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IMAGENS DO ESTADO NOVO 1937-

4.3 GETÚLIO VARGAS E O “VERDE-AMARELISMO”

Em Imagens do Estado Novo 1937-45, atentamos para sequência que mostra os primeiros registros fílmicos de espetáculo público promovido pelo governo autocrático de Getúlio Vargas. Na antiga praia do Russel, Capital Federal, observamos o ritual de cremação das bandeiras estaduais abolidas pela constituição estado-novista. A partir daquele momento, o país estaria sob a égide única da signa nacional.

Esse evento cívico foi promovido junto à missa campal celebrada por Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. A imagem da bandeira brasileira toma conta de toda a extensão do altar, evidenciando-se como símbolo do regime. Getúlio e Darci Vargas chegam de automóvel à cerimonia, posicionando-se no palanque presidencial.

Enquadrado em plano geral, avistamos o altar através do tilt de câmera, deslocando-se harmoniosamente de cima para baixo, expressando, desse modo, a grandiosidade da signa nacional, que serve como pano de fundo ao local de culto. Em seguida, notamos Getúlio Vargas enquadrado em plano de conjunto, olhando por um instante em direção ao aparato cinematográfico. Por meio da correlação entre a

imponência da cerimônia cívica e a particularidade do olhar de Getúlio, o rosto do militarismo faz-se presente. Isto é, o filme acentua a cumplicidade entre os propósitos do regime estado-novista e seu governante, assim, comprometendo Vargas com o seu histórico autocrático. Sobretudo, o longa-metragem expressa que o ditador não esteve parcialmente isento das articulações autoritárias de sua base de apoio político- militar.

Em seguida, avistamos a condução de Heitor Villa-Lobos frente a dezenas de pessoas que cantam em uníssono. O filme de Eduardo Escorel destaca como as artes estavam implicadas na legitimação da ditadura varguista. A partir do plano de conjunto, novamente observamos o altar. Desta vez, a câmera desloca-se em tilt de baixo para cima, destacando a imponência da bandeira nacional; também revela outro elemento visto como detalhe: no edifício atrás do palco, notamos a pequena signa brasileira posicionada no parapeito da janela.

Figura 43: atualidade do legado do autoritarismo de Getúlio Vargas em imagens cívicas

Fonte: adaptado do filme Imagens do Estado Novo 1937-45 (IMAGENS..., 2016), tempo: 49’ 33’’ a 52’ 05’’ (parte 1.)

Embora a bandeira brasileira também esteja associada às manifestações democráticas, na atualidade, notamos a recorrência da signa nacional em mobilizações que evocam os períodos ditatoriais da história nacional. Ostentadas nas janelas, empunhadas nas ruas ou assumindo variações que servem a vestimentas e adereços, nos últimos anos a bandeira do Brasil passou a ser vista – por exemplo – em protestos a favor do golpe parlamentar (EL PAÍS, 2016) e reivindicando a intervenção militar, conforme parcela dos caminhoneiros grevistas, em 2018 (OLIVEIRA; BETIM, 2018)71.

A signa – que também foi exibida como valia contra o suposto comunismo na deposição de Jango – reapareceu, confrontando a perspectiva política à esquerda. Na contemporaneidade, a bandeira nacional é apresentada como emblema do ufanismo consolidado nos anos de Estado Novo. Nesse sentido, as imagens que mostram Getúlio Vargas no primeiro ato cívico estado-novista rememoram o autoritarismo patriótico de outrora que inspira as disputas políticas do presente.

Através do filme de arquivo, o imaginário da nação aparentemente desprovida de conflitos aparece na sequência em que observamos a cerimônia de queima das bandeiras e na sequência criada com fragmentos de O Descobrimento do Brasil (1937), dirigido por Humberto Mauro. Conforme a narração em off, o lançamento do filme no primeiro mês de instituição do regime contou com o depoimento do diretor sobre seu trabalho. Para Mauro, o longa-metragem caracteriza-se como uma reportagem fidedigna sobre o acontecimento fundante de nossa história. No trecho presente em Imagens do Estado Novo 1937-45, observamos a restituição do quadro Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles.

Na sequência que conta com o material de arquivo do filme de Humberto Mauro, notamos a representação harmônica da convivência entre colonizadores e colonizados. Nesse excerto de O Descobrimento do Brasil, avistamos o plano de conjunto no qual indígenas caminham em direção à câmara, aproximando-se do militar em primeiro plano quanto à perspectiva do enquadramento. Observamos, assim, o rosto do militarismo.

