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Leon-Paul Fargue, Léon Felipe, Carmen Bernos de Gasztold, Arnoul Gréban,

2. TRADUÇÃO, TRADUTORES E A FORMAÇÃO DO CÂNONE Neste capítulo, proponho-me a pensar quais são, afinal, os

3.3 A atuação dos tradutores

2.2.2. A tradução como crítica

Quando falamos da tradução, sobretudo da tradução de poesia, ao mesmo tempo estamos falando de estratégias de leitura/interpretação de uma dada tradição. A ideia de tradução como crítica pode indicar tanto a escolha do objeto quanto o movimento de vai-e-vem no interior da linguagem que se processa durante a experiência de tradução do poema. Interessante lembrar que a palavra crítica vem do verbo grego krino – que quer dizer escolher. Crise, crítica e critério possuem a mesma etimologia. E traduzir também exige critérios e escolhas.

No ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, Haroldo de Campos, apoiado no ideário de Ezra Pound, defende que o motivo primeiro do tradutor que seja também poeta ou prosador deve ser a formação de uma tradição ativa. Afirma que o escritor-tradutor, ao configurar determinada tradição por meio da tradução, faz um exercício de compreensão e também uma operação de crítica “ao vivo” (H. CAMPOS, 1976, pp. 31-32, grifos meus). Hugh Kenner, na introdução à

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obra Translations, de Pound, diz que: “o trabalho que precede a tradução é, em primeiro lugar, crítico, no sentido poundiano da palavra crítica, uma penetração intensa da mente do autor em seguida, técnico, no sentido poundiano da palavra técnica, uma projeção exata do conteúdo psíquico de alguém” (apud H. de CAMPOS 1976, p. 26). Berman, no entanto, sustenta que o ato de traduzir, e não o de criticar, é que promove tal penetração da individualidade estrangeira. O ato crítico repousaria em uma abordagem, não em uma penetração. Ao comentar um fragmento de Novalis sobre o esforço de a tradução “imitar” o original, Berman afirma:

O fato de que o ato de traduzir repouse efetivamente sobre uma tal penetração da individualidade estrangeira e sobre uma “mímica genética” é atestado pela experiência de todo tradutor literário: a relação do tradutor com o texto que traduz é tal (com seu autor e sua língua), que ele penetra nessa zona da obra na qual ela está, mesmo acabada, ainda em gênese. O tradutor penetra por assim dizer na intimidade do autor com sua língua, quando sua língua privada procura investir e metamorfosear a língua comum, pública. E é a partir dessa relação que o tradutor pode esperar “imitar” em sua língua a obra estrangeira. O ato crítico, ao contrário, repousa sobre uma abordagem, não sobre uma penetração. Nesse sentido, não é uma experiência, e o tradutor está mais próximo do ator ou do escritor do que do crítico. Ou antes, seu modo de identificação é diferente (BERMAN 2002, p.191).

Mas Berman, quando sugeriu que a análise textual devia ser efetuada no horizonte da tradução, pois, segundo ele, “o texto a ser traduzido apresenta uma sistematicidade própria que o movimento da tradução encontra, enfrenta e revela” ( 2002, p. 20), mostrou que entendia a tradução como uma forma de crítica à medida em que ela torna manifestas as estruturas ocultas de um texto. Essas estruturas configurariam a sua letra.

Talvez seja adequado dizer que o tradutor está mais próximo do crítico na fase de ecolha, pré-tradução, leitura e interpretação do original, e do escritor quando do momento da experiência da tradução, embora esses movimentos se entrelacem. Como resumiu Meschonnic,

“il s’agit d’entrer dans l’oeuvre, de reconnaître ce qui la fait, et qui est son langage [...]. Il s’agit de la lecture-écriture d’une oeuvre [...]”(MESCHONNIC 1970, p.18). Junqueira argumenta na mesma direção quando afirma que

A tradução de poesia é também, sob certos aspectos, um proveitoso exercício de crítica paralela, pois a todo instante esse homo ludens em que consiste o tradutor ― ou o recriador, [...] está diante do complexo e prismático problema da escolha, dessa escolha que se processa no plano do significado e do significante, o que envolve, como já se disse aqui, opções semânticas, fonéticas, morfológicas, sintáticas, prosódicas, rítmicas, métricas, rímicas, estróficas - enfim, um espectro ambíguo e infinito constituído pelas chamadas figuras de linguagem (JUNQUEIRA, 2009, s/p).

Para Berman, “a leitura do tradutor é [...] uma pré-tradução, uma leitura efetuada no horizonte da tradução. E todos os traços individualizantes da obra [...] descobrem-se tanto no movimento de traduzir quanto anteriormente. É nela que esse faz sua “crítica” clara, autônoma” (BERMAN, 1995, p.68). Para ele, a tradução é ao mesmo tempo “transcriação” ou “transposição criativa” e, ainda, “reflexão crítica”. Ele também advoga que a tradução tem um papel que não é o de simples transmissão, simples operação de mediação do sentido. Teria, isto sim, um papel “tendencialmente constitutivo de toda a literatura, de toda a filosofia e de toda a ciência humana” (IDEM, 2002, p. 328). Segundo Berman, “no âmbito da literatura, a moderna poética e até mesmo a literatura comparada mostraram que a relação das obras (escritura primeira) com a tradução (escritura segunda) caracteriza-se por uma produção recíproca”. (IBIDEM, p. 329). Berman também destaca o caráter de “potencialização” da obra que é desencadeado pela tradução, por meio do “enriquecimento da língua e do alargamento das redes culturais complexas” (GODARD, 2001, P. 51).

No entanto, a ideia de tradução como crítica difundida pelos poetas concretos ressaltava o poder da escolha e o caráter militante da mesma:

Como ato crítico a tradução de poesia não é uma atividade indiferente, neutra, mas – pelo menos

segundo a concebo – supõe uma escolha, orientada por um projeto de leitura, a partir do presente da criação, do ―passado de cultura. É um dispositivo de atuação e atualização da ―poética sincrônica. Assim é que só me proponho traduzir aquilo que para mim releva em termos de um projeto (que não é apenas meu) de militância cultural. (CAMPOS, H.; PAZ. 1994, p. 184-185).

Haroldo explica que o seu projeto “[...] implicou, inclusive, uma cunhagem neológica de termos ―especificadores: recriação, transcriação, reimaginação (caso da poesia clássica chinesa), transparadisação ou transluminação (Seis Cantos do Paradiso de Dante) e transluciferação mefistofáustica (Cenas Finais do Segundo Fausto de Goethe)”. Tudo isso, segundo ele, serviu para “polemizar com a ideia ―naturalizada de tradução literal, fiel ou servil, vista quase sempre como uma atividade subalterna diante do texto original” (IBIDEM). Perrone-Moisés reconhece ambas as noções ao dizer que a tradução é uma forma privilegiada de crítica por ser “consequência de uma escolha significativa; e, em seguida, trabalho compreensivo e seletivo de desmontagem e remontagem do texto original (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 14).

3.4 A formação do cânone dos poetas concretos no Brasil