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História e demografia: elementos para um diálogo

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Academic year: 2021

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EMOGRAPHICAS

H

ISTÓRIA

E

DEMOGRAFIA

:

ELEMENTOS

PARA

UM

DIÁLOGO

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Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Diretoria 2003-2004) www.abep.org.br Presidente Vice-Presidente Secretária Geral Tesoureira Suplente Comitê de Publicações ABEP

Maria Coleta F. A. de Oliveira Ricardo Antônio Wanderley Tavares Simone Wajnman

Suzana M. Cavenaghi Ângela de Oliveira Belas

Carlos Eugênio de C. Ferreira (Coordenador) Elisabete Dória Bilac

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D

EMOGRAPHICAS

H

ISTÓRIA

E

DEMOGRAFIA

:

ELEMENTOS

PARA

UM

DIÁLOGO

Vol. 1

Campinas - São Paulo

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Traço Publicações e Design Flávia Fábio

Fabiana Grassano Paulo Leal Sampaio ABEP

UNFPA

Adriana Fernandes Capa, Projeto Gráfico

e Diagramação da Coleção

Apoio

Catalogação Nadalin, Sergio Odilon.

História e demografia: elementos para um diálogo / Sergio Odilon Nadalin. - Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais-ABEP, 2004.

248p.

(Coleção Demographicas, v.1) ISBN: 85-85543-10-8

1.Demografia. I. Nadalin, Sergio Odilon. II.Título. III.Série Índice para Catálogo Sistemático

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S

UMÁRIO

S

UMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...7

INTRODUÇÃO...11

INTRODUÇÃOÀ 1ª EDIÇÃO ...19

I. FONTESPARAUMADEMOGRAFIADOPASSADO...25

1.1 Os testemunhos da história demográfica ...26

1.2 A história de uma família ...30

1.3 Produção e limites das estatísticas populacionais do passado ...39

1.4 O conteúdo das fontes paroquiais ...54

1.5 O conteúdo dos levantamentos censitários ...62

II. HISTÓRIADAPOPULAÇÃO, HISTÓRIASOCIAL ...69

2.1 Algumas questões teóricas...69

2.2 Tratamento e exploração dos dados ...81

III. PARAUMAHISTÓRIADAPOPULAÇÃOBRASILEIRA...125

3.1 A teoria da “transição demográfica” ...126

3.2 A demografia da sociedade colonial (ou, o pré-hiato demográfico, na história da população brasileira) ...133

3.3 A “transição demográfica” na história da população brasileira ...142

CONCLUSÃO ...157 GLOSSÁRIO...165 REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS ...179 ANEXOS ...193 Anexo I ...193 Anexo II ...199 Anexo III ...227 Anexo IV ...233 Anexo V ...239

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A

PRESENTAÇÃO

Publicada originalmente em 1994, e ora atualizada, ampliada e relançada sob o título História e Demografia: elementos para um diálogo, esta obra didática do professor Sergio Odilon Nadalin dá início à coleção Demographicas que tem por objetivo divulgar textos de interesse para o ensino das questões populacionais.

A comunicação com aqueles que se iniciam em demografia sempre foi uma preocupação da ABEP – e entre os desafios enfrentados para isso destaca-se o da disdestaca-seminação de conhecimentos básicos que possam, de um lado, suprir as demandas do público acadêmico, no âmbito das instituições de pesquisa e dos estudantes em cursos ou disciplinas de Demografia, e, de outro, atender os cidadãos desejosos de se informar sobre a temática demográfica, tanto por interesses profissionais específicos quanto para desenvolver uma consciência crítica sobre as principais questões populacionais do país.

Atingir esses objetivos implica, entretanto, além de agregar ao texto final um tratamento gráfico e visual que favoreça a comunicação, a utilização de recursos especializados de disseminação junto ao público.

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Essa iniciativa foi desenvolvida pelo Comitê de Publicações, que objetiva a revitalização das atividades editoriais da ABEP. É, portanto, um resgate de experiência anterior da ABEP de publicação de textos didáticos sobre temas demográficos, coordenada alguns anos atrás pela professora Elza Berquó. Nesta nova coleção, projeto gráfico e editorial foram inteiramente repaginados, com o objetivo de adequá-los aos atuais padrões de comunicação e distribuição, com vistas em alcançar um público interessado mais amplo.

O trabalho do professor Nadalin, desde sua edição original, tornou-se um clássico da introdução ao campo da demografia histórica. Trata-se de um livro que reflete a experiência acumulada do autor na vida acadêmica e demonstra sua acurada capacidade de expor, de maneira clara, as bases teóricas e empíricas da pesquisa em história demográfica, preservando, ao mesmo tempo, o inteiro rigor do discurso científico.

Esta versão, inteiramente revista e ampliada pelo autor, contou com substanciais aportes sugeridos por colegas e alunos, bem como com minuciosas atualizações dos dados e gráficos usados em complementação ao texto.

O autor aborda os principais tópicos do tema, usando como fio condutor de sua narrativa a história de um casal que viveu nos campos curitibanos no final do século XVIII. À medida que avança na história demográfica da família, explicita a metodologia de pesquisa e descreve as fontes de dados utilizadas. A interpretação dos padrões demográficos implícitos na biografia familiar flui naturalmente para uma ampla reflexão sobre a demografia da sociedade colonial e o processo de transição demográfica da população brasileira.

Ressalte-se a amadurecida postura crítica do autor diante das generalizações de modelos elaborados a partir de experiências históricas específicas e das homogeneizações e simplificações dos processos demográficos em populações do passado, desfigurando a verdade histórica e configurando, no conjunto do arsenal conceitual, essencialmente, uma ideologia. História e Demografia: elementos para um diálogo é uma obra de extraordinário valor para o público iniciante e atende, também, às necessidades de profissionais de outras áreas desejosos de conhecer as especificidades da história demográfica. É uma lição para todos aqueles – pesquisadores, estudantes e estudiosos – que buscam o conhecimento da realidade, além das aparências.

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Registramos, nesta oportunidade, sinceros agradecimentos aos membros do Comitê de Publicações; a Sergio Odilon Nadalin, membro do Conselho Consultivo da ABEP; a Elisabete Dória Bilac, editora da Revista Brasileira de Estudos Populacionais, e aos membros da diretoria da ABEP, especialmente a Suzana Cavenaghi que participou diretamente de várias decisões cruciais. Gostaríamos, ainda, de deixar público o reconhecimento da ABEP e de toda a comunidade abepiana pelo firme apoio do Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA à realização deste projeto.

Carlos Eugenio de Carvalho Ferreira Coordenador do Comitê de Publicações

Maria Coleta F. A. de Oliveira Presidente da ABEP

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I

NTRODUÇÃO

I

NTRODUÇÃO

A primeira edição deste livro saiu em 1994, como resultado de um convite de Elza Berquó: a idéia era escrever um texto em parceria com Clotilde Paiva, do Centro de Desenvolvimento Regional (CEDEPLAR – FACE/UFMG), a ser incluído numa série, em pequeno formato. De acordo com o projeto, teria objetivos didáticos e deveria ser publicado pela ABEP – Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ainda, teria como alcance o grande público e, de modo precípuo, estudantes. Infelizmente, a parceria não foi adiante, apesar de Clotilde Paiva muito ter contribuído com suas sugestões e críticas para o bom andamento do trabalho.

O livro teria um tema e, provavelmente, até um título: “a demografia numa perspectiva histórica”. Tema envolvendo um assunto amplo, tanto se pensarmos na perspectiva formal da disciplina como no universo dos estudos populacionais. Além disso, mais do que um tema, as questões propostas no convite traduziam o privilegiamento de uma via diacrônica para o estudo das populações (anuncio, desde já, que estas questões, de certa maneira, são tratadas no item introdutório ao segundo capítulo). O desenvolvimento do trabalho, porém, seguiu rumo um

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pouco diferente, tocando a problemática de um diálogo possível ou, mesmo, desejado, entre a história e a demografia; daí porque considerei, nesta segunda edição, mais oportuno e instigante um título que levasse o leitor, na articulação entre as duas disciplinas, a pensar também questões de natureza metodológica e epistemológica.

Eu gostaria de aprofundar uma proposta de trabalhar de igual para igual com os demógrafos, mas tenho consciência dos vícios e dos gostos do historiador. Na convivência da ABEP, os membros do nosso “clube” se ofendem quando são colocados num passado para além de 1940 – olhando na perspectiva do passado para o presente – pois, teórica e epistemologicamente, não há razão para este corte. Mas é preciso colocar que poucos de nós tentam romper este insulamento, por uma razão muito simples: a especialidade com o trato de certo tipo de fontes e uma atenção especial a um passado mais distante nos absorvem de tal maneira que o relativo isolamento se consubstancia. Falo um pouco da minha própria experiência, pois tenho criado poucas oportunidades em demonstrar maior interesse pelos temas atuais da demografia, pelas características dos censos modernos, das PNADs etc.

