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Capítulo 1 Saber Escolar, Transposição Didática, Narrativa Histórica e o Ensino de

1.3 A Transposição Didática e o Ensino de História: Reflexões e Ajustes

Necessários.

A partir desta apresentação mais ampla da perspectiva chevallardiana, nosso

desafio é o de nos apropriarmos dessa formulação teórica, elaborada dentro de um

campo disciplinar específico (a didática da matemática), para convertê-la em

instrumental epistemológico útil ao campo das pesquisas sobre o ensino de História.

A energia despendida nesta síntese revela nosso reconhecimento do potencial

explicativo de que essa abordagem é portadora, bem como da sua contribuição

significativa para as análises da produção do saber histórico escolar. No entanto,

não poderíamos nos furtar, nesse exercício, a questionamentos sobre a validade e a

viabilidade da teoria da transposição didática, tanto como formulação teórica em si

mesma, quanto de seu uso para análises do ensino da disciplina História.

Dessa forma, desenvolveremos as reflexões seguindo um duplo movimento.

Primeiramente, abordaremos aspectos gerais da teoria, relacionando-a ao quadro

teórico mais amplo em que ela se insere. A seguir, proporemos certos ajustes, que

em nosso entendimento permitirão o transbordamento da mesma para outros

campos disciplinares, principalmente o da disciplina em questão. Nesse sentido, nos

apoiaremos em duas autoras que pelas suas produções tornaram-se referências no

que tange à utilização da teoria da transposição didática em pesquisas de ensino de

História: Monteiro (2002) e Anhorn (2003).

Para o movimento de inserção da obra chevallardiana em um quadro mais

amplo de referência, tomaremos Anhorn (2003) como lastro de nossas reflexões.

Essa autora contextualiza Chevallard, apresentando-o em diversos âmbitos:

Enquanto estruturalista, Chevallard pode ser entendido como participante da

perspectiva explicativa presente nas ciências sociais que atribui às estruturas um

papel relevante no que se refere às ações dos atores sociais. A vinculação ao

estruturalismo pode ser observada quando o autor considera como relativa a

autonomia do sistema didático e das práticas pedagógicas dos/das

professores/professoras, tendo em conta ainda, como citado acima, que no

momento de transposição didática realizada nas salas de aula, este processo, além

de já ter sido iniciado anteriormente com o trabalho da noosfera, ocorre sob

influências externas que remetem à sociedade como um todo.

Contudo, concordamos com Anhorn (2003, p. 47; 49) quando esta afirma que

a adesão a uma perspectiva estruturalista não significa que Chevallard negue a

capacidade criativa do professor e da instituição escola. Como afirmamos

anteriormente, o autor reconhece inclusive a possibilidade de produção interna de

saberes que supririam, até certa medida, as necessidades intestinas do sistema

didático, se aproximando, nesse sentido, das formulações de Chervel, o que nos

leva a perceber que entre os dois autores existem diversidades, distanciamentos,

divergências, mas não um abismo.

Acreditamos que o reconhecimento de uma autonomia relativa possibilita a

superação de uma visão, até certo ponto, ingênua e ativista, contribuindo para uma

atuação mais lúcida dos docentes, através da compreensão das possibilidades e

limites de sua intervenção.

Voltando ao esforço de contextualização da obra chevallardeana, dentro do

exercício indispensável de relacioná-la ao panorama mais amplo de reformulações

teóricas, temos, em Chevallard, a defesa da didática como um campo de produção

análise: o sistema didático. Assim, o autor desenvolve todo um esforço de

consolidação da didática enquanto campo de investigação.

No pensamento chevallardeano, essa construção parte do questionamento da

epistemologia tradicional, que para o ele tem centrado suas análises apenas no

âmbito da produção de saberes. Chevallard, na última década, dedicou grande parte

de suas análises a uma reflexão epistemológica bastante original, procurando

compreender como se inserem no processo de produção dos saberes escolares

elementos de natureza epistemológica e não apenas de ordem política ou cultural.

