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3 TRANSIÇÕES POLÍTICAS CONSERVADORAS E GETÚLIO VARGAS NO FILME “REVOLUÇÃO DE 0”

3.4 O AUTORITARISMO E A SOCIEDADE DE CONSUMO

A partir de fragmentos do longa-metragem São Paulo, Sinfonia da Metrópole (Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny – SP, 1929), o filme Revolução de 30 cria correlações entre a liberdade consumidora e os governos discricionários brasileiros. Se, por um lado, a possibilidade de consumir propôs uma forma de ser relacionada à liberdade sob a ótica capitalista, por outro lado, regimes autoritários solaparam a cidadania.

Avistamos antenas de rádio em plano de detalhe e o primeiro plano de um homem, que opera a transmissão radiofônica (figura 29). Enquanto isso, ouvimos o arquivo sonoro com a voz de Maurício de Lacerda (Brasileiro, 1931), saudando a tecnologia que possibilitou o registro de sua exortação aos brasileiros. O locutor descreve um futuro sem fronteiras nacionais, marcado pela conivência entre os povos americanos. A voz do pai de Carlos Lacerda, principal inimigo político de Getúlio Vargas na fase democrática, produz ironia. Isto é, alude à participação do udenista nas tentativas de golpes articulados por civis e militares, em 1954 e 1964. Para forçar a renúncia ou a deposição de Getúlio e derrubar o governo de Jango, o jornalista Carlos Lacerda mostrou-se efusivo em campanhas midiáticas contra o suposto avanço do comunismo no Brasil, mobilizando manifestações de parcela significativa da classe média urbana no ano de 1964.

Através das imagens de Revolução de 30, observamos a aceleração do tempo segundo o modo de ser citadino; assim, homens e mulheres transitam pelas ruas apressadamente devido ao efeito de montagem. Os enquadramentos em planos de detalhe privilegiam os pés dos transeuntes pelas calçadas, expressando o anonimato dos indivíduos.

Enquadrada em primeiro plano, a mulher solitária direciona o olhar à câmera, enquanto seu rosto funde-se ao plano de detalhe do disco que toca numa vitrola. As imagens dos pedestres dissolvem-se nas imagens de bondes elétricos, automóveis, aviões e dirigíveis, que sobrevoam a metrópole (figura 29). O rosto da elite faz-se presente, mostrando o desenvolvimento da classe média urbana voltada ao consumo. Por sua vez, o rosto militarista aparece conforme o agenciamento das imagens junto à locução do pai de Carlos Lacerda.

Na banda sonora, a orquestração do jazz intensifica a expressão de um país que se integra ao universo capitalista via indústria cultural. Nas imagens, o anonimato dos indivíduos da metrópole brasileira coabita com o desejo de serem vistos através de seus reflexos nas vitrines. Os sujeitos diluem-se à imagem do próprio aparato cinematográfico enquadrado em primeiro plano. Logo após, modelos alternam-se em exibições de sapatos apresentados em plano de detalhe; desse modo, o quadro aproximativo do produto remete ao primeiro plano da mulher em fusão com o disco na vitrola. As imagens fragmentadas dissolvem-se como as imagens que transitam entre o sono e o despertar.

Na mesma sequência do filme de arquivo, avistamos o primeiro plano da modelo exibindo itens de toucador, maquiando-se enquanto sua imagem se desfaz entre os planos de detalhe das mãos, dos lábios e olhos. Observamos as cartelas de sucessivos slogans publicitários: A tristeza vae se suicidar! (sic); Um banho de alegria para o espírito!; Maravilhoso! Turbilhonante!. Por trás dos elementos gráficos, máscaras teatrais tornam-se esmaecidas como as imagens do caleidoscópio.

Figura 29: a formação da sociedade de consumo e os governos autoritários

Fonte: adaptado do filme Revolução de 30 (REVOLUÇÃO..., 1980). Tempo: 56’04’’- 59’22’’.

Em Revolução de 30, a visualidade da sociedade de consumo aparece como “[...] fantasmagoria [...]”. Segundo Walter Benjamin, citado por Willi Bolle (1994, p. 65- 67), essa noção relaciona-se ao “[...] fetichismo da mercadoria [...]”, que contrapõe o caráter emancipatório das “[...] imagens de desejo [...]”. Conforme Benjamin, a imagética da modernidade acontece pelo aspecto contraditório e simultâneo dessa dialética entre as imagens. No filme, a montagem que mobiliza materiais de arquivos executa esse duplo movimento, enquanto rememoração. Apresenta, portanto, a formação de uma sociedade consumidora forjada nas vivências de governos autoritários, considerando a legibilidade do ciclo democrático que teve início no ocaso da última ditatura.

Desse modo, os trechos de São Paulo, Sinfonia da Metrópole remetem à ligação entre o desenvolvimento da indústria cultural brasileira e os regimes de exceção. As produções artísticas sofreram restrições, em parte, fazendo resistência às ditaduras; em outra parte, especialmente no tocante a Getúlio Vargas, atuando a serviço do governante autocrático.

Nesse sentido, a imprensa que foi censurada também operou a favor dos golpes de Estado. Conforme Juremir Machado da Silva (2015), o ano de 1964 foi marcado por um golpe “midiático-civil-militar”. Já na contemporaneidade, Afonso de Albuquerque (2019) aponta para o papel fundamental de setores da impressa frente ao golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016. Os autores destacam, sobretudo, a aversão da mídia hegemônica aos governos democráticos de orientação popular. Em vista disso, parcela significativa da sociedade brasileira dispõe-se a abrir mão de aspectos essenciais à vivência democrática: seja admitindo a consolidação de regimes discricionários, seja dissimulando a democracia segundo ritos institucionais desvinculados da soberania popular.

No longa-metragem Revolução de 30, fragmentos imagéticos e sonoros convocam o vínculo entre o autoritarismo de governantes da República Velha e o primeiro ciclo de governo Vargas. Junto à Ditadura Militar, o passado autocrático de Getúlio faz-se presente enquanto “fantasma” (KRACAUER, 2001) que assombra o filme dirigido por Sylvio Back. Revolução de 30 oferece contraponto ao contexto em que surgiu, período esse caracterizado por reavivar as biografias de personalidades

políticas herdeiras da perspectiva democrática getulista e marcado pelo protagonismo da classe trabalhadora na luta pela redemocratização.

Em suma, neste filme de arquivo, a “imagem sobrevivente” (DIDI- HUBERMAN, 2013) de Getúlio Vargas rememora o ditador que se tornou líder democrático dos trabalhadores, considerando o embaralhar consensual quanto ao imaginário das vivências autoritárias e democráticas da história política brasileira. A visualidade de Getúlio Vargas revela-o como partícipe das velhas práticas oligárquicas repressoras de organizações políticas com origem popular, embora a fase democrática de Getúlio tenha impulsionado o protagonismo político da classe trabalhadora. Revolução de 30 está em diálogo com a conjuntura na qual o revisitamos, mostrando que sua elaboração do passado discricionário justapõe-se ao autoritarismo que permeia a realidade brasileira, tanto outrora, quanto na atualidade.