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A “transição demográfica” na história da população brasileira

III. P ARA UMA HISTÓRIA DA POPULAÇÃO BRASILEIRA

3.3 A “transição demográfica” na história da população brasileira

Pelo que foi exposto, a problemática de uma “transição demográfica” no Brasil, visualizada na figura 12, leva-nos à formulação de algumas questões. A primeira delas, naturalmente, consiste na possibilidade de se aventar um regime, ou *regimes demográficos, relativamente duradouros, concernentes ao país no pré-hiato demográfico. Examinei a questão na seção anterior deste capítulo.

Seguindo adiante, já que é possível historicizar os mencionados regimes, poder-se-ia pensar em tentativas de definir a cronologia, ou cronologias, para este qualificativo “duradouro”. Assim, por exemplo, até que ponto caracterizar como sendo de “equilíbrio” a situação demográfica do passado anterior à transição não parte, mais uma vez, de uma falsa percepção da história? Não seria o caso de se postular a possibilidade de mudanças na população colonial brasileira, inclusive mudanças importantes, no passado? Em conseqüência, de que maneira operaria a dinâmica populacional na América portuguesa, considerando as diferenças regionais?

Para fixar idéias, e referendando uma periodização já consagrada pela historiografia, centro o foco num século XVIII estendido, cujo fim é, ainda, presenciado por Gregório Gonçalves e, provavelmente, por alguns dos seus filhos. Período esse a ser salientado pela quantidade de homens que imigram de Portugal, fato que influencia o crescimento da população. De fato, foi durante o setecentos que a paisagem demográfica na colônia se alterou profundamente, em função da exploração do ouro nas Minas Gerais e, logo em seguida, em Goiás e Mato Grosso. Não só a população aumentou de maneira significativa – 13 vezes, entre 1660 e 1760224 – mas, durante estes cem anos, foi substancialmente

modificada a distribuição espacial da população colonial.

Da mesma forma, também estou chamando a atenção para este longo século porque, do ponto de vista da história das fontes de informação para o

224 MARCÍLIO, 1973:10. De acordo com as estimativas de Contreira Rodrigues, a população colonial

somava, em 1660, 184.000 habitantes. Giorgio Mortara calculara, para 1772, 2.566.000 habitantes, enquanto o Abade Corrêa da Serra estimava, para o mesmo ano, uma população de 1.900.000 para [idem:9, 20 e 21].

estudo da população brasileira no passado, assiste-se nesse período A passagem do período “pré-estatístico” para o “proto-estatístico”.225 Assim sendo, estas

duas fases inserem-se nos largos anos que eu denominaria de “pré-transicional”: com efeito, o início da “era estatística”, marcada pela publicação do primeiro recenseamento geral em 1872, coincide com o início, no princípio lento, da queda da mortalidade na história da população brasileira (ver figura 12, em seguida).

225 Ver Capítulo I, nota 100.

226 Dados até década de 1960, MERRICK & GRAHAM, 1981:58.; ref. a 1970 e 1980, MARTINE &

CAMARGO, 1997/1998:61; 1980-1920 (incluídas projeções), IBGE, 2003.

227 Cf. LEVINE, apud FERREIRA & PATARRA, 1986:24-5.

Figura 12

A transição demográfica brasileira226

Finalmente, todo este processo tem como parte um “capitalismo” nascente, evidenciado principalmente no século XIX – e seu correlato processo de urbanização. Como tal fato teria erodido aqueles controles sociais227 que

mantiveram as altas taxas de mortalidade e de fecundidade do período anterior à transição demográfica? E, mais ainda, quando se verificaram modificações significativas nas relações de produção na história do Brasil e, principalmente, profundas transformações culturais, capazes de explicarem mecanismos de mudanças populacionais, ou seja, o desenrolar de mudanças estruturais características de uma transição demográfica?

