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Capítulo 1 Saber Escolar, Transposição Didática, Narrativa Histórica e o Ensino de

1.1 A Especificidade do Saber Escolar

Para uma pesquisa que objetiva analisar as apropriações das narrativas

históricas pela prática pedagógica dos professores de História, não poderiam estar ausentes reflexões sobre a especificidade do saber escolar. Embora existam

relações entre as narrativas apresentadas pelos historiadores em suas obras e as

ministradas pelos professores de História em suas aulas, o trabalho deste último não

pertencentes à academia. Para fundamentar nossa posição precisamos

compreender a natureza dessa especificidade.

O espaço escolar, dentro do paradigma da racionalidade técnico-científica

anteriormente vigente, era concebido como um espaço de instrumentalização de

saberes. Sua função seria a de repassar conhecimentos produzidos pela academia

e prescritos pelos currículos oficiais. O trabalho do professor constituir-se-ia em ser

um instrumento de vulgarização, de simplificação e de transmissão de saberes

produzidos por outros sujeitos, em outros espaços. Nessa concepção, os saberes

que circulam na escola têm origem exógena, ou seja, suas fontes de produção

situam-se fora do espaço escolar. Assim, a escola não produziria saberes, mas

executaria programas prescritos. Os saberes que veicula são descarnados de

feições próprias, sem conteúdo essencial, sem uma relação visceral com o espaço

escolar. Nessa perspectiva, os saberes escolares não possuiriam qualquer

especificidade, seriam apenas conhecimentos científicos simplificados (MONTEIRO,

2002, p. 76).

Nas duas últimas décadas, foram realizadas pesquisas educacionais que

propunham novas perspectivas com relação às concepções dos saberes que

circulam na escola de forma geral e dos saberes escolares em particular. Todas

partem do princípio que a escola é um espaço de produção do conhecimento e não

meramente de transmissão. Apresentam os saberes escolares como portadores de

especificidades, de configurações singulares, próprias, e não como banalizações

dos conhecimentos científicos.

Uma das teorias explicativas da origem, produção e constituição dos saberes

escolares, com grande repercussão no campo acadêmico, foi formulada por André

escolares como portadora de uma significativa contribuição à produção

historiográfica sobre o ensino. Seu artigo “História das disciplinas escolares:

reflexões sobre um campo de pesquisa” apresenta em linhas gerais as

considerações epistemológicas para a constituição dessa abordagem (CHERVEL,

1990).

Nele o autor reconstitui o processo histórico da construção do conceito de

“disciplina escolar”. Até o final do século XIX, o sentido dominante na França era o

de ação repressora, de vigilância das condutas. O sentido moderno de “conteúdos

de ensino” teve sua gênese em meados desse mesmo século, mas só generalizou-

se muito posteriormente. Surgindo com o movimento de renovação da organização

do sistema escolar francês, esteve inicialmente associado à idéia de disciplina

intelectual. A seguir o conceito passou a designar “matéria de ensino”, que serviria

como instrumento de disciplina aos espíritos dos educandos, adquirindo, apenas nas

primeiras décadas do século XX, o sentido atualmente hegemônico (ibidem, p. 179).

Chervel procurou assim demonstrar que o termo é uma construção histórica

relativamente recente. As “disciplinas escolares”, quando entendidas como

“conteúdos de ensino”, são concebidas pelo autor como “entidades peculiares”,

“atípicas”. Em suas palavras (ibidem, p. 180):

...próprias da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda a realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer a sua própria História.

Em Chervel, o reconhecimento da especificidade dos saberes produzidos na

escola leva-os à categoria de entes endógenos, cuja gestação seria fruto de

O autor constrói sua argumentação a partir da crítica à concepção de que o

ensino escolar está conectado de forma linear, direta, imediata, dependente e

subserviente aos saberes científicos. Chervel afirma que, na perspectiva criticada, os

saberes do campo escolar eram entendidos como “desvios” advindos da necessária

simplificação de saberes do campo científico, pois para um público jovem, os

conhecimentos científicos não estariam acessíveis em seu estado puro, só podendo

ser compreendidos através de um processo de “vulgarização”. A atividade

pedagógica teria por objetivo encontrar estratégias metodológicas que

possibilitassem a aprendizagem de saberes científicos de forma cada vez mais

otimizada, com maior rapidez e maior quantidade de conhecimentos (ibidem, p. 180-

184).

