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Capítulo 2 Narrativas Históricas (Re)Inventadas nas Salas de Aula: apropriações

2.1 Narrativas Históricas Escolares e suas Matrizes de Referência

Como anunciamos na introdução deste trabalho, o nosso recorte para a

análise da transposição didática interna enfocou as apropriações das narrativas

históricas, entendidas aqui em sentido lato, ou seja, enquanto elemento intrínseco e

característico do discurso histórico, como condição para um discurso ser

considerado histórico, não podendo ser reduzida à versão positivista, como já foi

explicitado no capítulo 1. Entretanto, precisamos deixar claro que nas análises, em

contrapartida, não consideramos os diversos saberes que integram o saber histórico

escolar como sendo reduzidos à categoria “narrativa histórica”. Isso equivaleria a

dizer que se tudo no saber histórico é narrativa histórica, logo a narrativa histórica

não é nada. Explicitar que concebemos a categoria “narrativa histórica” dentro de

uma perspectiva mais abrangente não significa ampliá-la a ponto da mesma perder

os elementos que a identificam ou mesmo que não existam saberes que não se

encaixam em suas fronteiras.

Os saberes relativos ao período da Pré-História ilustram bem a nossa fala.

Apesar de compor o saber histórico escolar, nessas temáticas a ciência de

referência não é a Historiografia, mas a Arqueologia. A não consideração dessas

especificidades poderia nos levar a equívocos como querer submeter discursos

sobre A chegada do ser humano na América ao talante de categorias de análise

cunhadas para compreender as apropriações do saber historiográfico, como por

exemplo a dos “modos narrativos”. Um discurso sobre sítios arqueológicos do Brasil

seria uma narrativa positivista, marxista, ou da Nova História? Estamos cientes de

que uma concepção de Ciência ancorada no positivismo embasa muitas

investigações arqueológicas, o que não pode ser confundido com uma Historiografia

estão presentes inclusive nos discursos sobre a Pré-História no âmbito escolar,

como nos mostra Rocha (2002), ao analisar em sua tese a prática pedagógica de

professores de História:

A chamada Pré-História é um vasto período da existência humana reduzido, didaticamente, a poucas linhas. O conceito sobre esse período de tempo é construído, fundamentalmente, por traços abstraídos, por oposição, às sociedades consideradas mais adiantadas: propriedade coletiva em oposição à propriedade privada; apropriação coletiva dos frutos do trabalho oposta à apropriação privada; sociedade sem classes em oposição às sociedades de classes etc. Esse tipo de conteúdo difere da tradicional narrativa factual. Ele aproxima-se mais de um “constructo teórico”, sincrônico. Daí, em fase das abstrações que o sustentam, o alto grau de dificuldade em sua plena apreensão (ROCHA, 2002, p. 110).

Como pode ser visto, todos os conceitos referidos são apropriações do

Marxismo. Apesar de entender a narrativa histórica ainda como sinônimo de uma

narrativa factual da matriz positivista, o autor explicita a percepção de que esse tipo

de conteúdo difere delas pelas características intrínsecas, por ser um “constructo

teórico sincrônico”. Desta forma, entendendo a categoria “narrativa histórica” como

uma delimitação dentro do saber histórico escolar, identificamos nos discursos

ministrados em sala pelos sujeitos de nossa investigação a (re)invenção de vinte e

sete narrativas históricas escolares, sendo consideradas enquanto unidades

discursivas, portadoras de significado e coesão interna que as singularizam.

Entre as narrativas encontradas, consideramos que duas traziam elementos

que permitiam caracterizar uma apropriação da matriz dita positivista que, neste

trabalho, estamos optando por denominá-la, como convencionalmente tem ocorrido

no meio historiográfico, pelo sinônimo de “tradicional”. Na primeira delas, re-

inventada por S4, a temática versou sobre a “Tradição da Cultura grega”. O vocábulo

matriz cuja insígnia pesa justamente a marca de tradicional. A narrativa é transcrita

no quadro através de um esquema, sendo apresentados elementos da arte grega e

as áreas de sua cultura, como poderemos ver nestes trechos:

Arte Grega Proporção Humana

Esculturas em Mármore Representação da Figura Humana Áreas da Cultura Grega:

Filosofia – saber crítico sobre a realidade Teatro – origem nas festas dionisíacas

Tragédia e Comédia

Tragédia – História com teor moral

Comédia – crítica aos costumes da época

(S4, 1º ano do 4º ciclo, Prot.4).