71 As imagens referentes ao impeachment de Dilma Rousseff e à greve dos caminhoneiros podem ser

Ainda nessa sequência, o documentário de Escorel mostra fragmento fílmico com as imagens de um cafeeiro em plano de detalhe, sugerindo o ponto de vista subjetivo dos índios em relação à lavragem cafeicultora, pois também são justapostas imagens de trabalhadores numa fazenda de café. Portanto, o longa-metragem remete ao vínculo entre os índios colonizados e a construção da classe trabalhadora sob domínio do Estado autoritário.

Na banda sonora, ouvimos a marchinha de carnaval Brasil (1939), apresentada na primeira sequência do filme. Dessa vez, a música de Aldo Cabral e Benedito Lacerda é interpretada por Francisco Alves e Dalva de Oliveira. Os falsetes da cantora produzem efeito apoteótico junto às imagens; ou seja, o filme sugere a edificação de um país pacificado, segundo os princípios do trabalho e do nacionalismo.

Figura 44: trabalhadores e autoritarismo: o imaginário de um povo pacificado

Fonte: adaptado do filme Imagens do Estado Novo 1937-45 (IMAGENS..., 2016), tempo: 52’ 47’’ a 54’ 58’’ (parte 1).

Diante das imagens que serviram à propaganda do Estado Novo, o filme de Eduardo Escorel possibilita-nos refletir que o imaginário de uma nação pacificada é

elaborado segundo uma idealização do passado. Nesse sentido, as correlações entre a natureza exuberante e um povo pacífico tornaram-se substância para produção da “[...] mitologia verde-amarela [...]” (CHAUÍ, 2014, p. 169).

Conforme Marilena Chauí, o “[...] verde-amarelismo [...]” desenvolveu-se a fim de perpetuar a imagem brasileira como território de exploração e exportação agrária, desde o período colonial, atravessando o Império e a República Velha, atualizando-se no processo histórico. Nesse transcurso, o “[...] verde-amarelismo [...]” esteve a serviço do imaginário de uma nação, sobretudo, disciplinada.

[...] Não se pode também deixar de lembrar que, significativamente, um grupo modernista criará o verde-amarelismo como movimento cultural e político e dele sairá tanto o apoio ao nacionalismo da ditadura Vargas (como se vê na obra do poeta e prosador Cassiano Ricardo) como a versão brasileira do fascismo, a Ação Integralista Brasileira, cujo expoente foi o romancista Plínio Salgado, defensor de nosso ‘agrarismo’ (CHAUÍ, 2014, p. 172).

Durante os anos de industrialização promovidos pelo governo de Juscelino Kubitschek, a promoção da ideologia nacional-desenvolvimentista dedicou esforços de maneira a sobressair-se ao “[...] verde-amarelismo [...]”, esclarece Marilena Chauí (2014). Nesse período, a consciência nacional das classes sociais implicou o desenvolvimento industrial, assim, o país poderia deslocar-se de sua condição periférica no âmbito da divisão internacional do trabalho. Houve concessão das classes dirigentes brasileiras, suspendendo provisoriamente a histórica organização colonial do trabalho em vista da captação de recursos financeiros e tecnológicos. Além disso, entre o final da década de 50 e o início dos anos 1980, surgiram diversos movimentos artísticos que visaram a desarticular o imaginário verde e amarelo. Dentre eles, o Cinema Novo, o Tropicalismo e a nova MPB. Ainda assim, o “[...] verde- amarelismo [...]” mostrou-se resiliente (CHAUÍ, 2014).

Para Marilena Chauí (2014), a industrialização em escala global atribuiu ao Brasil setores industriais, devido ao baixo custo da mão de obra em relação aos países centrais. Além de que, o agronegócio exportador manteve-se consistente tanto social como politicamente ao longo da história brasileira. Portanto, “[...] se antes o verde- amarelismo correspondia à autoimagem celebrativa dos dominantes, agora ela opera

como compensação imaginária para a condição periférica e subordinada do país [...]” (CHAUÍ, 2014, p. 174).

Não por acaso, o governo do presidente Jair Bolsonaro passaria a promover a denominada carteira de trabalho verde e amarela72. Atualmente, a precarização das relações trabalhistas é promovida pelo governante em detrimento dos direitos sociais da classe trabalhadora. Assim, o culto ao autoritarismo verde e amarelo – exposto em saudações à repressão policial e ao militarismo – torna-se contrapartida aos efeitos da sensação permanente de vulnerabilidade, que os sujeitos vivenciam diante da ideologia neoliberal.

Nesse contexto, compreendemos que Imagens do Estado Novo 1937-45 evoca a atualidade do “[...] verde-amarelismo [...]” (CHAUÍ, 2014), rememorando a ditadura Vargas. Embora as garantias sociais dos trabalhadores criadas por Getúlio estejam sendo depauperadas, o ufanismo verde e amarelo propicia o contrapeso simbólico e possibilita a consolidação de governantes com viés autoritário na contemporaneidade.