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CAPÍTULO 3 – CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CONHECIMENTO ESCOLAR

3.2 A transposição didática

Ao difundir-se fora da comunidade acadêmica, o saber científico modifica-se em outros, visando à finalidade didática, passando-se a constituir o que se denomina conhecimento escolar. A escola, instituição específica e especializada na transmissão do conhecimento escolar, responsabilizar-se-á pela transferência desse saber científico, modificado a fim de proporcionar-lhe maior compreensão (LOPES, 1999).

Cabe à escola organizar e transmitir o saber socialmente produzido ao longo da história da humanidade, cuja preservação considera-se importante a cada momento histórico, proporcionando, assim, às gerações seguintes os saberes produzidos pela ciência. Compete ainda a ela o papel de promover o saber sistematizado, caracterizado por sua elaboração, deixando de lado o espontâneo e fragmentado (SAVIANI, 1991).

Visando concretizar sua função, a escola organiza-se a fim de realizar essa tarefa. De um local onde, no início, adultos e crianças misturavam-se para aprender as mesmas coisas, transformou-se num espaço especializado, destinado ao aprendizado de crianças e adolescentes, principalmente, com um tipo de conhecimento a transmitir-se, organizado em função das idades das crianças, numa escala ascendente de complexidade (ARIÈS, 1981). Isso propiciou a criação do currículo escolar – conjunto de conhecimentos a transmitirem-se objetivos a atingirem-se, numa organização maior, o planejamento curricular, determinado pelo Estado, a quem compete também promover as orientações gerais sobre as práticas pedagógicas a realizarem-se nas instituições escolares (LEITE, 1995).

A partir daí, surgiram, na montagem do cenário escolar, os sujeitos envolvidos com a relação do ensinar e do aprender: os alunos, o professor e os saberes a ensinarem-se. Estabeleceu-se entre eles a relação didática, conforme afirma Lerner (2001): “A comunicação dos conteúdos – desses aspectos do saber que foram selecionados como “saber a ser ensinado” – origina a relação didática, essa relação ternária que se estabelece entre o professor, os alunos e o saber” (p. 95).

Segundo Lerner (2001) nesse cenário não se pode considerar nenhum dos elementos da tríade separadamente, devendo-se abranger o conjunto das interações entre eles. Ao ingressarem na relação didática, os três termos que a constituem modificam-se: no lugar da criança surge o aluno, o saber cientifico sofre duas transformações: primeiro em “saber a ser ensinado” e depois em “saber ensinado”, enquanto o adulto transforma-se em professor.

Embora o conhecimento didático tenha que se centrar no processo cognitivo da criança, não se pode caracterizar esta atividade usando-se diretamente das contribuições da Psicologia. Ao estudar-se a situação didática, precisa-se levar em consideração, não só a natureza do saber comunicado, mas também a ação exercida pelo professor, visando garantir a comunicação desse saber, a fim de cumprir a função social a ele atribuída, em suma, responsabilizando-o pelo aprendizado de seus alunos (LERNER, 2001).

A prática pedagógica vai estabelecendo as condições para o funcionamento dessa relação entre esses saberes, selecionados pela cultura de cada época, considerados importantes, e que, por isso, devem se preservar. Conseqüentemente, o sistema educacional deve repassá-los por meio dos programas de ensino e currículos escolares. O conceito de transposição didática surge assim para explicar esse processo obrigatório de transformação desses saberes identificados e selecionados para se tornarem o que, neste trabalho, tem se identificado como conhecimento escolar. Isso leva ao reconhecimento da existência de uma distância obrigatória entre os diferentes saberes, constatação que não se deve de forma alguma minimizar, segundo Chevallard (2005)

Para o didata é uma ferramenta que permite recapacitar, tomar distância, interrogar as evidências, pôr em questão as idéias simples, desprender-se da familiaridade enganosa de seu objeto de estudo. Em uma palavra, o que permite exercer sua vigilância epistemológica. É um dos instrumentos da ruptura que a didática deve exercer para constituir-se em seu próprio domínio, é aquele pelo qual a entrada do saber na problemática da didática passa da potência ao ato ... (p. 16).