Ora, parece-me que essas transformações já foram todas arroladas e suficientemente explicadas pela historiografia. Referimo-nos ao papel da chegada de grandes contingentes de estrangeiros no século XIX, e também no XX, fenômeno ligado ao processo de transição demográfica nas sociedades “emissoras”. A grande imigração está indelevelmente atada às transformações estruturais marcantes na segunda metade do século XIX brasileiro e, em certa medida, avança no XX. Tal fato corresponde, de certa forma, à tradicional periodização proposta pela história econômica, balizada pelos anos de 1850 e 1930, e que se caracterizou pela primazia ditada pelo café na sociedade brasileira e, numa outra perspectiva, pela consolidação do trabalho assalariado. Mais do que isso, o período praticamente teve início com a promulgação da “lei de terras”,228 ressaltando-se nos anos subseqüentes seus amplos efeitos; e, de modo

igual, pelas conseqüências do fim do tráfico negreiro, o que praticamente assinalou o começo da transição da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra assalariada. Evidentemente, não foi coincidência que a segunda metade do século passado viu crescer extraordinariamente a imigração estrangeira no país. Outras mudanças fundamentais ocorreram sob a égide institucional, como transformações na educação, a separação Igreja-Estado, o Código Civil, e assim por diante... Em torno desses temas, já se gastou muita e muita tinta.

Resumindo, conhecemos um pouco algumas bases do provável sistema, ou de alguns dos prováveis sistemas, que engendrariam os processos demográficos antes de 1830, data que poderia ser estendida até meados do século passado.229 Sabemos, também, das tendências recentes, datadas

principalmente de 1940 (ou 1930, se formos um pouco mais flexíveis) para cá: os demógrafos têm se dedicado ao estudo deste período, caracterizado pela presença de bons censos nacionais. Entretanto, no que se refere ao período 1850- 1930, justamente quando ocorrem as mais profundas mudanças estruturais na história brasileira, precisaríamos saber mais. Nesse intervalo, é possível sustentar que alguns dos sistemas demográficos restritos antes aventados tenham se mantido, 230

muito embora com modificações importantes.Ao mesmo tempo, devem ter

228 Lei N0 601, de 18 de setembro de 1850. Esta lei regulamentava o regime de terras, institucionalizando

a propriedade fundiária no Brasil [SANTOS, 1995:51].

229 NADALIN, 2003. 230 MARCÍLIO, 1984.

sido acionados mecanismos na sociedade brasileira para a montagem da transição demográfica, cujo conhecimento é vital para a compreensão global do problema. Ocorre-me o termo mutação para designar o conjunto das mudanças estruturais neste quase um século. É patente que tal conceito deve comportar as transformações demográficas, mesmo aquelas verificadas após o período em referência. Uma tal equação é ainda mais óbvia, se for considerada a lógica hipótese de uma articulação entre a dinâmica capitalista e a dinâmica demográfica. A sociedade brasileira, ao integrar-se de forma mais completa à economia- mundo, provavelmente assistiu a um aumento da mortalidade geral. Urbanizou-se parcialmente, e este processo sintetiza um aumento dos contatos interpessoais: com o interior – intensificando-se as migrações –, e com o exterior – ampliando- se o tráfico marítimo, abrindo-se em conseqüência os portos brasileiros às epidemias de trânsito e mercado internacionais, como a febre amarela e a cólera. Além disso, a concentração urbana, ontem como hoje, aumentavam os problemas de saneamento e saúde pública, agravados enquanto não fossem tomadas medidas de controle.

Esse provável crescimento da mortalidade, pensando numa situação menos pior no século XVIII, deve ter sido logo equilibrado em conseqüência de vários fatores, entre eles a crescente intervenção do Estado em prol da saúde pública, acompanhado na época pelos – cada vez mais – significativos progressos na medicina: a figura 12, acima, mostra uma queda inicial da mortalidade a partir da década de 1860. Na perspectiva do crescimento da população, suas altas taxas ainda no final do oitocentos foram compensadas pelo incremento populacional gerado pela imigração.231 Dessa forma, o resultado da intervenção estatal também

vinha se verificando na ocupação mais efetiva do território brasileiro. Com efeito, e ampliando-se a observação para toda a América Ibérica, o crescimento da população que, como dissemos, vinha ocorrendo desde o século XVIII, significou simultaneamente um processo de colonização interna e ocupação do território, dentro da máxima da época, gobernar es poblar. Fronteira e imigração foram parte constitutiva desse processo de contínuo crescimento demográfico.