Essa concepção, para Chervel, traria embutida a imagem das disciplinas

escolares como “disciplina-vulgarização”, bem como a da pedagogia como uma

“pedagogia-lubrificante”, cuja função equivaleria a de um fluido facilitador do

processo de aquisição dos conhecimentos pertencentes às ciências de referência.

Esse esquema negaria a existência autônoma de disciplinas escolares, uma vez que

elas representariam apenas os resultados do trabalho de associação entre as

ciências de referência e os métodos pedagógicos de simplificação (ibidem, p. 180-

184).

Segundo Chervel, a escola não teria a função de transmitir saberes

científicos, nem a finalidade de promover uma iniciação às ciências de referências.

Por conceber a escola como um espaço de transmissão de saberes elaborados em

outros lugares, tal perspectiva viria a fornecer a base para a argumentação das

teorias reprodutivistas6. Contrariamente, para o autor, a escola é um espaço de

6

As teorias reprodutivistas, muito presentes nas décadas de 1970 e 1980, viam no sistema escolar um espaço de manutenção das estruturas sociais de classe. Desta forma, as escolas contribuiriam

criação, criativo e criador por excelência e não um lugar de vulgarizações, de

depósitos, que passivamente aguardaria os conteúdos do preenchimento. Nela

seriam ensinadas as produções elaboradas internamente. Seria a escola, e somente

ela, o “lócus” de produção dos saberes escolares, constituindo-se as disciplinas em

produtos espontâneos e originais do sistema escolar. A escola, no entanto, deteria

um poder criativo ainda pouco valorizado. Seus produtos culturais, criados através

de sua ação educativa, transcenderiam os círculos institucionais, superariam os

espaços intestinos, penetrando na cultura da sociedade (ibidem, p. 184).

Uma particularidade das disciplinas escolares estaria nas suas finalidades.

Para Chervel, na escola, os saberes culturais misturam-se ao propósito de formar os

espíritos. Seria justamente esse aspecto que engendraria o caráter específico do

saber escolar. No artigo referido, o autor apresenta o caso da gramática escolar

francesa para fundamentar sua posição de que as disciplinas escolares não seriam

versões vulgarizadas de ciência, mas possuiriam vida própria, abundante, rica e

representariam construções históricas particulares, produzidas “na escola e para a

escola” (ibidem, p. 181).

A análise sobre a abordagem proposta por esse historiador das disciplinas

escolares nos faz considerar que Chervel elevaria a especificidade dos saberes

escolares ao nível da completa desconexão com as ciências de referência, negando

as relações entre os dois campos. Para ele, admitir qualquer relação com os saberes

científicos seria eliminar as características peculiares dos saberes produzidos na

escola, seria desconsiderar sua autonomia e poder criador.

significativamente para a manutenção do status quo. Seus principais expoentes foram Althusser, Bourdieu, Passeron, Bodelot e Establet. Para uma análise dessas teorias integradas ao pensamento pedagógico, ver SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 34.ed. Campinas: Autores Associados, 2001.

Vemos dessa forma, sem desconsiderar a consistência da abordagem

apresentada por Chervel, que esta se caracteriza pela ênfase excessiva no caráter

endógeno dos saberes escolares. Em nossos estudos, destacamos uma outra

perspectiva que reconhece o caráter específico dos conhecimentos pertencentes ao

sistema escolar, ao mesmo tempo em que estabelece suas relações com os saberes

acadêmicos. Apesar de não descartarmos as contribuições cherveleanas7,

acreditamos que a teoria da transposição didática se constitua em um instrumento

mais adequado aos nossos propósitos de pesquisa.