Não quero absolutamente, com o tratamento inicial deste livro, reforçar esta tendência; ao contrário, dado que a demografia comporta sempre a utilização da variável tempo, e a variável população tem como limite a sociedade, não há dúvida de que esse é o mundo da história. Todavia se, de um lado, a historiografia contemporânea tem tratado com muita desenvoltura uma “história do presente”, por outro – no nosso país, pelo menos -– temos um contacto muito tênue com técnicas de análise e documentos que nos aproximem da demografia da atualidade. Sendo assim, muito me agradaria se o presente trabalho fizesse sua parte em contribuir na criação de elementos para a ampliação e aprofundamento do diálogo entre a História e a Demografia.

Como se verá adiante, dei neste texto um tratamento especial à narrativa, tentando aproximar e relacionar o micro e o macro, estruturando o material principalmente em função da documentação geralmente privilegiada pelo historiador das populações. Espero que essas escolhas não nos marginalizem, mais uma vez, num passado mais distante. Independente das virtualidades deste tratamento num diálogo com os demógrafos, estruturei especialmente algumas interrogações, no capítulo III, a respeito da teoria da transição demográfica – como

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é sabido, uma teoria fundada na observação histórica. No aludido texto, em particular, parti de algumas generalizações, muito simples, concernentes a um “mundo que perdemos” – refiro-me à sociedade colonial da América Portuguesa – para tentar abrir caminho a um projeto para a realização de uma história da população brasileira. Com efeito, entre a primeira versão deste livro e a revisão necessária para a publicação de uma segunda edição, construí um texto que tem, explicitamente, esta pretensão.1 Portanto, este capítulo, em especial, está aberto à

discussão.

Apesar do manifesto acima, não posso negar que estava pensando principalmente nos estudantes de história quando elaborei o texto deste livro, talvez pelas circunstâncias em que foi construído: ele se origina das notas de aula organizadas para a matéria História das Populações, desdobrada em disciplinas que vêm sendo ministradas já há alguns anos no Curso de História da Universidade Federal do Paraná. Um “pré-texto” foi elaborado e distribuído aos meus alunos no segundo semestre de 1991, e naquela ocasião bem discutido num seminário.2

É evidente que, de lá para cá, muita coisa aconteceu. A primeira edição do livro esgotou-se, e urgia uma nova, revisada e ampliada. E com título novo, mais apropriado.3

O texto continua alicerçado por uma metodologia básica, tentando pensar a população sempre concretamente como uma soma de indivíduos, homens, mulheres, crianças, velhos... A proposta desta abordagem me levou quase naturalmente a imaginar a possibilidade de, a partir das informações que estão sob a guarda do Centro de Documentação e Pesquisa de História nos Domínios Portugueses; séculos XV-XIX (CEDOPE/Departamento de História da UFPR), recriar

1 NADALIN, 2003.

2 Nesse sentido, agradeço a dedicação, o espírito crítico e o interesse do Ângelo, Aníbal, Carla, Celso,

Cíntia, Elzeário, Gracialino, José e Solange – nomes que faço questão de registrar, mesmo porque já fazem parte da história.

3 Também dessa vez submeti à crítica dos meus alunos o manuscrito, como texto básico da disciplina

“Tópicos Especiais de História e População”, que ministrei na UFPR no segundo semestre de 2003. Para que também entrem nessa história, registro seus nomes, com os agradecimentos pelas críticas que, tão diligaram de ser considerados apenas o alicerce da construção histórica, sendo eles mesmos entendidos como parte dessa construção em todos seus momentos e articulações. Passou a existir a preocupação em localizar o lugar de onde falam os autores dos documentos, seus interesses, estratégias, intenções e técnicas” [Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), p. 22]. Todas as fontes que exigiram um aprofundado conhecimento paleográfico foram copiados e ou revistos por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, do Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses (CEDOPE), do Departamento de História da UFPR.

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genealogicamente uma “família”, habitando um determinado “domicílio”, que realmente tivesse existido no nosso passado, em vez de partir das abstrações tão familiares ao mundo da academia.

Para me orientar, além das fontes (os chamados “registros paroquiais” e as “listas nominativas” de habitantes), havia também um trabalho fundador, realizado por há tempos por Ana Maria de Oliveira BURMESTER, como tese de doutorado no Departamento de Demografia da Universidade de Montreal, no Canadá.4 A investigação realizada, que tinha como alicerce a metodologia

FLEURY-HENRY de reconstituição familiar, originou-se de uma pesquisa preliminar que resultara numa dissertação de Mestrado.5

De posse das fichas de família construídas pela pesquisadora, não foi muito difícil encontrar um casal que, reconstituída sua trajetória matrimonial a partir do casamento realizado na Paróquia Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, preenchesse os requisitos para fazer o papel de atores principais na minha narrativa. Refiro-me a Gregório Gonçalves e Anna Maria de Lima. De fato, como a metodologia adotada por BURMESTER pressupunha que a observação das histórias conjugais arroladas a partir dos registros de casamentos, batismos e óbitos deveria terminar com um corte transversal definido por listas nominativas no final da década de 1790, eu já sabia, de antemão, que os referidos indivíduos iriam aparecer em alguns censos do século XVIII.

De 1991 para cá – graças a uma pesquisa que resultou em monografia de curso6 – ampliaram-se as informações obtidas sobre o referido casal, seus filhos

e, inclusive, sobre a família maior na qual se inserem. As reflexões sobre o cotidiano da população da qual faziam parte os Gonçalves também se desenvolveram, contribuindo para amadurecer e ampliar algumas hipóteses explicativas que levaram à revisão do texto deste trabalho.7 Também aprendi bastante no que se

refere à elaboração de um livro com as características que este pretende ter. Um dos resultados é a incorporação, nos anexos, de transcrições de atas de casamentos, batismos e óbitos, concernentes aos personagens centrais de nossa história: sugiro aos leitores docentes que pensem na possibilidade de utilização do referido

4 1981.

5 BURMESTER, 1974. 6 LUI, 2002.

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material como material didático (afinal, foram 95 atas diligentemente transcritas como estavam no original).8 No final, também incorporei um glossário, e as

palavras que constam do seu rol estão, no texto, marcadas por um *asterisco, e grafadas em itálico. Finalmente, fica o registro: desta vez não me deixei tolher por uma necessidade, que via na época em que foi produzida a primeira edição, de apresentar um texto enxuto em notas. Nesse sentido, eu me deixei levar pela necessidade, às vezes em demasia talvez, de complementar explicações com algumas notas e, principalmente, remetendo o leitor a autores que me inspiraram ou que desenvolvem determinado tema.

Assim, a família Gonçalves continua a ser, nesta segunda edição, uma espécie de pretexto, para passar ao leitor alguns conceitos básicos referentes à demografia e à história demográfica (ou à demografia histórica), e para discutir a validade das estatísticas populacionais recuperadas para o passado a partir de suas fontes mais clássicas. Enfim, para passar algumas das possibilidades de exploração desses dados.

À medida que tratamos da história, espero que o interesse do livro transcenda ao grupo dos historiadores. Sempre resta a esperança de podermos cooptar alguns demógrafos a mais para um trabalho ao mesmo tempo fascinante e fastidioso – acho que a ordem é essa – , que está além da exploração das estatísticas fabricadas pelas instituições. Os alérgicos ao pó que se protejam, arregacem as mangas e se transformem, como nós, em “ratos de arquivo”.

O resultado apresenta-se, desta forma, sintetizado no sumário. Para começar, temos as fontes para uma demografia do passado. Como mencionei, fontes clássicas, ou seja, registros paroquiais e censos antigos.O texto trata, também, de como e em que circunstâncias essa documentação foi produzida – em suma, sua história. Em seguida, espero contentar os metodólogos mais exigentes, com um exercício de crítica dos dados, ao mesmo tempo discutindo o conteúdo das fontes emanadas das paróquias e das companhias de ordenança.

8 Ao redigir essa recomendação, também estou pensando no domínio do historiador sobre uma

determinada “tecnologia”, relativa ao trato com as “fontes históricas”: “Os documentos deixaram de ser considerados apenas o alicerce da construção histórica, sendo eles mesmos entendidos como parte dessa construção em todos seus momentos e articulações. Passou a existir a preocupação em localizar o lugar de onde falam os autores dos documentos, seus interesses, estratégias, intenções e técnicas” [Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS), p. 22].

