formas de

dominação e deformação que teriam como fim – da mesma forma como em Habermas –, um interesse emancipatório. Um interesse que nos servisse como elemento que nos impulsiona à tarefa crítica constante a qual, segundo Ricoeur, “devemos sempre começar, mas que por princípio, não devemos nunca terminar” (RICOEUR, 1990, p. 94).

2.3 A DIMENSÃO REGIONAL DO DESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO E O