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A transcendência do eu pela circunstância natural

Define-se por circunstância natural o mundo no qual cada um está submerso, incluindo tudo aquilo que não é o homem na sua realidade radical ou solidão. Entrelaçados pela vida, homem e circunstância constituem-se numa esfera relacional, visto que “[...] aqui e eu, eu e aqui, somos inseparáveis pela vida”. (O.C., v 7, 1969, p. 126). O mundo, ou circunstância, como prefere Ortega y Gasset, é tudo aquilo que faz parte do contorno humano com o qual o homem precisa contar para viver. Como já preludimos nos capítulos anteriores, “o homem, ao ter que estar no mundo, encontra no seu entorno uma intricada rede, tanto de facilidades como de dificuldades” (O.C., v 5, 1955b, p. 337). Dentro desse mundo circunstancial, cada homem tem que construir sua existência na realização de suas opções. A circunstância em que o indivíduo se encontra é o contorno material que o envolve, como a sociedade em que se encontra. São várias as situações presentes em que cada um se vê

forçado a defrontar-se ativa e/ou passivamente, não tendo como fugir ou transferir para o outro. Escreve:

A circunstância – repito -, o aqui e agora dentro dos quais estamos inexoravelmente inscritos e prisioneiros não nos impõe em cada instante uma única ação a fazer, mas várias possíveis e nos deixa cruelmente entregues a nossa iniciativa e inspiração; portanto a nossa responsabilidade. (O.C., v 7, 1969, p. 103, grifo nosso).

No seu livro El hombre y la gente, o nosso filósofo identifica três momentos que se repetem ao longo da história humana:

1. O homem sente-se perdido entre as coisas – Alteração;

2. O homem reage às intempéries da natureza fazendo teoria – Ensimesmamento; 3. O homem executa seus planos preconcebidos – Pragmática.

Partindo dessa tríade da condição humana, a vida, para o homem, define-se ativamente, sendo de responsabilidade pessoal o agir sobre a realidade. “[...] Estar na circunstância não pode significar um passivo fazer [...]” (O.C., v 5, 1955a, p. 134). No mais, o que pode ser feito pelo homem é a criação de mecanismos materiais capazes de garantir tempo suficiente para a elaboração da sua vida ontológica. Viver, como já foi dito anteriormente, implica numa postura ativa frente às limitações impostas pela circunstância. A ação propriamente humana está diretamente relacionada ao pensamento reflexivo e criativo. Longe de uma defesa do idealismo, Ortega y Gasset tem a seguinte postura, como resume Carvalho (2003, p. 36): “não vivemos para pensar, isso é certo, mas pensamos para viver, esse é o entendimento orteguiano, a razão está identificada com a vida”.

O primeiro confronto, descrito por Ortega y Gasset, na relação homem e circunstância dá-se na escolha deliberada pela vida, descrita nas Meditaciones de la técnica. Parece-nos que o autor não vê problema nesse plano, conforme identificamos na referência à tranquilidade do homem frente à natureza feita por Nietzsche. Corresponde, especificamente, ao esforço humano de manutenção da vida orgânica e também ontológica. No confronto com as coisas, o homem expressa seu domínio sobre o mundo material ao criar a técnica, isso porque “ele tem [...] de lutar forçosamente e constantemente contra as dificuldades que se contrapõem ao alojamento de seu ser no mundo”. (O.C., v 5, 1955a, p. 337). A técnica é a expressão primeira do desejo humano de continuar existindo como protagonista de seus atos.

Como vimos no primeiro capítulo, surge então, a partir da necessidade humana de tornar a circunstância material favorável à vida, a técnica, sendo ela uma resposta à dificuldade imposta pela natureza no alojamento do ser humano. Assim sendo, segundo Ortega y Gasset (1955b), a técnica é uma reforma que o homem impõe à natureza, em vista da satisfação de suas necessidades primárias. Essa reforma reduz suas necessidades, na mediada em que a satisfação orgânica deixa de ser problema. O homem, ao criar técnicas e artefatos, não busca somente a satisfação das suas necessidades biológicas, mas inventa meios que atinjam essa satisfação com o máximo de economia e o mínimo de esforço e tempo. Surge então uma dúvida: por que o homem pretende economizar seu esforço e tempo para satisfazer suas necessidades naturais? Considerando que a vida humana não se reduz ao biológico, a reação do homem sobre o meio não se limita à satisfação das necessidades impostas pela natureza. Ao reformá-la, o homem busca encontrar tempo para se ocupar de elementos que são supérfluos, que, nesse contexto, significa tudo que o homem faz que não vise à, necessariamente, responder às necessidades biológicas. Para o pensador hispânico, o homem não age aleatoriamente, mas dentro de um projeto que tem para realizar o que ele pretende ser. Portanto, a técnica não é algo separado da vida, mas um elemento ativo na sua construção, estando a serviço de um modelo de vida humana.

Diria Ortega y Gasset que o homem é um vocacionado para ação. Com a técnica, o homem assume o mundo como construção de si. Arquiteto de seu próprio ser no mundo, ele define-se como agente que se apropria das coisas com uma determinada finalidade. O que nosso pensador pretende evidenciar é a pragmática das coisas que estão diante de nós, oferecendo-se e servindo-nos. Explica:

As coisas não são originariamente coisas, senão algo que procuro aproveitar ou evitar a fim de viver e viver da melhor maneira possível – portanto aquilo com que me ocupo, com que atuo e opero, com que consigo ou não consigo realizar o que desejo, em suma, são assuntos em que ando constantemente. (O.C., v 7, 1969, p. 110).

O que podemos concluir, a partir dessa análise de Ortega y Gasset, é que o homem encontrou, na técnica, a certeza de um mundo humano baseado na crença do possível. Através dos inventos técnico-científicos na modernidade, o homem passou a crer que os problemas que ameaçam a vida biológica podem ser resolvidos. Com o uso adequado da técnica, as necessidades básicas deixam de ser problema. No entanto, se as ciências demonstram total

domínio sobre a vida material, propondo-se a resolver todos os problemas dela, escapa de suas intervenções objetivas parte das circunstâncias que compõem o mundo humano.