Todas as fontes que exigiram um aprofundado conhecimento paleográfico foram copiados e ou revistos por Rosângela Maria Ferreira dos SANTOS, do Centro de Documentação e Pesquisa de História

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No capítulo seguinte, ultrapassada esta parte dedicada à documentação, busquei fazer um pouco mais de história, tentando dar uma idéia ao leitor de como devem, ou podem, ser lidos, tratados e explorados os dados obtidos. Nesse sentido, quem quiser saltar o primeiro item, relacionado A proposta para a análise de algumas questões teóricas – e que resultou de uma natural vocação de professor – poderá fazê-lo tranqüilamente. As questões tratadas nesta seção constituem problemas diversos, mas que principalmente tentam dar ao leitor uma visão do “lugar” da história demográfica e da demografia histórica (existe alguma diferença?) no quadro geral da história e das ciências da população.

Todos esses assuntos, na medida que foram trabalhados tendo como cenário a história social da América portuguesa – mas não só, pois tangenciamos de modo igual a sua história política e administrativa –, desembocam naturalmente no esboço de uma história da população brasileira. Sendo assim, o leitor não deverá se surpreender com a definição de um eixo possível – muito embora complicado – para o conhecimento dessa história, fundamentado na discutida “teoria da transição demográfica”. É um problema que interessa tanto aos historiadores como aos outros especialistas em população. Portanto, mais um veio comum que permite estimular o diálogo entre a história e a demografia.

O que fica, para finalizar, é também uma vasta interrogação sobre os processos demográficos que traduzem uma perspectiva da história social brasileira mais recente. Em outros termos, as evidências de uma lacuna imensa que é datada por volta da década de cinqüenta do século XIX, e que corresponde, historicamente, a significativas mudanças nas relações de produção, na história econômica, política e institucional do país, e que tem como outro extremo os anos 30 do século passado.

Para completar esta introdução, diria que o livro não teria esta “cara” se não fosse a labuta e convivência diária com os colegas do Departamento de História, da Universidade Federal do Paraná. Quero destacar especialmente minha dívida com Francisco Moraes Paz – de saudosa memória –, que reviu o manuscrito na ocasião que resultou na publicação da primeira edição, e cujas críticas e sugestões foram extremamente valiosas para o acabamento do trabalho. De forma igual, quero estender esses agradecimentos, mais uma vez, a Clotilde Paiva, que teve o trabalho de ler os originais, submetendo-o inclusive para discussão a alguns dos seus alunos da UFMG. Também a Maria Luiza Andreazza

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que, não obstante seus múltiplos afazeres como docente e pesquisadora no Departamento de História da UFPR, fez uma leitura atenta e interessada no manuscrito que está resultando nesta segunda edição. Finalmente, aos meus companheiros do Comitê de Publicações da ABEP, Carlos Eugênio Ferreira e Elisabete Doria Bilac, cujo apoio foi fundamental para que o livro fosse republicado.

Finalmente, este livro também é tributário do trabalho de dois historiadores, e quero deixar isto registrado com todas as letras. Trata-se das pesquisas das Doutoras Ana Maria de Oliveira Burmester e Maria Luiza Marcílio, convenientemente referenciadas no final deste trabalho. A todos que me apoiaram, em especial à ABEP, e àqueles que incentivaram esta revisão para uma republicação do livro, minha sincera gratidão.

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I

NTRODUÇÃO

I

NTRODUÇÃO

À

PRIMEIRA

À

PRIMEIRA

EDIÇÃO

EDIÇÃO

Já faz tempo, mais de três anos! Foi quando a Dra. Elza Berquó convidou-nos para escrever esta pequena obra, em pareceria com Clotilde Paiva, do CEDEPLAR. O trabalho deveria inserir-se numa série de livros, em pequeno formato a ser publicada pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais, a nossa ABEP. O objetivo era didático. Visava ao grande público e, de modo precípuo, estudantes. Infelizmente, a parceria não foi adiante, apesar de Clotilde Paiva muito ter contribuído com suas sugestões e críticas para o bom andamento do trabalho.

O “tema” proposto foi “demografia numa perspectiva histórica”. Tema amplo, tanto se pensarmos na perspectiva formal da disciplina, como no universo dos ‘estudos populacionais’. Além disso, mais do que um tema, as questões propostas traduziam o privilegiamento de uma via diacrônica para o estudo das populações. De certa maneira, essas questões são tratadas no item introdutório ao segundo capítulo. Entretanto, o desenvolvimento do livro tocou principalmente a problemática de um diálogo possível entre a história e a demografia; daí porque

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consideramos mais oportuno e instigante um título que levasse o leitor a pensar em questões de natureza metodológica e epistemológica, articulando as duas disciplinas. Gostaríamos de ir fundo numa proposta de trabalhar de igual para igual com os demógrafos, mas temos consciência dos vícios e dos gostos do historiador. Ofendemo-nos quando somos colocados num passado ‘além’ de 1940, pois teórica e epistemológicamente não há razão para este corte. Entretanto, a especialidade com o trato de certo tipo de fontes e uma atenção especial a um passado mais distante, leva-nos a consubstanciar esta divisão. Falando um pouco da nossa experiência, dificilmente demonstramos um interesse maior pelos temas presentes da demografia, pelas características dos censos modernos, PNADs etc.

É muito possível que o tratamento inicial deste livro reforce esta tendência. Dado que a demografia comporta sempre a utilização da variável “tempo” e a variável “população” tem como limite a sociedade, não temos dúvidas de que esse é o mundo da história. Assim, para a estruturação deste trabalho, tivemos de recortar e escolher. E, optar por aquilo que tradicionalmente sempre caracterizou nossa disciplina, o problema das fontes, da sua crítica, da sua validade. Receamos, entretanto, que esta escolha mais uma vez nos marginalize num passado mais distante. Entretanto, tentamos ultrapassar tal perspectiva, no capítulo III, colocando algumas interrogações a respeito da teoria da “transição demográfica”. Partimos de algumas generalizações, muito simples, concernentes a um “mundo que perdemos” – a nossa sociedade colonial brasileira –, para tentarmos abrir caminho à realização de uma história da população brasileira. O capítulo está aberto à discussão.

Este livro dirige-se principalmente aos estudantes de história. Foi, aliás, com base em notas de aula organizadas para a disciplina “História Demográfica”, que vem sendo ministrada já há alguns anos no Curso de História da UFPR, que ele foi organizado. Um “pré-texto” foi elaborado e distribuído aos nossos alunos no segundo semestre de 1991, e ali bem discutido. Agradecemos a dedicação, espírito crítico e interesse do Ângelo, Aníbal, Carla, Celso, Cíntia, Elzeário, Gracialino, José e Solange - nomes que fazemos questão de registrar, pois os estudantes têm uma parte importante na feitura do trabalho.

Partimos de uma metodologia básica, tentando pensar a população sempre “concretamente”, como uma soma de indivíduos, homens, mulheres, crianças, velhos... Por que, então, não buscar no passado, uma família que realmente tivesse existido, em vez de pensarmos preliminarmente nas abstrações tão familiares ao

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mundo da academia? Uma família passível de ser reconstituída historicamente, isto é, cuja existência teria sido comprovada pelas fontes usualmente trabalhadas pelos historiadores demógrafos. Essas fontes existem em profusão, e já foram levantadas para a região curitibana, no Paraná. Por que não pensar a história da população brasileira a partir de Curitiba no século XVIII? Afinal – sem nenhuma crítica – paulistas e cariocas sempre fizeram isso, fundamentado em suas respectivas histórias regionais.

Assim, buscamos uma bela família que tivesse sido reconstituída pela Professora Ana Maria de Oliveira Burmester, autora de uma tese sobre a população de Curitiba, no século XVIII. E, ao mesmo tempo, que constasse em alguns levantamentos censitários realizados a mando da Corôa Portuguêsa. Ela foi encontrada, depois de uma certa procura. Trata-se de Gregório Gonçalves, sua mulher Anna Maria e filhos, com um ciclo de vida e ciclo matrimonial que, na prática, correspondem a esse período cujo conhecimento é crucial para entendermos, a nosso ver, a ‘passagem’ para o mundo contemporâneo. Como a Dra. Burmester encerrou sua observação no final da década de 1790, não tinhamos em mãos a possibilidade imediata de conhecer o que aconteceu depois com a referida família. Gostaríamos de ter tido mais tempo para seguir adiante, na busca dos outros dados vitais referentes ao casal e à sua prole.

