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A tutela específica das obrigações de dar

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 74-82)

Desde há muito tempo o STF firmou entendimento segundo o qual não cabe ação cominatória para compelir o réu a cumprir obrigação de dar (Súmula 500).

Contudo, a Lei nº 10.444/2002 acrescentou ao Código de Processo Civil o art. 461-A, que estendeu às obrigações de dar coisa distinta de dinheiro a mesma forma de execução das obrigações de fazer e não fazer, priorizando a tutela específica. Excluem-se deste procedimento as obrigações de pagar quantia, hoje executadas de acordo com o sistema indicado nos arts. 475-J e seguintes do CPC.

Embora o presente estudo volte-se especificamente à tutela das obrigações de fazer e não fazer, cremos importante ao menos mencionar a possibilidade de ter- se a tutela específica das obrigações de dar, o que revela uma evolução legislativa interessante, criando um sistema bem mais eficiente, especialmente diante da pos- sibilidade do magistrado utilizar-se das medidas coativas diretas ou indiretas descri- tas nos parágrafos do art. 461, consoante o autoriza o § 3º do art. 461-A da Lei Adje- tiva.

Assim, deverá o magistrado, em ação que se presta ao cumprimento de obri- gação de dar coisa, fixar prazo para o cumprimento espontâneo (art. 461-A, caput);

não adotando o devedor a conduta determinada, serão tomadas as medidas de a- poio adequadas: fundamentalmente, a busca e apreensão da coisa móvel ou a imis- são na posse, se imóvel.

Se, mesmo dessa maneira, não for possível a tutela específica, pode o juiz valer-se das medidas coercitivas descritas no § 5º do artigo 461, sem prejuízo da imposição de multa.

De todo modo, em caso de urgência, parece aceitável que o juiz, sem a oitiva da parte contrária, conceda a tutela específica antecipada, determinando, de plano e antes da concessão de prazo para o cumprimento espontâneo, as medidas que jul- gar adequadas.

Se a obrigação, por sua vez, estiver fundada em título extrajudicial, o meca- nismo adequado é o previsto nos artigos 621 a 631 do CPC.

Passaremos, adiante, à análise dos dois institutos antes estudados na pers- pectiva do processo coletivo.

Capítulo 6

A tutela antecipada e a tutela específica nas lides coletivas

6.1. O microssistema para a tutela de direitos transindividuais

O surgimento das ações coletivas remonta, de acordo com Fredie Didier Juni- or e Hermes Zaneti Junior77, a duas fontes fundamentais. A primeira, o antecedente romano da ação popular em defesa das rei sacrae, rei publicae. Ao cidadão ficava atribuído o poder de defender a coisa pública em razão do forte vínculo que o unia aos bens públicos. Ademais, vigorava a noção de que a República pertencia ao ci- dadão romano e era seu dever defendê-la. No direito romano, aliás, as ações popu- lares não eram excepcionalidade, dada a singeleza da organização política do Esta- do.

A segunda fonte, mais próxima, deu origem às ações coletivas das ―classes‖, na prática judiciária anglo-saxã dos últimos oitocentos anos, e daí derivam as atuais class actions norte-americanas.

Esse quadro histórico, contudo, não tem linearidade. O direito ao processo, fortemente influenciado pelo Iluminismo e pelo Liberalismo, a partir do século XVI (com a difusão do método cartesiano e da lógica ramista), passa a ser visto como

atributo exclusivo do titular do direito ofendido, único soberano sobre o próprio desti- no do direito subjetivo individual. Só ao titular do direito lesado cabia decidir se pro- punha ou não a demanda. Não havia, pois, espaço para o direito da coletividade.

A lógica ramista78, surgida em oposição à lógica aristotélica, consistia na dis-

posição da matéria segundo uma ordem rigorosa, de forma a realizar a passagem gradual dos princípios gerais e universais para aqueles particulares. Foi nesse con- texto que a argumentação dialética perdeu força, em prol da atividade de subsunção de fatos à norma legal.

A codificação sugerida pelo Iluminismo chega ao Brasil com o Código Civil de Beviláqua, em 1916, oportunidade em que o País adquire sua independência jurídica de Portugal. Desse diploma constou o art. 76, que foi pensado para a pureza do sis- tema, visando a afastar qualquer possibilidade de abertura para tutelas coletivas e extinguindo as ações populares, que remanesciam no sistema jurídico por conta do direito romano, que remanescia nas entrelinhas das Ordenações do Reino: ―Art. 76: Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral. Parágrafo único: O interesse moral só autoriza a ação quando toque dire- tamente ao autor, ou à sua família‖.

Com isso foram atingidas não só a ação popular das Ordenações do Reino, mas, as demais lides coletivas, já que nelas o titular do direito material não era pes- soa perfeitamente identificada.

Em 1934, pela primeira vez, a Constituição Federal fez menção às ações po- pulares. Até esse momento, em nome de uma pureza do sistema, o instituto fora olvidado.

78 O método foi criado por Pierre de la Ramée e pregava que a matemática constituía o modelo sobre

o qual se construíam todas as formas de conhecimento. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes.

O efetivo surgimento das ações coletivas no País deve-se à direta influência dos processualistas italianos da década de 70. Havia no Brasil um ambiente propício para a tutela dos novos direitos, criado pela redemocratização e pela valorização do Ministério Público. Estava presente, ademais, um movimento universal para assegu- rar o acesso à Justiça. Em França, foi editado em 1973 o diploma conhecido como Lei Royer, que conferia legitimidade ativa às associações de consumidores para a defesa de seus direitos. Contemporaneamente, na Inglaterra, surgem a representati- ve action e a relator action, modalidades que permitiam, embora de maneira singela, que um indivíduo representasse em juízo determinado grupo a que pertencia.

