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A TRANSIÇÃO OLIGÁRQUICA E O CONTINUÍSMO AUTORITÁRIO

3 TRANSIÇÕES POLÍTICAS CONSERVADORAS E GETÚLIO VARGAS NO FILME “REVOLUÇÃO DE 0”

3.3 A TRANSIÇÃO OLIGÁRQUICA E O CONTINUÍSMO AUTORITÁRIO

A primeira fase da República brasileira foi caracterizada pelo revezamento governamental das oligarquias rurais de São Paulo e de Minas Gerais e pela fragmentação nacional, esta decorrente de atores políticos pautados por interesses econômicos locais. A questão oligárquica da República Velha – como argumento para criação daquela que seria uma nova República – pode ser relativizada devido ao remanejamento do poder entre oligarquias. O Estado sempre é oligárquico com a alternância entre diferentes grupos frente ao poder, segundo pontua Jacques Rancière (2014). Getúlio Vargas é oriundo de uma oligarquia rural gaúcha, politicamente descendente do castilhismo-borgismo, implicado no Partido Republicano Rio-grandense (PRR).

Nesse sentido, o mito de Getúlio Vargas como hábil conciliador remonta ao início de sua trajetória política. Segundo Luciano Arone de Abreu (1997), enquanto líder da bancada gaúcha na Câmara de Deputados, Getúlio atuou para que o Rio Grande do Sul não sofresse intervenção federal devido à beligerância da Revolução Federalista de 1923. A partir disso, Vargas articulou a sucessão de Borges de Medeiros; o histórico líder do PRR governou o Estado como herdeiro político de Júlio de Castilhos em continuidade ao castilhismo. Eleito presidente do RS pelo Partido Republicano, Getúlio Vargas manteve a tradição hegemônica de sua sigla, capitaneando novos aliados políticos. Conforme aponta o autor, frente ao governo estadual, Getúlio colocou em prática ações que não visaram ao equilíbrio de forças, mas sim a concessões aos seus opositores.

Em Revolução de 30, avistamos uma sequência cujo fragmento do material de arquivo mostra homens e mulheres que interagem de maneira extrovertida com o aparato cinematográfico. Enquadrados em primeiro plano e plano de conjunto, os sujeitos direcionam olhares e sorriem para a câmera; também dançam e empunham

espetos de churrasco, assim, transformando o almoço campeiro numa espécie de grande brincadeira registrada em imagens.

Em seguida, vemos os preparativos para uma partida de futebol entre o Esporte Club Savoia e o Club Athletico Paulistano. O padre abençoa o campo, e os jogadores posam descontraídos para a câmera. Na banda sonora, ouvimos a marchinha Pinta, Pinta Melindrosa (Freire Júnior, 1926); desse modo, canção e melodia intensificam a espontaneidade dos personagens vistos nas imagens57.

Sobretudo, a montagem sugere o flagrante de um cotidiano festivo que transcorre sem perturbações (figura 27).

A pintura está na moda hoje em dia Bem resolve os caprichos da mulher Dá-lhe o sangue que lhe rouba a anemia Dá-lhe o novo que a beleza lhe requer Pinta, pinta, pinta, pinta melindrosa Pinta, pinta, pinta, pinta, pinta bem Quem não torna suas faces cor-de-rosa Pinta o sete lá na rua com alguém Olhos negros, lábios rubros, tez rosada Predicados exigidos para beleza Uns beijinhos numa boca bem pintada Põe da gente para sempre a alma presa Quem não gosta de uma boca bem corada Quem não gosta de nas tintas carregar Se procuras das velhotas as fachadas Hoje em dia a pintura reformar.

(REVOLUÇÃO..., 1980, tempo: 31’26’’- 34’48’’)

Nessa sequência, Boris Fausto analisa as condições geopolíticas do final da Primeira República. Naquele período, o imperialismo estadunidense ganhava destaque na América Latina em detrimento do domínio inglês. Porém, o historiador ressalta que não houve grande preocupação norte-americana quanto aos acontecimentos da Revolução de 30, principalmente, devido ao fato de a sublevação não questionar a ordem dominante no país, distanciando-se de uma revolução social (REVOLUÇÃO..., 1980, tempo: 33’37’’-34’00’’).

57 Não identificamos a origem desses dois fragmentos fílmicos que compõem a sequência do longa-

Na mesma sequência, novo fragmento imagético é inserido e avistamos Getúlio Vargas numa recepção em sua homenagem como deputado federal58.

Notamos que esse material de arquivo presente no longa-metragem de Sylvio Back foi apropriado do filme Getúlio Vargas – glória e drama de povo (GETÚLIO..., 1956)59.

Getúlio está à mesa onde o churrasco é servido num clima de aparente informalidade; nesse instante, Vargas direciona seu olhar ao aparato cinematográfico. As imagens que expressam desembaraço e extroversão mostram-no como assimilado ao cenário político da primeira fase republicana, sugerindo prestígio político no meio oligárquico regional e nacional.