Assim, a família Gonçalves constitui uma espécie de pretexto, para passar ao leitor alguns conceitos básicos referentes à demografia e à história demográfica, para discutir a validade das estatísticas populacionais recuperadas para o passado e as suas fontes clássicas. Enfim, para demonstrar algumas das possibilidades de exploração desses dados. À medida que tratamos da história, esperamos que o interesse do livro transcenda ao grupo dos historiadores. Sempre resta a esperança de podermos cooptar alguns demógrafos a mais para um trabalho ao mesmo tempo fastidioso e fascinante, que está além da exploração das estatísticas fabricadas pelas instituições. Os alérgicos ao pó que se protejam, arregacem as mangas e se transformem, como nós, em “ratos de arquivo”.

O resultado apresenta-se desta forma, sintetizado no sumário. Para começar, temos as fontes para uma demografia do passado. Fontes “clássicas”, naturalmente, registros paroquiais e censos antigos. Investigamos também como e em que circunstâncias essa documentação foi produzida; em suma, sua história.

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Temos, ainda, a crítica dos dados e o conteúdo das fontes das paróquias e das listas nominativas de habitantes.

No capítulo seguinte, ultrapassada esta parte dedicada às fontes, buscamos fazer um pouco mais de “história”, tentando dar uma idéia ao leitor de como devem ser lidos, tratados e explorados os dados obtidos. Nesse sentido, quem quiser saltar o primeiro ítem, relacionado a algumas questões teóricas que levantamos, poderá fazê-lo tranqüilamente. Ele é o resultado da nossa natural vocação de professor. São problemas teóricos diversos, mas que principalmente tentam dar ao leitor uma visão do “lugar” da história demográfica e da demografia histórica (existe alguma diferença?) no quadro geral da história e das ciências da população.

Todos esses assuntos, na medida que foram trabalhados, tendo como cenário a história da sociedade colonial, desembocam naturalmente num esboço de uma história da população brasileira. Sendo assim, o leitor não deverá se surpreender com a definição de um eixo possível para o conhecimento dessa história, fundamentado na “teoria da transição demográfica”. É um problema que interessa tanto aos historiadores como aos outros especialistas em população. Portanto, mais um veio comum que permite estimular o diálogo entre a história e a demografia.

O que fica, para finalizar, é uma vasta interrogação sobre os processos demográficos que traduzem uma perspectiva da história social brasileira mais recente. Em outros termos, as evidências de uma lacuna imensa que é datada na década de cinqüenta do século passado, e que corresponde historicamente à significativas mudanças nas relações de produção, na história econômica, política e institucional do país, e que tem como outro extremo a década de 1930.

Este livro não teria esta “cara” se não fossem a labuta e convivência diária com os colegas do Departamento de História, da Universidade Federal do Paraná. Queremos destacar especialmente um agradecimento a Francisco Moraes Paz, que reviu o manuscrito, e cujas críticas e sugestões foram extremamente valiosas para o acabamento do trabalho. De forma igual, estender esses agradecimentos mais uma vez a Clotilde Paiva, que teve o trabalho de ler os originais, submetendo-o inclusive para discussãsubmetendo-o a alguns dsubmetendo-os seus alunsubmetendo-os da UFMG. Csubmetendo-omsubmetendo-o resultadsubmetendo-o, e em função de sua própria disposição para tal, certos aspectos relevantes da

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estrutura do texto foram discutidos, contribuindo também para a versão final da obra que está sendo apresentado aos leitores.

Finalmente, nosso livro também é tributário do trabalho de dois historiadores, e queremos deixar isto registrado com todas as letras. Trata-se das pesquisas das Doutoras Ana Maria de Oliveira Burmester e Maria Luiza Marcílio, convenientemente referenciadas no final deste trabalho. A todos que nos apoiaram, em especial à ABEP, e que tornaram possível esta publicação, nossos sinceros agradecimentos.

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I. F

ONTES

PARA

UMA

DEMOGRAFIA

DO

PASSADO

I. F

ONTES

PARA

UMA

DEMOGRAFIA

DO

PASSADO

Os arquivos do Paraná e de São Paulo guardam em sua memória traços da presença em Curitiba do casal Gregório Gonçalves e Anna Maria Lima, unidos pelo matrimônio católico na sede da Paróquia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, no dia 9 de setembro de 1772. Também registram os nove filhos que se originaram do casamento: Felisberto, Bento, Maria, José, Rosa, novamente Maria, Izabel, Felizardo e Anna.

O marido e a mulher constituem parte das inúmeras genealogias que podem ser montadas a partir dos registros paroquiais e dos censos realizados nos séculos XVIII e XIX, e que traduzem parcialmente a dinâmica da população curitibana desde o momento em que o planalto começou a ser ocupado até os dias atuais. Tal dinâmica constitui o objeto restrito de uma história da população.

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1.1 Os testemunhos da história demográfica Os registros paroquiais

No resumo introdutório de um artigo clássico da historiografia demográfica, Louis HENRY escrevia que os registros paroquiais constituem um documento de primeira ordem para o estudo da demografia do passado.1 Inicio este capítulo,

portanto, com estes testemunhos, a começar pelas antigas atas de casamento. Conforme se vê na folha 59 do livro 3, no livro destinado aos assentos dos cazados escravos, mulatos e bastardo, o vigário registrou da seguinte forma o enlace de Gregório e Anna Maria:

Aos nove dias do mes de Setembro de mil e setecentos e setenta e dous annos, nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Lux, da Villa de Corytyba, de tarde, feitas as denunciações na forma do Sagrado ConciLio Tridentino, Sem se descobrir impedimento aLgum, como

consta da provizam de Licennça do M.to Rd.o vigario da vara, q’ fica em meu poder; em

prezença de mym o Padre ManoeL Domingues Leytam, vigario da ditta Igreja, Sendo prezentes por testemunhas Antonio do Loureyro ALmeyda Cassam, e Antonio Francisco Guymarães pessoas conhecidas, e as mais q’ se acharam prezentes, Se cazaram por palavras de prezente Gregorio Goncalves, filho de CLemente GonçaLves de Castro, e de sua mulher Joanna Cardoza; com Anna Maria de Lima Mullata forra filha de Antonio de Lima,

e de sua mulher Cypriana Roiz.’ Seyxas ambos mullatos moradores desta freg.a [...].

Com isso, foi possível estabelecer o início da “história demográfica” da família de Gregório Gonçalves na região dos campos de Curitiba. Sua continuidade traduz-se na sucessão dos filhos, cujos batismos também estão assentados em livros próprios.2 As atas relativas às cerimônias ocorridas até 1778 foram registradas

no Livro 6 (1774-1778), cujo termo de abertura esclarece o que segue:

Este Livro que ha de Servir na Matriz de noSsa Snr.a da Luz da Villa de Corityba p.a

nelle Se fazerem os assentos dos bautizados escravos, e bastardos, vai numerado,

e Com o meo Sobrenome X.er rubricado; e no fim Leva termo de encerram.to Corytyba 8

de Outubro de 1762.

No mesmo Livro 6, observamos o assentamento relacionado ao batismo do primeiro filho de Gregório e Anna Maria:

9 HENRY, 1953: 281.

10 Ver o Anexo II, construído a partir da pesquisa de Eduard Lui HENRY [2002] e complementado por

Rosângela Maria FERREIRA DOS SANTOS: os exemplos mencionados no texto, bem como outros documentos paroquiais relativos à família Gonçalves foram ali transcritos. Os originais encontram-se sob a guarda do Arquivo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba.

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Aos vinte dias do mes de Janeyro de miL e setecentos e setenta e sinco annos, nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Lux, da Villa de Corytyba, baptizei, e pus os Santos oLeos a Felisberto innocente, filho de Gregorio Gonçalves, e sua mulher Anna Maria de Lima ambos bastardos; foram padrinhos Antonio Joze da Sylva, e sua mulher Gertrudes Denis todos moradores desta freguezia, e para constar fiz este assento no mesmo dia vt supra.