Analisando seus elementos constitutivos, observamos que esta é uma

configuração disciplinar há muito transposta, talvez estando presente desde o

momento de constituição da História enquanto disciplina escolar no Brasil. No

entanto, consideramos que esta narrativa remete muito mais a uma apropriação de

saberes tradicionais ou tradicionalmente transpostos do que propriamente uma

“narrativa tradicional”, no sentido de trazer em seu bojo todas as características

heróicas, nacionalistas, factuais e de centralidade de aspectos políticos. Uma versão

assim, de uma história da nação, com suas finalidades voltadas para formar

cidadãos conformados à estrutura social vigente e integrantes passivos do Estado,

nos pareceu a grande “ausência” nas aulas observadas. Pelo menos no que tange

aos sujeitos da pesquisa, narrativas positivistas-tradicionais não foram encontradas

em seu estado “puro”, o que nos indica um elemento importante. O processo de

crise disciplinar porque passou a disciplina nos últimos 25 anos tem promovido uma

“tradicional”, que adquiriu por vezes tonalidades pejorativas a ponto da

“satanização”, pode estar levando ao seu abandono como configuração disciplinar e,

portanto, como matriz de referência para os saberes históricos escolares

efetivamente ensinados. A questão aqui é de saber se se trata de uma ruptura, no

sentido de ser essas narrativas completamente descartadas ou se elas adquiriram

uma sobre-vida, comportando ou integrando re-elaborações com outras matrizes.

A história das disciplinas escolares nos informa que

até meados do século XX a produção historiográfica brasileira caracterizava-se por seu traço tradicional, comumente chamado de positivista, e os livros didáticos produzidos acompanhavam essa tendência, de uma história essencialmente política e militar, épica e exaltadora dos grandes feitos dos grandes vultos da nação (LIMA e FONSECA, 2004, p. 92).

Ou seja, até pelo menos a década de 1950 a História escolar tradicional, cuja

matriz de referência na Historiografia era a dita “positivista”, mantinha-se em pleno

vigor. Isso se entendermos os campos de saber acadêmico e escolar como sendo

de tal forma atrelados hierarquicamente que as transformações ocorridas no primeiro

levem concomitantemente, em “tempo real”, a mudanças no segundo. Em nossa

investigação, não encontramos narrativas reinventadas pelos sujeitos da pesquisa

que pudessem ser consideradas, stricto sensu, como pertencentes a esse fluxo

transpositor, que engendrou um viés positivista-nacionalista, com culto dos vultos da

nação no ensino de História em nosso país. Curiosamente, a segunda narrativa

pertencente à categoria “tradicional” foi a que mais se aproximou dessa perspectiva,

chegando a tangenciar o mito de que, se os holandeses tivessem sido os

colonizadores do Brasil, nossa situação sócio-econômica seria diferente.

Evidentemente não estamos acusando um dos sujeitos (S3) de contribuição na

de nossas elites na confraternização com seus antigos invasores, vemos nessa

narrativa um certo culto à personalidade de Nassau, sendo ressaltadas suas

extremas habilidades enquanto administrador do Recife.

...quando houve a guerra dos holandeses aqui em Pernambuco vários senhores de engenho, quando estavam se sentindo perdidos na guerra deixaram seus engenhos e fugiram e aí a capitania ficou arrasada. Então, o que os holandeses, principalmente Nassau fez27 para restabelecer a economia?(...) Procurando, de início, restaurar a indústria açucareira, que com o conseqüente abandono de alguns engenhos pelos seus proprietários luso-brasileiros, da fuga de escravos e dos estragos da guerra, estavam em ruínas.

(S3, 2ºano do 3º ciclo, Prot. 6)

Nesse trecho, as ações de Nassau, enquanto sujeito histórico, recebem

destaque no re-estabelecimento das atividades econômicas da próspera capitania

lusitana. No decorrer da narrativa foi destacada a estratégia de fornecimento de uma

espécie de “crédito rural” aos senhores de engenho, inclusive portugueses. Mas a

contribuição de Nassau não ficou restrita ao campo econômico, revelando-se sua

potencialidade administrativa.

Nassau também foi um grande administrador. Então, ele fez realizações, porque o Recife era uma geografia constituída por ilhas, muitos rios e canais. Então ele teve que construir pontes.

(S3, 2ºano do 3º ciclo, Prot. 6).

Temos em Nassau um grande administrador justamente pelas realizações de

“grandes” obras, um verdadeiro “arquétipo” do discurso da competência, ainda

presente na cena política em nosso país. Mas as habilidades do Conde não param

por aqui. Seu caráter de homem visionário é revelado, pois

...ele se preocupou não só com a questão econômica, em restabelecer a indústria do açúcar. Ele se preocupou com a

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urbanização do Recife. Construiu uma nova cidade, a cidade Maurícia. Mas também se preocupou com a ciência! Vejam o quê é que Maurício de Nassau trouxe. Ele criou o zôo botânico junto com um grupo de cientista. Ele trouxe um médico, Willem Piso. Ele trouxe um botânico, que era Marcgrave. E ele trouxe um artista, que era pra registrar a fauna, a flora e também, o que a gente tinha de animal. Nassau trouxe de fora para o Brasil. Isso foi muito importante para registrar e estudar a natureza, tanto a fauna como a flora. As plantas e os animais eram registrados e estudados no Recife, por Maurício de Nassau. E esse Zôo botânico, ele era situado atrás da residência dele.

(S3, 2ºano do 3º ciclo, Prot.6)

O investimento na ciência diferenciaria o colonizador, o que justificaria sua

elevação ao patamar de “grande”. Dentro da narrativa, em que sua figura ocupa

lugar de destaque, nem a moradia, nem o local de férias de Nassau são deixados de

lado.

