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2.3 A vida como realidade radical

2.3.2 Ensimesmamento

e o esporte, a morte e a ressurreição. Se a vida é escolha deliberada, esta implica em uma série de momentos satisfatórios para o humano, na busca constante de salvação, no intuito de dar sentido sempre ao que faz, por isso a vida também é uma exuberância de jovialidade e bom humor.

2.3.2 Ensimesmamento

Atrelado à ideia de projeto, Ortega y Gasset (1955b) desenvolve o conceito de

ensimesmamento, que representa um ponto-chave no seu pensamento. Para des-cubrir a

realidade, o homem precisa se retirar do mundo factual e, por alguns instantes, ficar atento à sua interioridade. No seu entendimento, somente o homem é capaz de ficar a sós consigo mesmo, desligando-se, por alguns instantes, do mundo circunstancial, para pensar em realidades que não estejam diretamente ligadas ao biológico. O animal é sempre escravo das coisas, do mundo que o circunda, inexoravelmente tendo que ocupar-se delas, por isso sua vida define-se pela alteração, por viver sempre em função da circunstância. É a capacidade de reconhecer a vida como sua e de assumi-la na elaboração de realidades favoráveis ao viver que garantem ao homem libertar-se dessa condição zoológica. Isso é possível porque ele tem a capacidade de refletir, de pensar e de imaginar na solidão de seu ser realidades que não estão diretamente ligadas ao orgânico, tanto é que “o homem não tem empenho algum em estar no mundo, ele se empenha é em estar bem”. (O.C., v 5, 1955b, p.328). Segundo Ortega y Gasset, para o homem existir significa desde logo e sempre bienestar.

Esse aspecto da solidão é fundamental na construção do conceito de realidade radical, visto que é nesse momento em que o homem teoriza a vida. O pensamento, em Ortega y Gasset (1969), não pode ser entendido cartesianamente, como algo que caracteriza o sujeito e o define, separado do mundo, adversamente, Ortega y Gasset, através da sua visão circunstancial, aproxima o pensamento da vida. A razão assume uma função vital no direcionamento do que o homem faz com a vida.

Uma das dimensões fundamentais da vida humana é essa capacidade de escolha via razão. Essa capacidade reflexiva o diferencia dos outros seres da natureza. A ação dita humana é sempre uma ação refletida, antecedida pelo mecanismo do pensamento, distinta da ação dos animais, que é sempre automatizada, por seguir sua condição natural. O homem já necessita imaginar, criar realidades que antecedam ao seu agir e que lhe sejam favoráveis à vida, isso porque, “viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que

vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir”. (O.C., v 4, 1955a, p. 171, grifo do autor). No entanto, não há criação sem ensimesmamento.

O projeto e a atuação são duas realidades indissociáveis para Ortega y Gasset (1955), visto que viver é fazer algo para continuar existindo. Portanto, o ensimesmamiento corresponde ao que o homem faz primeiramente com a sua existência, na busca de transformá-la possível de garantir o seu viver. Na visão de Ortega y Gasset (1955a, p. 88) “[...] não pode falar de ação senão na medida em que estará regida por uma prévia contemplação, e vice-versa, o ensimesmamiento não é senão um projetar a ação futura”. Com isso, lança uma crítica a partir da relação do pensar com o agir humano ocidental, por acreditar que o seu destino é exercitar o intelecto, construindo uma civilização baseada no primado grego do pensamento, capaz de se justificar por si mesmo. Toda a sua teoria é, na verdade, uma luta contra esse tipo de concepção, pois tudo deve estar a serviço da vida e não a vida ser um elemento de submissão de um elemento circunstancial, como no caso, a razão humana, isso porque “o homem que é si mesmo, que está ensimesmado, é o que, como se costuma dizer, está sempre sobre si, portanto, que não se solta das mãos, que não se deixa escapar e não tolera que seu ser se aliene, se converta em outro que não é ele”. (O.C., v 5, 1955a, p. 73). O que Ortega y Gasset defende, nesse caso, não é uma recusa do pensamento em vista de um vitalismo ou de um emotivismo, pelo contrário, contrapõe-se a qualquer forma extremista de pensar a vida, defendendo a valorização de tudo que o homem precisa contar para o seu existir, desde que estes estejam vinculados a um projeto de existência. É por isso que considera a mais grave aberração intelectualista da beataria da cultura o fato de a cultura e o pensar serem postos como algo à parte da vida.