Anos mais tarde, o primogênito do casal também casou, e a cerimônia encontra-se de modo igual devidamente registrada, embora a forma da ata não seja exatamente a mesma do matrimônio dos seus pais:

Aos trinta dias do mes de Julho do anno de mil CeteCentos noventa, e Sinco, de manhã nesta Igreja Matris de noSa Senhora da Lus, da Villa de Coritiba, de honde os contrahentes São freguezes, em minha prezenSa, e das Testemunhas Miguel Antonio Teixeira, e Felicio Fernandes Cazados este morador de Sancto Antonio da Lapa, despois de feitas as denunciaSoins Canonicas, Sem impedimento, precedendo LicenSa do ordinario e do Reverendo Paroco, Ce Cazarão, Felisberto GonSaLves Trones, filho legitimo de Gregorio GonSalves Trones, e de Anna Maria de Lima, Com Joanna Rodrigues de Andrade, Filha legitima de Fransisco Rodrigues de Andrade, e de EsColastica Nunes, já faLecida, Logo receberão as benSas, do que para Constar faSo este aSento.

A história do casal, quanto ao aspecto demográfico, terminou com o óbito de Anna Maria, ocorrido em 1825:

Aos quinze dias do mes de Setembro do anno de mil oitocentos e vinte Sinco falesceo da vida prezente Anna Maria de Lima de idade de oitenta annos cazada com Gregorio Gonçalves: Recebeo o Sacramento de Penitencia, e Extrema unção: foi seo corpo sepultado nesta Matris, e por mim Recomendado. Do que para constar faço este Assento.

Quanto a Gregório, ele sobreviveu 19 anos à sua esposa, tendo falecido em 1844, um ano depois do seu filho Bento. Pelo que se sabe, não contraiu novas núpcias.

Listas nominativas de habitantes

O ciclo matrimonial e o desenvolvimento do domicílio do casal também podem ser visualizados com o auxílio de outro tipo de documento. Refiro-me aos levantamentos censitários existentes na época colonial e primeiros anos do Império, para certas regiões brasileiras.

Foram selecionados dois censos como exemplos, relativos aos anos de 1792 e 1797. Nas folhas em que as listas foram elaboradas, encontramos a relação nominal dos integrantes da família de Gregório Gonçalves, como se segue:

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Figura 1

Levantamento censitário realizado em 1792 – Curitiba, Segunda Companhia, povoação de “Nossa Senhora do Amparo”

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Figura 2

Levantamento censitário realizado em 1797 – Curitiba, Segunda Companhia, bairro de “Itaperaçu”

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1.2 A história de uma família

O conteúdo da documentação mostrada anteriormente – inclusive aquela transcrita no anexo deste capítulo – permite definir um esboço da “história demográfica” da família referida.

Sabemos que o casal constituiu um *fogo (domicílio) na região de Curitiba, continuando como unidade conjugal até o ano de 1825, quando Anna Maria faleceu. De modo igual, a lista de 1797 permite saber que eles, um genro, uma nora e uma neta (ver Anexo II) constituíam parte do conjunto de habitantes do território curitibano no final do setecentos. Por conseguinte, e para ser mais preciso, quatorze pessoas que, seguramente, faziam parte do efetivo da população de Curitiba por ocasião do mencionado censo.

A mesma lista também evidencia que esse efetivo familiar caracterizava-se pela presença de três filhos do sexo masculino e cinco do feminino. Tal constatação admite o conhecimento da estrutura por sexo da família, somando-se o genro Policarpo e, naturalmente, o chefe da casa e sua esposa. Verificada a idade de todos os seus componentes, teríamos, assim, a possibilidade de estabelecer sua estrutura etária.

Finalmente, as fontes provam que, além de Gregório (e Anna Maria) e o primogênito Felisberto, também Maria, a filha mais velha, estava casada em 1797. Imaginando a hipótese de que todos continuaram na região, contrapunham-se – estes últimos com seus cônjuges – aos indivíduos solteiros do planalto curitibano. Caracterizavam, desta forma, junto com seus vizinhos e outros *fregueses da paróquia, a estrutura da população por estado civil.

Portanto, vimos, até agora, como entre nós e a realidade do século XVIII interpõe-se um testemunho, que informa com relativa segurança – ou com uma segurança possível – alguns dados sobre a estrutura da população paranaense. No que se fundamenta o nosso conhecimento da realidade demográfica do passado? Evidentemente, da correção das informações e de sua correta interpretação. Esta é uma questão importante, tratada adiante, quando será examinada a crítica dos dados.

É óbvio que uma população não se reduz às evidências quantitativas acima apontadas. Ela distribui-se, também, segundo outras categorias, além do sexo, idade ou estado civil. Como se sabe, ser solteiro ou casado, ou mesmo, viver ou

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não como companheiro de um homem ou de uma mulher não é simplesmente condição imposta pela natureza. Depende de circunstâncias ditadas pela sociedade, que variam de época para época, de lugar para lugar. É função, por conseguinte, da idade, das condições ou nível de vida dos indivíduos ou de suas famílias, além de outros traços culturais da sociedade em questão. Para compreender isso, basta lembrar – citando só dois exemplos – que as sociedade têm valores diferentes no que se refere à procriação e às formas de união entre um homem e uma mulher. Assim, a família de Gregório e Anna Maria tinha também outras características, articuladas ao modo com que se organizava a sociedade paranaense colonial. As marcas dessas evidências também são transmitidas pelos testemunhos que foram utilizados para reconstituir a referida família; todavia, diferentemente dos sinais antes apontados, nem sempre de forma tão explícita. Senão, vejamos. A ausência de escravos no domicílio anuncia uma família de poucas posses, pobre, o que não implicava, necessariamente, uma situação de miséria. De outro lado, o conteúdo da ata de casamento admite algumas precisões a respeito da categoria social daqueles indivíduos, pois nos cientifica que a esposa era mulata, e não só isso, *forra. Triste combinação essa, numa sociedade escravista extremamente hierarquizada. Muito embora a ata de batismo de Anna Maria nada explicite a respeito,11 sem dúvida o termo traduzia uma ascendência escrava.

A partir desta informação poderíamos inferir que Gregório também fosse *pardo, e de condição social não muito diferente da mulher. Todavia, essa dedução poderia adquirir novos contornos, pelo que pude ler em diversos termos de abertura de livros nos quais foram assentadas as atas de batismos, casamentos e óbitos relativas à família aqui enfocada. Refiro-me ao qualificativo “bastardo”.12

Consultando o “Aurélio” [1986], somos informados de que essa palavra significa fora do matrimônio [...]; portanto, filho ilegítimo. Porém, pode exprimir, ainda hoje, degenerado da espécie a que pertence. Palavras fortes, sem dúvida, embora na atualidade pouco utilizadas para qualificar pessoas. Todavia, aparentadas aos diversos significados da palavra no mundo português do início do setecentos. O termo, além de exprimir uma descendência de ajuntamento illicito, traduzia também

11 Ver, no Anexo II, o documento 02.

12 Ver, no Anexo II, os documentos 03, 05, 06, 08, 14, 22, 24, 32, 53, 70 e 76 [o termo “pardo” aparece,

pela primeira vez, em 1798, no documento 38]. Observo que uma única ata qualifica diretamente Gregório e Anna Maria como bastardos [06].

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algo degenerado, significando não só o filho de may não casada mas, pior ainda, o ilegítimo filho de uma mulher pública; [...] de may adultera; [...] nascido do incesto.13

Entretanto, um outro viés se alcançava pela palavra, muito embora seja possível compreender um certo sentido comum. Refiro-me ao qualificativo “degenerado”, porque diferente da espécie original; 14 degenerado, da mesma forma,

porque não conforme o original, ou porque oriundo de várias espécies. Ou ainda, como informa um dicionário de autor “brasileiro”, publicado originalmente em 1813: animais gerados com alguma diferença na casta.15 A partir desta interpretação,

entende-se que Gregório Gonçalves e entende-seus filhos não eram bastardos porque oriundos de uniões ilegítimas – a documentação o comprova. Seriam bastardos porque foram gerados no seio de uma condição social definida pela mestiçagem. Enfim, porque era bastarda a união de Gregório com a mulata forra Anna Maria.

Muito embora se evidencie uma certa relação, poderiam ser assim momeados, simplesmente, pelo fato de Gregório ter tido uma ascendência indígena e portuguesa, como informa John MONTEIRO referindo-se ao século XVII:

Dois termos, freqüentemente tidos como sinônimos, na verdade expressavam uma diferença crítica na época: mamaluco e bastardo. Tanto um quanto o outro descreviam a prole de pai branco e mãe indígena; no entanto, no caso dos mamalucos, os pais reconheciam publicamente a paternidade. Por conseguinte, os mamalucos gozavam da liberdade plena e aproximavam-se à identidade portuguesa, ao passo que os bastardos permaneciam vinculados ao segmento indígena da população, seguindo a condição materna. Já no século XVIII, o termo mamaluco caiu em desuso, enquanto bastardo passava a designar,

genericamente, qualquer um de descendência indígena. 16

Daí porque os filhos de Gregório e Anna herdariam essa denominação. De qualquer forma, foi assim que os vigários curitibanos costumavam guardar na paróquia, até o início do século XIX, dois livros para cada tipo de assentamento (batismos, casamentos, sepultamentos); um, para os “brancos”, de boa casta, e outro, para os escravos, administrados e bastardos – o conjunto da população que constituía a base da pirâmide social.17

13 BLUTEAU,

V. 2, 1712.

14 Como arcos bastardos, sella bastarda, peça bastarda, galé bastarda, trombeta bastarda, uva bastarda, letra bastarda..., cf.