...o palácio de Friburgo, mais conhecido como o palácio das duas torres, era a residência de Maurício de Nassau. Era lá onde ele vivia, inclusive com a comitiva científica dele. Era o mais importante. E o outro era o palácio da Boa vista. Era o local onde ele passava as suas férias.

(S3, 2ºano do 3º ciclo, Prot.6)

Nessa análise não está sendo negada a contribuição de Nassau à História do

Brasil e de Pernambuco. A questão são as características que a reinvenção da

narrativa adquire. Centralidade em um determinado sujeito histórico, ênfase em

aspectos político-administrativos, destaque para os grandes feitos do grande vulto e

presença maciça de elementos descritivos na narração. A aula termina com uma

síntese digna de nota:

...Então esse período Maurício de Nassau foi importante no Recife, não apenas pelo restabelecimento da produção açucareira, mas principalmente pelas construções28 e pela organização urbana do holandês no Recife.

(S3, 2ºano do 3º ciclo, Prot.6)

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Um leitor desavisado pode estar considerando aqui um retorno aos processos

da inquisição acadêmica dos tempos da análise de conteúdo ideológico, nos quais

materiais didáticos e docentes eram rotulados a partir de uma ótica externa à sua

esfera de saber. Estamos suficientemente munidos de um arsenal teórico para não

incorremos em tais equívocos. Como nos adverte Rocha (2002, p. 110), “não se

pode, pois, derivar apenas das aulas das professoras as concepções teóricas da

História a que se filiam”. Vemos neste caso um excelente exemplo para a questão. A

narrativa histórica pelos seus elementos intrínsecos permite ser considerada como

integrante da categoria “História tradicional escolar”. Mas não é o professor que está

sendo acusado de sê-lo. Curiosamente, o sujeito referido apresenta uma conduta

“engajada”, evidenciada por sua reconhecida atuação no sindicato da categoria e

militância em um partido de esquerda. A apropriação de uma narrativa tradicional

não o constitui um tradicionalista. Ao referir-se ao uso em sala da História de Nassau

no Recife, a fala do sujeito é bastante ilustrativa.

...e especificamente o conteúdo que eu ia trabalhar hoje, que era as realizações de Maurício de Nassau. Então, como a sexta série tem aquela coisa de trabalhar o concreto pra depois entrar no abstrato, a explicação29, aí primeiro eu passei uma pesquisa em relação ao texto, pra depois trabalhar ... a resposta comentada com os alunos. (...) É exatamente essa questão da faixa etária, né?! Os alunos da 6º série ainda estão na identificação dos fatos históricos. Então a gente ... prioriza mas não a interpretação, mas a identificação daquilo que ocorreu na sociedade 30.

(S3, EC)

Vemos assim que o argumento que justifica a manutenção da narrativa de

tipo tradicional não é historiográfico e sim cognitivo. A ênfase em elementos político-

administrativos, na centralidade das realizações de uma determinada figura, na

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Grifo nosso. 30

descrição sucessiva de fatos históricos está ancorada em uma das idéias-força do

ideário construtivista que alcançou o campo educacional nas décadas de 80 e 90 do

último século (COLL, 1987; 1997a; 1997b), estando presente a concepção de que

para promover a aprendizagem nas faixas etárias menores do ensino fundamental,

deve-se partir do “concreto para o abstrato”, expressões inclusive de fundamentação

piagetiana. A idéia explicitada por S3 indica que ele considera uma espécie de

gradação, de “níveis cognitivos”, em que seus alunos não seriam capazes de

compreender explicações, por ser um processo mental mais complexo, devendo-se

por tanto utilizar a descrição de fatos até que eles sejam capazes de interpretá-los.

Realizaremos uma reflexão sobre elementos descritivos e explicativos na

narrativa ainda neste capítulo, mas em um tópico específico. Por hora, a questão

vem à baila para auxiliar no entendimento de que o sujeito, ao reinventar uma

narrativa em moldes tradicionais, não se constitui um positivista. Tampouco pode ser

rotulado de “incoerente”, por adotar um referencial teórico enquanto militante e, nas

aulas, se apropriar de saberes vinculados a um outro.

Em síntese, as apropriações consideradas “tradicionais” diferem em muito da

História tradicional de viés nacionalista que prevaleceu por muito tempo no ensino

da disciplina no Brasil. A análise das narrativas históricas reinventadas pela prática

pedagógica desses cinco sujeitos não nos autoriza a “encaixá -los” em

generalizações como a realizada por Siman (2001, p. 17) ao tratar das

permanências no ensino de História.

O que se pode perceber é a predominância de uma concepção tradicional de História, no plano mais geral, e da história nacional, em particular. Nela, pululam os heróis, os episódios consagrados como marcos fundadores da nacionalidade, bem como os estereótipos, há muito incorporados, a respeito do Brasil e dos brasileiros.

Ao contrário do que se poderia esperar, encontramos não uma história

positivista-nacionalista, mas saberes tradicionalmente transpostos e que, em sua

maioria, têm alcançado uma sobrevida através de uma forma mista, quase uma

“mutação didática”. Antes porém, precisamos tratar das apropriações a uma outra

matriz de referência, que engendram as narrativas marxistas escolares.