231 MORTARA estimou que a contribuição direta e indireta da imigração estrangeira para o crescimento

da população brasileira, entre 1840 e 1940, traduziu-se em percentagens em torno de 19% a 23% [1947:19]. MERRICK & GRAHAM [1981:60], com base no trabalho de MORTARA, constroem uma tabela intitulada “Influência da Imigração no Crescimento da População Brasileira, 1872-1940”, enfatizando justamente o período que a historiografia denomina de “Grande Imigração”: as percentagens de crescimento populacional devidos à imigração variam bastante: 13,5%, 30,2%, 7,0% e 8,1%, respectivamente para as conjunturas de 1872-1890, 1891-1900, 1901-1920 e 1921-1940.

Para complementar, quero ressaltar ainda uma questão. Entre outros defeitos já mencionados, concernentes às questões teóricas, a problemática da transição demográfica é muitas vezes pensada em termos “nacionais”, ou seja, considerando evidências empíricas agregadas: foi assim, por exemplo, que foi construída a figura 12. É claro que, num país de dimensões continentais como o Brasil, tal abordagem é, no limite, insustentável, pois não é possível fixar-se na idéia de um processo único, global e sincrônico das mudanças referidas, na mesma medida que a própria história do Brasil não ocorre desta maneira. Mais uma vez, sustento que tal procedimento incorre no risco de homogeneizar o passado, inclusive sua geografia. Parece-me evidente que a desagregação, considerando a multiplicação dos estudos de caso bem escolhidos, deverá permitir um melhor entendimento do fenômeno, sem perder de vista a análise possível e desejável, mais geral, da ocorrência concreta de uma transição demográfica também como aspecto da expansão do capitalismo.232

Com relação às possibilidades de relativas sincronias no processo, creio não ser demais salientar a constatação de mudanças demográficas em grupos sociais determinados, já no final do século XIX.233 Isso comprovaria a hipótese

de que, em múltiplas situações, as histórias locais poderiam transcender as próprias tendências de uma história nacional, aproximando-se da história da sociedade burguesa ocidental. Os sinais de “modernidade” detectados nos comportamentos relativos à procriação e à nupcialidade entre os luteranos em Curitiba na passagem do século mostram que o fenômeno da queda da fecundidade não pode ser simplesmente analisado como uma exceção à regra, como uma excepcionalidade, mas como parte de um processo de urbanização que evidenciaria uma história mais ampla de “rupturas” estruturais. De fato, o tamanho médio dessas famílias de descendentes de imigrantes alemães provavelmente não se diferia muito das famílias oriundas das classes médias inglesas, na mesma época. Nunca é demais alertar que, embora em nível nacional, a queda da mortalidade antecedeu à da fecundidade, isto não significa que o mesmo tenha sido observado globalmente. Essa riqueza de componentes mostra a dificuldade de uma generalização para o passado brasileiro. Entretanto, recuperando as palavras introdutórias deste capítulo, é possível imaginar (faltam muitas evidências empíricas para o período)

232 A esse respeito, ver GOLDANI, 1999. 233 BIDEAU & NADALIN, 1988.

que a variável característica das diferenças entre os *regimes demográficos diferenciados era principalmente a mortalidade – é óbvio, sempre elevada. Por toda a parte, no passado, habitava o país uma população pobre que vivia de uma agricultura de subsistência, com exceção dos aglomerados urbanos localizados mais próximos à costa – e, em certa medida, nas regiões monocultoras de exportação –, com características próprias. O regime da produção era fundamentalmente doméstico. O produto da horta podia ser complementado, em níveis diversos e regionais, pela pesca, coleta, ou pastoreio. Eram os caiçaras do litoral, os diversos tipos de mestiços do interior, e os descendentes de imigrantes açorianos mais ao sul, homogeneizados por uma espécie de “civilização do milho”, tal qual uma cultura da mandioca, mais ao norte.

Com muita probabilidade, esse era o principal meio de vida da família de Gregório Gonçalves em Curitiba. Viviam da roça, cuja agricultura relativamente variada era complementada pela criação de animais, em geral porcos e galinhas. Até aí, parece que estamos descrevendo o caipira que, cada vez mais, se torna raro na atualidade do interior brasileiro. Creio, entretanto, que parcela desse tipo de população era menos sedentária no passado, vivendo de uma agricultura itinerante em função da profusão de terras que se colocava ao alcance destes caipiras, pela posse, sempre mais ao interior.234

Em Curitiba e nos campos paranaenses, o homem comum adaptava-se. Cada vez mais, uma quantidade maior de pessoas dos estratos inferiores da sociedade dedicava-se sazonal e subsidiariamente à colheita do mate, atividade tipicamente regional. Em função do aumento da demanda do produto nos mercados platinos, de modo gradativo o eventual foi sendo substituído pelo principal, comprometendo assim a própria agricultura de subsistência da região e os excedentes destinados aos núcleos urbanos. Mas esta é outra história. Ela foi aqui inserida para mostrar a complexidade regional do problema maior que estamos analisando. Até que ponto a região paranaense de então se caracterizaria por um sistema demográfico original?