BLUTEAU, V. 2, 1712.

15 SILVA, 1922. Bastardo, adj, filho illegitimo, cujo pa as Leis não reconhecem ou é incerto [...] fig. Dos animaes gerados por

pais com alguma diferença na casta. [Idem].

16 E é dessa forma que se entende, finalmente, porque os “mamalucos” eram assim conhecidos, no

Brasil Meridional [HOLLANDA, 1975:144].

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Continuemos, portanto, analisando as informações contidas nos documentos paroquiais e nas listas nominativas, a respeito da história dos Gonçalves. Assim, se é certo que não temos condições de distribuir para essa época os indivíduos, famílias ou domicílios em função da renda – em virtude de falta de informações neste sentido –, também não teríamos condições de fazê-lo para o domicílio de Gregório e Anna Maria. Esse dado, quando existe, refere-se às listas elaboradas de 1798 em diante: de fato, muito embora detalhe as atividades de famílias com mais posses, as listas dos domicílios de pessoas comuns também poderiam trazer informações nesse sentido. Dessa forma, no censo de 1803, consta que a “casa” de Gregório e Anna Maria produziu 10 alqueires de feijão naquele ano. Portanto, quando existentes, essas informações permitem, por meio de aproximações, classificar grosseiramente os domicílios do passado segundo a ocupação dos seus integrantes, pressupondo, inclusive, o nível de vida.

Finalmente, a localização dos “bairros”. Com muito cuidado – na medida em que a distinção rural-urbana é, principalmente, utilizada para caracterizar as populações nos dias atuais –, é possível definir a localização dos bairros a partir desses critérios, fixando-os nas vilas propriamente ditas, nos seus *rocios ou, como é o caso de Gregório, em localidades mais distantes do termo da Vila. De qualquer forma, o fato de terem sido recenseados na “Segunda Companhia de Ordenança desta Villa de Coritiba” – como se verá adiante – mostra que não viviam muitos distantes do centro “urbano” da época. De modo igual, no século XVIII dominava o mundo rural, se abstrairmos as poucas cidades que se localizavam na direção do litoral.

Os levantamentos censitários da época revelam que parte significativa da população vivia em localidades, povoações e fazendas, relativamente distantes da vila. A listagem de 1792 mostra que o domicílio dos Gonçalves estava situado na povoação de Nossa Senhora do Amparo;18 lá, provavelmente, plantavam

para o gasto de sua caza, conforme informação obtida da lista de 1801. Entre 1792 e 1797 mudaram-se, ao que tudo indica. O segundo levantamento nominativo de habitantes que estamos considerando, registra que o fogo da mencionada família podia ser encontrado no “bairro” de Itaperuçu. Tanto uma localidade como outra constituíam parte da mesma companhia de ordenança. Naquela

18 Nunca é fácil, para o passado, identificar exatamente os toponímios. Se a lista nominativa designa desta

forma o “bairro” no qual estava localizado o domicílio dos Gonçalves, uma ata de batismo de 1790 indica que havia uma Igreja de Nossa Senhora do Amparo, na Nova Povoação da Ribeira. Ver, no anexo do capítulo, o do cumento 15.

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época, um bairro podia ter comumente o mesmo significado que na atualidade; porém, no caso específico, refere-se a uma divisão administrativa das ordenanças, critério para a organização militar da população na época.

Em síntese, à família de Gregório e Anna Maria somavam-se todas aquelas domiciliadas na Vila, no seu rocio e na região abrangida pelo território curitibano. O censo de 1797 constitui como que uma “fotografia” da aludida população, captando um instante do seu dinamismo; é o estado da população num determinado momento, ou sua estrutura.

É preciso, entretanto, enfatizar que esta, numa perspectiva demográfica, apesar da aparente imobilidade que traduz, expressa sempre um movimento. Isto pode ser verificado justapondo-se pirâmides etárias obtidas de censos diferentes no tempo; por exemplo, de 1792 e 1797, como a figura que segue:

Figura 3

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Na segunda pirâmide a família completa dos Gonçalves pode ser visualizada tendo em vista os grupos de idade a que pertencem (0-4, 5-9, ... até a faixa de 45-49 anos), tal como são definidos modernamente pelos censos. Na primeira pirâmide a situação não é diferente. Todavia, nesta, todos os componentes do domicílio encontram-se em faixas etárias mais perto da base, cinco anos mais jovens; e Anna, a filha mais nova, ainda não havia nascido.

Quanto às outras distribuições que caracterizam o estado da população, algumas pouco mudaram de um momento ao outro, outras modificaram-se de forma mais significativa. É possível mesmo aventar que a “migração” dos Gonçalves – pois foram “capturados” pelos recenseamentos em duas localidades –, por diminuta que fosse, poderia indicar uma melhoria na situação econômica da família. Essa observação se deve ao fato de que a família poderia mudar tendo em vista a possibilidade de uma melhoria qualquer.

Ainda, quanto à distribuição por sexo, visualiza-se uma alteração com a inclusão da ultimogênita. Da mesma forma, em relação ao estado civil, altera-se

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um pouco a situação entre 1792 e 1797: Felisberto, antes solteiro, casou com Joana Rodrigues de Andrade; de modo igual, Maria uniu-se a Policarpo (Rodrigues) de Andrade, sem dúvida irmão de Joana.19

Assim, a família ou, no caso, o domicílio de Gregório Gonçalves e Anna Maria tem uma história, que integra o conjunto de histórias dos domicílios curitibanos no final do século XVIII. História, portanto, de uma população...

Mudemos, agora, o ângulo da nossa perspectiva. Em vez de dois instantes, acompanhemos a vida dessas famílias a partir das informações obtidas das atas de batismos, casamentos e óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. Tal ângulo de observação é mais apropriado para a caracterização do dinamismo de uma populacão, definido pelo contínuo processo de entradas e saídas de indivíduos; o saldo deste processo nos dá a medida do crescimento ou diminuição dos efetivos populacionais. Isto é, “entradas” e “saídas”, “receita” e “débito”, como numa contabilidade, o que é traduzido por nascimentos/imigração e falecimentos/emigração.

Do ponto de vista das histórias de famílias, e de novo chamamos a atenção para nosso exemplo, a entrada pelo nascimento é facilmente perceptível. Em 25 anos de observação (1772-1797), a referida família cresceu de 2 para 11 componentes, não havendo nenhum óbito a ser contabilizado na primeira e segunda geração. A visualização das migrações é mais complicada, dificilmente observável num exemplo tão pontual. Na família em foco, e no período observado, a única “emigração” que pode ser aventada é a de Felisberto, a partir do casamento. Em 1797, ele não se encontrava mais no rol do domicílio dos Gonçalves. Em contrapartida, ou o recenseador se enganou, ou não observou a presença de Policarpo, genro de Gregório, em 1797: a lista contabiliza ainda as duas Marias, a mais velha casada em 1796.

Para saber se o filho mais velho mudou-se tão-somente para um sítio vizinho, na mesma Companhia, ou mesmo para um local pouco mais distante na mesma região, ou ainda para a vila com o objetivo de trabalhar como assalariado ou artesão, seria necessária uma pesquisa do conjunto de domicílios recenseados nas listas nominativas referentes a outras Companhias de Ordenança. A única informação que temos, dada pelos livros da paróquia, é que o casal fazia parte da totalidade dos fregueses da comunidade: tiveram uma filha, batizada com o nome de

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Senhorinha em 04 de março de 1796 e falecida em 3 de outubro, dois anos depois. Outro filho falecia em 1809 e, 1821, o próprio.20 Além disso, nada

mais se sabe.

O ângulo de perspectiva “longitudinal” que estamos utilizando pode ser representado num diagrama, como o que se apresenta abaixo:

20 Ver, no Anexo II, os documentos 25 e 26.

21 Ou seja, tal eixo permite que se visualize a faixa etária na qual se incluem os indivíduos representados

no diagrama. Ou a idade, conforme o exemplo do casal Gonçalves e sua prole.