Dentro da sua reflexão epistemológica, o autor ressignifica o próprio termo

“epistemologia”. De uma definição em que se designa o estudo dos processos de

produção do saber científico, Chevallard entende ser pertinente ampliar o olhar para

o processo da vida e transformação dos saberes na sociedade como um todo,

envolvendo não só a produção de saberes disciplinares, mas sua utilização, seu

ensino e sua transposição:

Ao propor uma reavaliação dos lugares ocupados socialmente pelas diferentes problemáticas de saberes (produção, ensino, utilização e transposição) no mundo contemporâneo, esse autor entra no debate por outra porta. Ao contrário de restringir sua reflexão à problemática da produção das Ciências ou da Ciência, Chevallard centra sua reflexão na discussão sobre a problemática dos saberes em geral, reconhecendo a pertinência e necessidade, para a vida social, do enfrentamento com estes diferentes níveis de problematização (ANHORN, 2003, p. 63).

Vale salientar que uma das críticas vertidas por Chevallard sobre a

epistemologia tradicional refere-se à valorização da esfera de produção, o que

poderia contribuir com a permanência de relações hierárquicas, verticais, entre os

saberes e os campos de saber. Dito isto, acreditamos que esta colocação desarma a

acusação de que esse autor advogaria uma centralidade para o saber produzido nas

referência exclusiva para a produção dos saberes escolares, tomando assim uma

perspectiva linear, verticalizante, instrumental, dicotômica e hierarquizada

(MONTEIRO, 2002; MOREIRA e DAVI, 2003). Entendemos que Chevallard ao

reconhecer o papel de referência do saber acadêmico tem o mérito de explicitar as

relações de poder11 existentes entre o campo acadêmico e o campo escolar, o que

não equivale a dizer que proponha a permanência ou a manutenção destas

relações. Ao contrário, para o autor (apud ANHORN, 2003, p. 68), invertendo a

lógica da argumentação, a negação do saber acadêmico como referência, e até

mesmo a resistência à aceitação do próprio conceito de transposição didática, já

seria um indício dos mecanismos de reprodução, que lutam por manter o mito da

identidade feliz entre saber acadêmico e o saber escolar, conseqüentemente, a

permanência das relações de poder existentes entre os dois campos.

Não obstante, reconhecemos também, na teoria da transposição didática,

limitações e lacunas. Neste instante, inicia-se o nosso segundo movimento: o de

promover as adequações necessárias, seja no sentido de possibilitar o

transbordamento da teoria para diversos campos disciplinares, ampliando seu nível

de generalização, seja no que se refere a ajustar sua extensão ao campo do ensino

de História. Dessa forma, consideramos necessária, para que a teoria da

transposição didática integre nosso referencial teórico, a introdução de algumas

proposições que a façam superar certas limitações, principalmente no que tange às

especificidades do saber histórico e seu ensino.

Monteiro (2002, p. 86) e Anhorn (2003, p. 177) apóiam-se nas análises de

Develay, um pesquisador da didática das ciências, para fundamentar o alargamento

das possibilidades explicativas da teoria formulada por Chevallard. Develay explicita

11

Caracterizando aqui uma concepção de poder próxima à de Foucault, que não se restringe às esferas macro-institucionais (ANHORN, 2003, p. 67).

sua revisão do processo da transposição didática através da seguinte representação

gráfica (apud MONTEIRO, 2002, p. 86):

Na sua revisão da teoria da transposição didática, Develay (ibidem) introduz

dois conceitos que, articulados ao arcabouço geral formulado por Chevallard,

possibilitam uma mudança qualitativa no que se refere à sua capacidade de dar

conta dos processos complexos de produção do saber escolar. Uma contribuição

importante, no sentido de possibilitar a ampliação da sua capacidade de

generalização, foi a apresentação do conceito de prática social de referência (PSR).

Este pode ser entendido como “atividades sociais diversas (atividades de pesquisa,

de engenharia, domésticas e culturais) que podem servir de referência às atividades

escolares...” (DEVELAY apud MONTEIRO, 2002, p. 86).

Segundo Develay, as práticas sociais de referência representam um

concorrente positivo aos saberes acadêmicos, ou seja, os saberes a ensinar e os

saberes ensinados teriam como referência, além dos saberes acadêmicos, tais

atividades sociais. Assim, o autor considera que, no processo da transposição

didática, os campos de saber instituídos (saber acadêmico, práticas sociais, saberes

escolares) estabelecem uma dinâmica de mútua relação, inclusive com fluxos

SABER ACADÊMICO PRÁTICAS SOCIAIS

DE REFERÊNCIA

SABER A ENSINAR

Escolhas axiológicas Trabalho de didatização

ascendentes e descendentes, podendo as práticas sociais interferirem na produção

dos saberes acadêmicos (ASTOLFI e DEVELAY, 1991, p. 52-53).