Assegurada a alimentação durante todo o ano, a sociedade brasileira tradicional praticamente não conhecera, como até a pouco ocorria na Europa, nem as crises de mortalidade, nem as crises de subsistência que, aos se superporem, causavam terríveis danos às comunidades locais. Dada a dispersão de parte da

sociedade, os contágios e a propagação de doenças, como a varíola e, mais tarde, a febre amarela e o cólera-morbus, limitavam-se às regiões onde havia relativa concentração de efetivos populacionais. A elevada e característica mortalidade resultava, principalmente, da incidência de doenças endêmicas, causadas por moléstias parasitárias e infecciosas de tipo tropical. Além disso, somava-se o desconhecimento completo de preceitos de higiene, o que contribuía para ceifar de maneira contínua parte substantiva das crianças que nasciam e abreviar a vida dos adultos – como foi referido no capítulo II.

Esse cotidiano sofria variações regionais que eram coerentes com a variedade dos gêneros de vida. Um pouco mais na direção do interior paranaense, por exemplo, ocupando sempre o Planalto e regiões de campos, definia-se a base da economia regional, marcada pela fazenda de criação de gado. Era uma economia praticamente “autárquica”, cuja população em geral era sustentada pelo trabalho escravo, mão-de-obra dedicada à produção de gêneros alimentícios para as fazendas. Nada permite supor que a situação da mortalidade fosse muito diferente nestas unidades econômicas, a não ser que se considere a probabilidade de uma concentração populacional mais significativa.

Aliás – e reduzindo para os quatro sistemas demográficos brasileiros aventados por Maria Luiza MARCÍLIO para o período “pré-transicional” –,235 esse seria o caso

das economias das plantations, isto é, economias alicerçadas por uma agricultura monocultora, latifundiária e integralmente dependente da “economia mundo”.236

Da mesma forma que nos latifúndios de criação no sul, numa estrutura fundamentada mais do que nunca no eixo “senhor-escravo”, parte da população, provavelmente cativos na maioria, era desviada da atividade econômica principal para cuidar da subsistência de toda a comunidade. Em conseqüência, as melhores terras e de acesso mais fácil eram obviamente utilizadas pela monocultura exportadora (cana, café, tabaco, algodão ou cacau), resultando numa alimentação desequilibrada e mais pobre em variedade e teor nutritivo.237 Assim, é

235 (1) Sistema demográfico das economias de subsistência, (2) do sistema demográfico das economias das plantations, (3)

dos sistemas demográficos das populações escravas e (4) dos sistemas demográficos das áreas urbanas no século XIX [MARCÍLIO, 1984]. Na realidade, estou extrapolando, pois a autora refere-se muito concretamente, a partir do título do seu trabalho, a sistemas demográficos no século XIX brasileiro. Entretanto, como a abertura do hiato demográfico no período transicional na história da população brasileira inicia-se, praticamente, com a queda mais brusca da mortalidade evidenciada no século XX, eu creio não estar cometendo nenhuma heresia.

236 MARCÍLIO, 1984:199. 237 Idem.

plausível concordar que a mortalidade, conseqüentemente, fosse maior nesse sistema, ainda mais porque a densidade demográfica era maior, em grande parte devida à presença maciça da escravaria. A literatura tem mostrado resultados de pesquisas que indicam uma mortalidade extremamente elevada nessa parcela cativa dedicada a uma agricultura tropical de exportação,238 o que deveria

repercutir na população livre das plantations. Assim, o terceiro sistema proposto, das populações escravas, caracterizava-se principalmente pela ocorrência de surtos epidêmicos devastadores, mais comumente de varíolas e, principalmente após 1850, de febre amarela. É necessário salientar que, na problematização de uma mortalidade escrava, deveria ser considerado o fato de tratar-se de uma fração populacional muito específica, exigindo um tratamento à parte. Além disso, à medida que nos aproximamos de um passado menos distante, essa população gradativamente desaparece como categoria jurídica. Libertando-se da escravidão, engrossa na mesma medida a população pobre e miserável, que do ponto de vista social e econômico não estava muito distante do escravo.