Figura 4

Diagrama: representação dos ciclos vitais na família de Gregório Gonçalves

A figura tem nos seus dois eixos de escala a marcação do tempo (eixo “x”) e dos “aniversários” (eixo “y”);21 as diagonais representam os ciclos vitais

dos indivíduos e das famílias. De fato, cada novo indivíduo nascido está assinalado no ciclo vital da família Gonçalves, correspondendo, ao mesmo

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tempo, ao início de um novo ciclo de vida. Estão igualmente assinalados no diagrama os cortes transversais concernentes aos censos de 1792 e 1797. Os ciclos vitais dos avós foram indicados no diagrama, os primeiros em função do ano de nascimento que se presume a partir da leitura de uma lista nominativa levantada em Castro, no ano de 1776, e que registra Clemente Gonçalves, 60 anos, e Joana Cardoza, 40 anos. No que concerne aos pais de Anna Maria, Antonio de Lima e Cypriana Seixas, a representação na figura 4 foi arbitrária, uma vez que não possuímos suas referências demográficas, e nem mesmo sabemos ao certo se ainda habitavam a região dominada pela capela de Bom Jesus dos Perdões, em São José dos Pinhais.

No interior de uma história populacional existem mudanças que, independentemente do dinamismo demográfico, são apenas perceptíveis, pois dependem de definições qualitativas. Refiro-me, por exemplo e em primeiro lugar, à relação entre as mudanças de idade dos integrantes de uma população e o processo de envelhecimento. De um lado, dependendo da época, e ou do lugar e ou da categoria social, conceitos relativos à infância, juventude, adolescência podem ter significados diferentes. Na mesma direção, o significado da palavra “velho” se diferencia de lugar para lugar, de época para época. Quando, em função das condições demográficas o velho rareava, era, variavelmente, venerado como um “ancião”.22

As mudanças no estado civil realmente traduzem alterações no status social, de solteiro para casado, de casado para viúvo, desquitado, ou divorciado. O significado destas palavras varia histórica e culturalmente. Por outro lado, as sociedades humanas refletem de forma diferente uniões não “legalizadas” pelo casamento, tais como uniões consensuais, concubinatos, e outras formas de relações entre os *gêneros. Evidentemente, trata-se de indicações de representações sociais. Mudanças qualitativas também são detectadas a valores culturais concernentes ao amadurecimento da menina-mulher e à procriação, tabus relacionados à virgindade feminina etc. Finalmente, modificações de atitudes concernentes à reprodução estão articulados, geralmente, à adoção ou não de métodos contraceptivos, e um crescimento maior ou menor da população também pode ser o resultado da idade média em que a mulher se expõe à uma relação sexual ou, conforme a época ou cultura, à idade do casamento.

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De indivíduo para indivíduo, de geração em geração, de época para época, transformações qualitativas refletem-se também no campo profissional. Se, de um lado, não devemos confundir mobilidade social com migrações, também sabemos, por outro lado, que muitas vezes deslocamentos de indivíduos estão relacionados à mobilidade “horizontal” e à mobilidade “vertical”, implicando mudanças na qualidade de vida. Enfim, trata-se de questão complexa, aqui simplesmente sinalizada.23

Finalizando, devem ser frisadas as conexões evidentes entre a população, conjunto de indivíduos, força de trabalho e consumo, nexos estes que fundamentam organizações sociais. Fica óbvio também que transformações qualitativas na população e na sociedade resultam igualmente como conseqüência da irrupção de crises epidêmicas e econômicas, de fatores genéticos, psicossociais (ou comportamentais) – e, como resultado, alterações nas representações que os grupos populacionais fazem de si próprios –, políticos, e assim por diante...

1.3 Produção e limites das estatísticas populacionais do passado

Por natureza, o historiador desconfia de suas fontes de informações. Em conseqüência, pergunta-se até que ponto pode confiar nos dados (que testemunham, por exemplo, a história que está sendo aqui posta em relevo), que lhe permitiram reconstruir de modo sumário a história da família de Gregório Gonçalves. Porque, de fato – e só para começar, citando um só aspecto da questão –, se a mencionada família tivesse vivido um século antes em Curitiba, dificilmente teria deixado traços, pois os registros paroquiais no Paraná são encontrados somente a partir do final do século XVII, e os antigos censos, da metade do setecentos.

Como vimos, tratava-se de um domicílio legitimamente constituído, aos olhos da Igreja e do Estado – na época, não havia registro civil. Mas, e se Gregório e Anna Maria não tivessem se casado, como acontecia com uma percentagem que pode ter sido representativa na sociedade brasileira da época colonial? Sob este aspecto particular, da história da família e do casamento, uma parte da população dificilmente seria recuperada.

Indo adiante, o confronto dos registros paroquiais com as listas nominativas permite verificar se não teria havido *sub-registros de batismo ou de óbito. Para o

23 Uma breve síntese a respeito pode ser apanhada a partir dos termos “migração”, “mobilidade social”

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caso da família em pauta, os dados parecem completos. Não obstante, ao ampliarmos a observação, temos de nos perguntar até que ponto a população curitibana, paranaense e, principalmente, a população total da colônia foi registrada nos antigos censos e nas paróquias de então.

1.3.1 Os registros paroquiais

Sabemos que a Igreja Católica Romana, mais tarde seguida pelas diversas denominações “protestantes”, anunciou precocemente o que viria a ser uma das características da “modernidade”. Desde o Concílio de Trento (1545-1563), instituiu formas de controle da sua população, definindo normas para padronizar os registros dos principais sacramentos que marcam a passagem dos diversos momentos do ciclo de vida dos cristãos católicos. Dessa maneira, os padres foram ensinados como registrar os Batismos (e mais tarde a Crisma), os Matrimônios e os Sepultamentos. Tais normas foram completadas no século XVIII, por ocasião da instituição do Rituale Romanum que, além de definir como fazer tais assentamentos, ensinava a fazer contagens periódicas dos paroquianos.24

É dessa maneira que, muitas vezes, encontramos no acervo dos arquivos paroquiais os chamados “róis de confessados”,25 ou listas denominadas de Status

Animarum (estado das almas), relacionando os indivíduos aptos a se confessar. Essas medidas coincidem com o início da expansão do cristianismo que acompanhou o processo colonialista encetado no século XVI. A Igreja, naturalmente, cuidou de estender seu controle também nas populações do Novo Mundo. As peculiaridades do povoamento e da colonização, bem como o tamanho e a rarefação do território, com seus *vazios demográficos, constituíam obstáculos para que tais objetivos fossem plenamente alcançados, tanto na América hispânica como na portuguesa.

Assim, essas questões poderiam justificar a lacuna entre as ordenações da Igreja Católica e, no que concerne aos registros paroquiais, sua definitiva implantação no Brasil colonial. De fato, o Arcebispado da Bahia, que tinha sob sua jurisdição a Igreja na América portuguesa, justificava em 1707 a publicação de “Constituições” para serem seguidas no Brasil, considerando que as Constituições de Lisboa, até então em vigor, não tinham como se acomodar a

24 MOHLS, 1954:88 e segs.

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tão vasta região.26 Por essas ordenações, cada paróquia deveria guardar livros

encadernados, com folhas numeradas e rubricadas pelo vigário, com termo de abertura e de encerramento, um para cada tipo de registro: Batismos, Casamentos e Sepultamentos. Da mesma forma, estes estatutos também ensinavam como se deveria elaborar as atas relativas aos batizandos, aos que se casavam na paróquia, e aos defuntos.27

De maneira variada, as diversas paróquias da colônia procuraram se adaptar às exigências. Em Curitiba, por exemplo, os primeiros registros de batismos são praticamente contemporâneos à época em que se erigiu o *pelourinho da Vila (1693). Entretanto, os casamentos e os óbitos só começaram a ser assentados, respectivamente, em 1732 e 1731. É difícil atinar quais seriam as razões dessa defasagem cronológica. É bastante provável que, precariamente registrados os primeiros casamentos e óbitos, seus assentamentos se perderam.