Monteiro (2002, p. 86-87) considera que esse conceito desempenha papel

essencial para as análises do saber histórico escolar. Pois, em função da

especificidade dessa disciplina, é imprescindível tomarmos essas práticas sociais

como referência, em conjunto com o saber histórico acadêmico. Para Anhorn, e

nesse ponto que as autoras divergem em suas reflexões, a noção de PSR

apresenta -se como uma contribuição relativa à ampliação do grau de generalidade

da teoria, mas não deve ser associada diretamente à especificidade da História

escolar.

Essa noção tem como objetivo, alargar, completar as referências dos saberes escolares. Ela inclui outras atividades que correspondem a um determinado campo de saber de referência e que devem ser igualmente levadas em consideração no processo de produção dos saberes escolares. Cumpre observar, no entanto, que ela emerge para dar conta de saberes que eram passíveis de serem didatizados, mas que não se constituíam em disciplinas escolares, tampouco se articulavam com um saber acadêmico preciso, o que não é o caso do saber histórico. Ao contrário, no campo da História, a questão pode ser colocada em termos praticamente inversos. A dificuldade não se encontra na ausência de um saber acadêmico suficientemente consolidado e culturalmente legitimado, mas na possibilidade de didatizá-lo, devido a sua natureza epistemológica complexa (ANHORN, 2003, p. 177-178).

Segundo Anhorn, uma das marcas de especificidade do saber histórico seria

a dificuldade de dessincretização. Não obstante, com relação à adequação da teoria

da transposição didática ao campo disciplinar da História escolar, as autoras que nos

servem de referência convergem na adoção de uma outra noção elaborada por

Develay: a de axiologização. Em nosso entendimento, essa contribui para a

superação de uma certa tendência “cognitivista” da abordagem chevallardiana. Para

socialmente construídos, através da seleção de métodos e conteúdos para as

atividades de ensino. Acreditamos que Chevallard dá ênfase ao aspecto cognitivo da

produção do saber escolar, secundarizando as referências às questões valorativas.

A contribuição de Develay pode ser encontrada justamente quando, através do

conceito de axiologização, considera também os valores, as escolhas éticas, dos

agentes participantes do processo de transposição (apud MONTEIRO, 2002, p. 88).

No que se refere a relacionar a noção de axiologização à especificidade do

campo da História, consideramos que Anhorn avança na discussão quando afirma

que a dimensão axiológica, estando presente na produção dos saberes escolares de

um modo geral e compondo o processo de forma implícita, se apresenta de maneira

explícita e sistemática no caso particular da invenção do saber histórico, desde a

academia até as versões escolares. Assim,

Na academia, seja no nível que Chevallard chama de “transposição externa” (noosfera) ou no nível da “transposição interna”(sala de aula), o saber histórico é encenado a partir de escolhas que diferem e se orientam em função da afinidade dos atores envolvidos (pesquisadores, autores de propostas curriculares, de livros didáticos, professores) com as diversas matrizes teóricas e axiológicas privilegiadas pelos mesmos (ANHORN, 2003, p. 180).

A partir dessas reflexões, vemos que a opção pela teoria da transposição

didática não dispensa reelaborações, principalmente quando objetivamos sua

adequação ao campo disciplinar da História. Em nossa empresa investigativa, esta

representa uma abordagem elucidativa do processo de construção dos saberes

escolares. Ela integra nosso trabalho com a função de explicar os processos que

engendraram o saber histórico escolar, possuindo a positividade de considerar

concomitantemente a especificidade dos conhecimentos que circulam no espaço da

importante salientarmos que nossas inquietações não se direcionam às

transformações no saber, no que se refere ao distanciamento entre os saberes

escolares e os científicos.

Após a apresentação dessa epistemologia do campo escolar, a construção do

nosso marco teórico ainda não está completa. Precisamos dar conta da

apresentação de uma de nossas principais categorias teóricas. Necessitamos

explicitar nossa compreensão do que seja a “narrativa histórica”.