O que me parece necessário ponderar, ainda, é que, muitas vezes, três dos sistemas (economias de subsistência, plantations e escravista) interpenetravam-se, mais ou menos conforme a região, dependendo evidentemente da densidade demográfica local, da dinâmica econômica, e assim por diante. Esta interpenetração, do ponto de vista demográfico, também poderia traduzir-se em “migrações”. Assim, no que se refere às plantations, provavelmente deveria ocorrer, em âmbito geral, uma mobilidade espacial igualmente mais pronunciada, constituída pela saída de indivíduos desse setor .239

Ao voltarmos novamente nossa atenção para as regiões mais costeiras, entretanto, verificamos que boa parte da população brasileira tradicional encontrava-se concentrada nas grandes cidades da época, nas vilas e povoações do litoral.240 Evidentemente, temos as cidades de mineração, mais para o interior.

Apesar da importância política e econômica destas últimas, constituem, do ponto de vista populacional, exceções. As evidências assinalam que a mortalidade nas cidades não só era alta, mas também marcada por surtos epidêmicos importantes, como de varíola, febre amarela ou cólera. Estes parecem tornar-se cada vez

238 Ver, por exemplo, MERRICK & GRAHM, 1981:81-4. 239 MARCÍLIO, 1984:201.

240 O tema é recorrente, pois já havia sido considerado traduzindo um “regime demográfico restrito”,

mais freqüentes a partir da segunda metade do século XIX, elevando os picos de óbitos nos aglomerados urbanos. Ressalte-se, por sua vez, que as cidades litorâneas recebiam, entre outros produtos de importação, epidemias trazidas da Europa e da África. É claro, o quadro se deteriorava rapidamente nessas ocasiões, em virtude da concentração populacional que facilitava sobremaneira o contágio, agravado pelas terríveis condições sanitárias e de saneamento.

Essa é uma história antiga, e que acompanha o desenvolvimento das aglomerações urbanas e do intercâmbio de mercadorias:

Uma doença conhecida e “domesticada” numa região transformava-se na peste mortífera de outra, à medida que o comércio, as viagens e a guerra iam detonando explosões patológicas. Na transmissão da doença, o papel das cidades foi decisivo. Até época recente, as cidades eram tão insalubres e carregadas de pragas que suas populações nunca eram naturalmente substituídas. Sua multiplicação devia tudo ao afluxo dos excedentes rurais – que, de modo invariável, mostravam-e tragicamente propensos às infecções – e

aos migrantes de longas distâncias, que traziam com eles novas moléstias.241

Muitos trabalhos recentes têm mencionado taxas e índices demográficos de mortalidade para o passado brasileiro. As diferenças e o caráter hipotético dessas cifras são evidentes, e não vejo vantagem em tumultuar o texto com estes números. Guardo como indicadores, por ora, os números mencionados no capítulo anterior para a região de Curitiba (final do século XVIII). Todavia, lembremos que mesmo aqueles terríveis índices poderiam ser piores para regiões mais quentes ao norte e ao litoral, aqui agravado por uma densidade demográfica maior. Os novecentos metros da diferença de altitude e a barreira formada pelas escarpas da Serra do Mar deveriam causar maior efeito no quadro epidemiológico da população, do que os quase trinta quilômetros “a vôo de pássaro” que separam um patamar do outro.

Para completar, agrego que o cenário comum da história pré-transicional era marcado pela permanência de uma estrutura social extremamente hierarquizada que caracterizava, a fundo, a sociedade colonial brasileira sobrevivendo no século XIX. Sua relativa duração interferiria de forma negativa na dinâmica das relações sociais que caracterizaram o processo de “modernização”. Enfim, cenário em que atuava uma população pobre que tentava sobreviver em roças, numa estrutura fundiária que também se modificava, paulatinamente, no litoral e no interior; a

“posse” tradicional conflitando com novas noções de propriedade, geridas por nossas elites, tanto no norte como nos campos do Brasil meridional.

Tudo isso em relação à morte! Morte ampliada, morte desfocada – em função do pânico gerado pelas epidemias, pelos seus efeitos, e pelas notícias de