Ao se pensar em transposição didática, parte-se de um caminho que os saberes identificados e selecionados pelos sistemas de ensino e passíveis de serem ensinados, devem percorrer até incluírem-se nos programas de ensino e transformarem-se em

conteúdos escolares. Conforme Chevallard (2005), um conteúdo oriundo de um saber a ensinar, sofre um conjunto de transformações que visam torná-los aptos a ocuparem um lugar entre os objetos de ensino. Muitas vezes tornam-se verdadeiras criações didáticas, resultantes das necessidades do ensino, tamanha a distância existente em relação ao saber inicial. Todo esse trabalho que transforma um objeto de saber a ensinar em um objeto de ensino corresponde à transposição didática.

Chevallard (2005) menciona dois tipos de transposição didática; uma que corresponde à transformação de um conteúdo de saber em uma versão didática desse objeto de saber e denomina-se, mais apropriadamente, transposição didática stricto sensu e a outra que representa o estudo científico deste processo de transposição chamada de transposição didática lato sensu, assim esquematizada: → objeto de saber → objeto a ensinar → objeto de ensino. Esse esquema assinalaria a passagem do implícito ao explícito, da teoria à prática, do pré-construído ao construído.

Gabriel (s/d) baseando-se em Chevallard considera o saber acadêmico como um saber extra-escolar que precede e fundamenta cultural e cientificamente o saber escolar, desempenhando um papel central, quando se analisa o confronto entre os dois tipos de saberes e o que se pode aprender melhor quando do tratamento didático no plano cognitivo. Não existe, portanto, um saber escolar, como bem afirmam Chevallard e Joshua (1982, apud Lopes, 1999):

Os autores de manuais são falsos autores, eles são em sua maioria, intérpretes (a exemplo do intérprete de uma canção), que dizem um texto cuja legitimidade em seus lábios (ou melhor, sob sua pena) tem em conta que eles não são autorizados por nenhuma pessoa precisamente, e sobretudo não por eles mesmos (você pode crer em mim, porque não é meu...) (p. 207).

Quer dizer, não existe um conhecimento originado no ambiente escolar ao qual se possa denominar saber escolar. Lopes (1999) salienta que o saber ensinado na escola é atemporal, sem origem, sem lugar e sem autor e que, não sem razão, vem no material didático sem referências bibliográficas e históricas. Astolfi e Develay (1990) referem-se à transposição didática como um processo de reificação do saber escolar em relação ao saber inicial. Existiria, segundo eles, “uma “epistemologia escolar” que pode ser distinguida da epistemologia em vigor nos saberes de referência” (p. 48). Eles afirmam

que a escola não ensina saberes “em estado puro”, mas conteúdos de ensino resultantes das transformações que os mesmos sofrem para se submeterem às exigências didáticas. Marandino (2004), numa síntese das idéias de Chevallard, acrescenta que determinado elemento do saber ao ser transformado para ser ensinado sofre “deformações” devido aos seguintes processos: descontemporalização, quando separado de sua produção histórica; naturalização, no sentido de vir para a escola com o poder de processos naturais; descontextualização dos significantes do saber sábio e uma recontextualização que não se identifica com seu sentido original. Finalmente ocorre despersonalização em relação ao seu produtor, deformação cujo processo já começaria na academia quando da publicidade desse saber. Ao se pensar em todo esse processo pelo qual o saber passa na sua transposição didática, surgem outras instâncias nesse percurso, além do ambiente acadêmico e o ambiente de ensino, com as quais o sistema de saber e de ensino interagem, como os pais e as instâncias políticas. Chevallard (2005) denominou noosfera a esfera onde se pensa o funcionamento didático, onde os representantes do sistema de ensino encontram-se com os representantes da sociedade, traduzindo, assim a interface existente entre o meio educacional e a sociedade, o que acrescenta novos embates ao processo de transposição didática, quer dizer, os consensos e dissensos que envolvem a difusão de conhecimentos e saberes que permeia a sociedade.

Gabriel (s/d) defende a existência de duas etapas para a transposição didática. A primeira, chamada transposição externa ocorre quando o saber acadêmico passa para o plano formal dos currículos e dos livros didáticos, ao passo que a segunda, a transposição interna, acontece quando o professor utiliza os saberes na sua prática docente. Nesta pesquisa referir-se-á ao conceito de transposição externa, como auxílio para análise dos conceitos identificadores da Teoria Histórico-Cultural em livros de Psicologia destinados à formação e à prática docente. A escolha em analisar livros deveu- se ao fato de eles constituírem-se a fonte de informação oficial dos conteúdos tratados nas disciplinas que integram a grade curricular dos cursos acadêmicos exercendo, por isso o papel de fonte de divulgação da produção científica nos meios educacionais.