Em Revolução de 30, Getúlio aparece circundado por expoentes políticos, militares, mulheres e crianças que o cumprimentam, interagindo com olhares e acenos para a câmera. Os enquadramentos em primeiro plano e plano de conjunto desse grupo flagram brincadeiras dos meninos direcionadas ao cinegrafista, demonstrando familiaridade entre aqueles que posam para o aparato cinematográfico. Esse aspecto é intensificado com a trilha sonora por meio da música Pinta, Pinta Melindrosa (Freire Júnior, 1926). Observamos, portanto, a correlação entre o rosto da elite e o rosto militarista na apresentação de Getúlio Vargas.

58 Durante o Governo do Presidente Artur Bernardes (1922-1926), antes de assumir o Ministério da

Fazenda na gestão de Washington Luís.

59 Segundo a narração em off do filme de arquivo Getúlio Vargas – glória e drama de um povo

(GETÚLIO..., 1956), esses seriam os registros cinematográficos mais antigos de Getúlio Vargas, correspondendo ao ano de 1924.

Figura 27: familiaridade de Getúlio com o contexto político-oligárquico nacional

Fonte: adaptado do filme Revolução de 30 (REVOLUÇÃO..., 1980). Tempo: 31’26’’- 34’48’’.

O filme de Sylvio Back recorre a outro trecho do longa-metragem Getúlio Vargas – glória e drama de um povo (GETÚLIO..., 1956). Desta vez, o material de arquivo refere-se ao excerto do cinejornal que registrou a posse presidencial de Washington Luís, em 1926. Avistamos a chegada do comboio que levou o futuro Presidente ao Palácio Tiradentes e a sessão solene de juramento à Constituição. Por fim, observamos a escolta do novo mandatário até o Palácio do Catete junto à comitiva ministerial (figura 28).

Na banda sonora, ouvimos a canção Paulista de Macaé (1927) sobreposta à voz over de Boris Fausto, que pondera sobre o rompimento político entre Washington Luís e o setor cafeeiro. A composição musical de Pedro de Sá Pereira, interpretada por Frederico Rocha, produz dissenso entre o entusiasmo da marcha e a constatação de Boris Fausto sobre o declínio político de Washington Luís.

Nosso dinheiro o cruzeiro vai subindo

Enquanto o câmbio vai caindo, dando ao povo o que falar E a oposição, que não perde a ocasião

De respeito perde o jeito e diz que a coisa vai quebrar Paulista de Macaé, o homem de fato é

E no Palácio das Águias, olé, com o povo ele pôs o pé E a Prefeitura, sinecura desta terra

Contra o qual o povo berra faça chuva ou faça sol Tem um paulista pra que assista na cidade Essa grande novidade que se chama futebol E na Central que tanto morre altercaçando E o povo vai camurçando direitinho pro Caju. Se queres favor que mais arderam no concurso Pelo ar vou viajar quando chegar o Jahú

(REVOLUÇÃO..., 1980). Tempo: 37’31’’- 40’54’’.

Em primeiro plano, Getúlio Vargas e os demais ministros do novo governo posam para a câmera, direcionando seus olhares ao aparato cinematográfico – o político gaúcho fora designado ao Ministério da Fazenda. A câmera desloca-se em movimento panorâmico frente às autoridades políticas, interrompendo o percurso ao enquadrar Getúlio Vargas junto a Washington Luís – Getúlio é o primeiro ao centro da esquerda para direita no quarto fotograma da figura 28. A imagem permanece estática por alguns segundos, e a sequência termina em fade-out. Dessa maneira, o rosto da elite revela Getúlio Vargas como assimilado às condições sociopolíticas da República Velha.

Figura 28: Getúlio Vargas naturalizado com as condições políticas da Primeira República

Fonte: adaptado do filme Revolução de 30 (REVOLUÇÃO..., 1980). Tempo: 37’31’’- 40’54’’.

De acordo com o que as imagens do longa-metragem propõem que reflitamos, a sublevação de 3 outubro de 1930 demarcou a ascensão de um grupo oligárquico outrora periférico, mas naturalizado com a dinâmica política daqueles que estavam no comando do governo federal. Dessa maneira, o filme de Sylvio Back chama atenção para as condições conservadoras da redemocratização no contexto em que foi lançado.

Com efeito, Revolução de 30 sugere atentarmos para as repetições históricas e distancia-se de qualquer nostalgia que imagens e sons do passado possam provocar. Antes disso, o filme de arquivo interroga o período de seu lançamento, atualizando materiais de arquivo diante dos novos desafios sociopolíticos brasileiros. Daí surge a potência do longa-metragem, que justapõe presente e passado através de suas imagens, proporcionando que pensemos sobre o momento no qual o filme é revisitado por esta pesquisa – e sobre o futuro.