No ensimesmamento, portanto, o homem não exercita somente sua inteligência. Ensimesmar-se vai além do pensar, pede também o uso da imaginação, a qual lhe permite ver- se diferente do que é e elaborar um projeto para si. É a própria vida que se faz nesse momento, totalmente permeada de imagens, situações que o homem constrói, no desejo de construir a si mesmo e a seu mundo. Por sua vez, Ortega y Gasset (1955b) acredita que, se o homem não tivesse o mecanismo psicológico de imaginar, o homem não seria homem, pois o ser homem é pura “possibilidade imaginária”.

É pelo fato do orgânico não ser para o homem um primado fundamental que Ortega y Gasset desenvolve, em sua obra Meditación de la técnica, um novo conceito de humano. Segundo o filósofo (1955b, p.329), “o homem é o animal para o qual só o supérfluo é necessário”. Ocorre que, para Ortega y Gasset, estar no mundo não é a questão fundamental

do humano, mas, como estar bem, isto sim, é a “necessidade das necessidades”. A técnica surge, para Ortega y Gasset (1955b), como expressão desse desejo humano de ter uma vida boa. É pela técnica que ocorre a criação do supérfluo15. Essa dimensão da vida ocorre

principalmente pelo desejo de existir de acordo com o que se elege para si como necessário à existência. Justifica-se que a ação humana é sempre uma ação refletida, antecedida pelo mecanismo do pensamento. O homem ensimesmado é aquele que assume o papel de protagonista da sua vida, convertendo o mundo em si mesmo.

Deste mundo interior emerge e volta para fora. Porém volta em qualidade de protagonista, volta com um si mesmo que antes não tinha – com seu plano de ação, - não para deixar-se dominar pelas coisas, senão para governá-las, para impor nelas à sua vontade e seu desígnio, para realizar nesse mundo exterior suas ideias, para modelar o planeta segundo as preferências de sua intimidade (O.C., v 7, 1969, p.86, grifo do autor).

Somente o homem tem esse privilégio de, por alguns instantes, desligar-se da circunstância, e meterse dentro de si para atender à sua própria intimidade:

[...] o homem goza desse privilégio de libertar-se transitoriamente das coisas, poder meter-se e descansar em si mesmo, e porque com seu esforço, seu trabalho e suas ideias, hão se voltar sobre as coisas, transformá-las e criar em seu entorno uma margem de segurança sempre limitada, porém sempre ou quase sempre em crescimento.(O.C., v 7, 1969, p.85).

A capacidade de viver pensando é o que torna o indivíduo humano. São momentos em que torna capaz de manter contato com o que lhe é mais íntimo. No entanto, esses momentos estão diretamente relacionados à circunstância, pois se o homem se desliga dela por alguns instantes é porque esta, de certa forma, o desafia. É por isso que as inovações sociais sempre estiveram relacionadas a homens voltados para a própria intimidade, como Buda, Maomé, Jesus e Newton, homens que refletiram sobre si e sobre a circunstância em que estavam imersos.

No movimento de reflexão, o homem busca adaptar o mundo a si, ao invés de adaptar- se a ele, fazendo com que a trágica realidade da vida, ontologicamente vazia, transforme-se em tarefa entusiasta que se aceita, isto é, em aventura e empresa. “O homem, queira ou não,

15 O supérfluo, na concepção de Ortega y Gasset (1955b), corresponde a tudo que ultrapassa o campo da necessidade orgânica. A ação humana está ligada diretamente ao bem estar que “implica na adaptação do meio a vontade do sujeito”. Nesse sentido o supérfluo passa a ser para o homem uma necessidade. O exemplo dado por Ortega y Gasset são as “casas de sudar” onde os povos primitivos usavam para aquecerem-se e embriagarem-se.

tem que fazer a si mesmo, se autofabricar”. (O.C., v 5, 1955b, p. 341, grifo nosso, trad. nossa). Ao assumir a vida como sua, o homem se depara com as condições materiais e sociais que se opõem a ele. Para enfrentá-las, busca criar virtualmente novas estratégias que considera vitais para si, transformando o mundo exterior de acordo com suas ideias.