As atas de casamentos

Todavia, para além das questões institucionais, no dia-a-dia, como a população se comportava em face da legislação canônica? Com relação ao casamento, a historiografia tem discutido bastante a questão: de um lado existem aqueles historiadores que defendem as indicações de que parcela importante da sociedade brasileira tradicional – situação que variava em função de condicionamentos diversos – ou tinha dificuldade para atender às exigências da Igreja ou, talvez em caso extremo, não tinha interesse em regularizar o matrimônio. Auguste DE SAINT-HILAIRE passou-nos seu testemunho e opinião a respeito, o que, a meu juízo, poderia valer não só para as primeiras décadas do século XIX, mas principalmente para o século XVIII:

O *vigário de vara, possui, além disso, outras espécies de jurisdição. É juiz de casamentos, e não os pode contrair nenhum sem o seu consentimento. Ainda que as partes estejam perfeitamente de acordo é necessário que tenha lugar um processo perante o vigario de vara, e o resultado dessa ação byzarra é uma provisão que se paga por 10 ou 12$000 réis [...] ou mais, o que autoriza o outro a casar os nubentes. Se existe a sombra de um impedimento, então a despesa sobe a 30, 40, 50 $ reis ou mais. É verdade que não há nada a acrescentar a essas despesas para a cerimonia do casamento propriamente dito, mas é necessario dispender ainda 1$200 com os proclamas.

26 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853:[XXI]. 27 Idem: 28-9; 130; 292.

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Assim em um país onde já existe tanta repugnancia pelas uniões legítimas, e onde seria tão essencial para o Estado e a moralidade pública que elas fossem encorajadas, os

indigentes são, por assim, arrastados pela falta de recursos a viver de modo irregular.28

As práticas de simples uniões consensuais não se coadunavam com as exigências de legitimação das uniões, sempre muito explícitas por parte da Igreja. Com efeito, a contradição em parte se explicava pela flexibilidade do “baixo clero” na aplicação das normas conciliares e pela resistência que opunham às tentativas dos bispos, para determinados casos, em tornar gratuito o casamento para os pobres.29 Os modestos curas das paróquias mais distantes não teriam

nem interesse nem clarividência para contribuir com seu esforço para a legitimação dos diversos tipos de “amancebamentos” que vigoravam na colônia.

Por outro lado, se custava muito caro aos pobres rústicos da colônia casar, porque eram altos os custos materiais e burocráticos estipulados pela Igreja, talvez outra razão, igual ou mais importante, tramava contra o sacramento matrimonial. Refiro-me às grandes extensões que se evidenciavam no Império português e, em especial na América, a grande e característica mobilidade da população – sem mencionar que tal fato promovia a própria instabilidade dos casais. Entretanto, mesmo com esses obstáculos (ou independente deles) – e apesar de um relativo desprezo que se nutria pelo significado mais profundo deste sacramento –, alguns autores sustentam que o casamento era socialmente valorizado na Colônia, porque o status de casado e o apego aos ritos exteriores das núpcias conferiam legitimidade social.30 Pelo menos nas áreas agrárias – vale

dizer, onde a sociedade e as famílias eram mais estáveis do ponto de vista das migrações – casar na Igreja ou, em outras palavras, casar segundo os padrões dominantes na sociedade escravista colonial, significava garantir o mínimo das condições de sobrevivência [...]. Significava, por outro lado, a aceitação do “forasteiro” pela comunidade local,31 porque

aceitá-lo para casar com uma filha da terra era dar a ele signo de respeito.

Teria sido essa, porventura, uma das razões para que Gregório Gonçalves e Anna Maria de Lima enfrentassem as demandas burocráticas que levaram ao

28 SAINT-HILAIRE, 1975: 84-5. Mary DEL PRIORE corrobora meu juízo, ao informar que o custo da

papelada, em São Paulo girava em torno de 1$160 réis em 1790, mas em 1800 já tinha subido para 2$400 réis, segundo informava o governador Melo Castro e Mendonça (...) [1997:312-313].

29 VENÂNCIO, 1986:110-1. 30 VAINFAS, 1989:101. 31 FARIAS, 1998:63.

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processo das proclamas do seu casamento? Além do custo, comentado acima por SAINT-HILAIRE, observe-se que os autos do casamento do casal somam 11 páginas manuscritas, que agregam um processo com 13 “termos” e mais o cômputo das custas.32 Daqueles, três termos certificam que os noivos foram “denunciados”

(são as proclamas) três vezes em cada uma das paróquias aos quais eles estavam relacionados: primeiro em Curitiba, onde seria realizado o casamento, mas da mesma forma em São José dos Pinhais, onde havia sido batizada a noiva, e em Antonina, local de nascimento de Gregório Gonçalves. A data mais antiga do processo, correspondendo ao sétimo termo, refere-se às proclamas na Paróquia do Pillar, cuja certidão foi lavrada em 29 de maio de 1772. Ou seja, pelo menos desde o mês de maio do ano do casamento, realizado no início de setembro, os noivos já estavam envolvidos com seus procedimentos burocráticos.

É evidente que a situação é complexa, ainda mais porque as discussões historiográficas ou fundamentam-se em estimativas de casais amancebados e ou não consideram de maneira adequada regiões culturais diferenciadas na América portuguesa. É muito provável, nesse sentido, que muitos vizinhos de Gregório e Anna Maria vivessem maritalmente sem serem casados. As sociedades sustentadas por economias de subsistência tinham em alto grau uma instabilidade característica das regiões de fronteiras, como eram os campos curitibanos ainda na segunda metade do setecentos.

De toda maneira, o pequeno ou o grande número de casais que viviam irregularmente aos olhos da Igreja, comportavam-se de maneira coerente a uma herança dos primeiros tempos da colonização, relacionada a práticas matrimoniais trazidas pelos portugueses da Metrópole. Esses costumes eram reconhecidos pelas Ordenações do Reino, e consistiam no casamento “à porta da Igreja” e no casamento “presumido” – aliás, esta última prática pressupunha, apenas, uma coabitação prolongada.33 Evidenciar-se-ia, deste modo, uma espécie de

“banalização” da união consensual, relevada pela sociedade. Ou seja, no quadro lógico dos séculos XVI e XVII – e, acredito, também no XVIII – na mesma medida em que tudo era pecado, quase nada era objeto de escândalo e indignação.34 Na base de

32 Ver, no Anexo III, a transcrição do Processo de Auto de Casamento de Gregório Gonçalves e Anna

Maria de Lima, datado em 1772.

33 SILVA, 1984:37-8. Ver, também, VAINFAS, referindo-se aos “costumes do Reino em matéria de

casamento” (século XVII) [1989:71-2].

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tudo, estariam as formas culturais características de uma sociedade que se constituía, articulada a um processo de ocupação e colonização de imenso território.

Os assentamentos de batismos

É óbvio que, dadas as condições descritas, era também muito difícil batizar as crianças, mas cremos que, nesse aspecto, os dispositivos legais eram mais respeitados. Além de não existirem impedimentos de ordem burocráticos e materiais, batizar era uma questão fundamental de sobrevivência, e não só após a morte! O batismo, segundo Maria Luiza MARCÍLIO, poderia exercer

o meio de ingresso na vida do espírito, a iniciação na vida cristã e da Igreja, mas era ainda um meio de se conseguir a vida do corpo. A criança deve ser levada logo à pia batismal,

para assegurar sua saúde e sobrevida à primeira e mais difícil fase de sobrevivência. 35

Com efeito, como era “muito perigoso dilatar o Baptismo das crianças”, as próprias “Constituições” exigiam que os pais ou responsáveis levassem as crianças para serem batizadas até os oito dias depois de nascidas, sob pena do pagamento de “dez tostões”.36 Sem dúvida, como será comentado adiante, o risco da morte

rondava o recém-nascido, naquela sociedade.37 A Igreja, em conseqüência,

permitia o batismo em casa, “por necessidade”. Ultrapassado o risco de vida, a criança deveria ser levada à igreja para “se lhe fazerem os exorcismos, e se lhe porem os Santos Oleos”.38 No entanto, é possível acreditar que muitos casais deixavam as

coisas como estavam: a criança já estava batizada, e salva.

Seja como for, ao se considerar a possibilidade de se estudar a natalidade a partir da relação nascimento e batismo, é sempre necessário estimar a ocorrência de *sub-registros. Por aquelas e outras razões, inclusive na consideração das diversidades regionais da América portuguesa, o fato é de que nem todas as famílias levavam no prazo estipulado seus recém-nascidos para serem batizados. Nos estudos que se fizeram de crianças nascidas de mães solteiras em Curitiba, um feliz acaso e alguns párocos diligentes (pois essa prática não era comum na

35 1986:202.

36 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853:14.

37 O prazo, acima referido, remete-nos, por exemplo, ao “mal-de-sete-dias”, nome popular do *tétano do

recém-nascido (*tétano neonatal). É na primeira semana de vida da criança que se instala de maneira característica o quadro clínico da doença, pois é o período da sua incubação.

Referências

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