Vivia-se, em verdade, um momento universal de massificação dos conflitos sociais, cuja origem estava na Revolução Industrial do século XVIII. O Estado Libe- ral, não intervencionista, valorizador do indivíduo, não mais dava conta das novas necessidades sociais decorrentes da industrialização e da criação de uma classe operária.

Surge a idéia de um Estado Social, mais interventor, protetor das questões sociais, responsável pela harmonização da vida em grupo, preservador de direitos que vinham sendo frequentemente alijados pela Revolução Industrial. Identificam-se, nesta ocasião, os direitos humanos de segunda geração (direitos sociais, culturais e econômicos), em oposição aos direitos de primeira geração (ou direitos de liberda- de), que tinham o indivíduo como seu titular.

Os direitos transindividuais (direitos humanos de terceira geração) nascem, pois, em um terceiro momento, historicamente designado por Celso Fernandes Campilongo como Estado Pós-Social, no qual estão em voga os movimentos sociais decorrentes da massificação. Esses direitos ultrapassam o indivíduo, encontrando sustentáculo na fraternidade da Revolução Francesa.

Tradicionalmente, aliás, indivíduo e Estado eram os únicos pontos de referên- cia do Direito. Esse fato gerou a separação inicial entre interesses públicos e priva- dos (direito público e direito privado). Essa divisão, contudo, deixou de ser suficiente para explicar determinados interesses que pertenciam a grupos de pessoas e apre- sentavam características semelhantes (legitimação, extensão da coisa julgada, etc). Percebeu-se a existência de interesses que ultrapassavam o âmbito individual, mas não eram de todo o público – e, sim, apenas compartilhados por grupos, classes, categorias de pessoas, etc.; reconheceu-se a necessidade, assim, de assegurar o acesso coletivo à Justiça, como forma de tutelar coletivamente esses interesses. Era necessário, portanto, superar o rígido dualismo entre o interesse individual privado e o interesse público.

Essa mudança de visão fez com que fossem percebidos os limites de aplica- ção de determinados dogmas processualistas às situações de direitos com titulares indeterminados e de litigiosidade de massa, principalmente àquelas em que apenas um legitimado move ação em benefício de um todo coletivo.

Não se trata de estabelecer um litisconsórcio, assim entendido o exercício conjunto da ação por pessoas distintas, figura já conhecida na antiga processualísti- ca romano-germânica, mas de permitir que, embora interessando a uma série de sujeitos distintos, identificáveis ou não, possa ser ajuizada e conduzida por iniciativa de uma só pessoa.

O direito processual civil foi forçado a uma mudança na sua tradicional ótica individualista, diante de uma sociedade de massa, alterada em suas estruturas fun- damentais (novos direitos, novas formas de lesão que têm uma natureza comum, maior número de situações ―padrão‖, que geram, pois, lesões ―padrão‖).

Impulsionados por essa orientação, no Brasil os processualistas Ada Pellegri- ni Grinover, Waldemar Mariz de Oliveira Junior, Kazuo Watanabe e Cândido Rangel Dinamarco passaram a elaborar o anteprojeto brasileiro pioneiro para a defesa de interesses de natureza coletiva, apresentado no I Congresso Nacional de Direito Processual. Incumbido de relatar a tese, José Carlos Barbosa Moreira deu suas con- tribuições ao trabalho, que foi apresentado, então, à Câmara dos Deputados.

Sem prejuízo, os então Promotores de Justiça Nelson Nery Junior, Édis Milaré e Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, entendendo a importância do Ministé- rio Público na defesa desses interesses, passaram a discutir a proposta original e elaboraram um outro anteprojeto, que foi apresentado ao Poder Executivo federal e depois submetido ao Congresso. Esse projeto teve escopo mais amplo, admitindo a proteção a diversos direitos de natureza transindividual, entre eles o meio ambiente, o patrimônio cultural e o consumidor. Referido trabalho previu maior atuação do Mi- nistério Público, instituindo o inquérito civil e acabou se transformando na Lei nº 7.347/1985.

Na mesma esteira, um pouco depois, a Constituição Federal de 1988 assegu- rou o acesso à Justiça, tanto para a tutela de direitos individuais, quanto para a de direitos coletivos. Aliás, o capítulo do título II da Carta Magna de 1988 designa-se ―Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos‖. Daí que a melhor redação para o inciso XXXV do art. 5º seria, segundo Didier, ―ä lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou afirmação de lesão a direito individual ou coletivo‖.

Depois da Constituição, a redação do art. 83 do CDC (Lei nº 8.078/1990) e do art. 82 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) reforçou a idéia de que são cabí- veis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos afirmados perante o Judiciário.

Assim, de uma mesma situação de direito material invocada surgem diversas tutelas judiciais possíveis, voltadas à efetividade da jurisdição. Daí ser possível ajui- zar, partindo do mesmo fato, uma ação civil pública para a tutela de um direito difu- so, coletivo stricto sensu ou individual homogêneo, pleiteando uma condenação ge- nérica, uma tutela específica ou ainda o dano moral decorrente da lesão aos interes- ses da comunidade.

Fica evidente, pois, o surgimento do processo coletivo brasileiro, assim en- tendido

―aquele instaurado por ou em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se postula um direito em face de de um titular de um direito coletivo lato sensu, com o fito de obter um provimen- to jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou determinado nú- mero de pessoas.79

Daí a criação de procedimentos especialmente voltados às causas coletivas, alguns deles já alhures mencionados: a ação popular (Lei nº 4.717/1965), a ação civil pública (Lei nº 7.347/1985), o mandado de segurança coletivo (art. 5º, inciso LXX, da CF/88) e as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homo- gêneos (arts. 91 a 100 do CDC), que integrariam um microssistema processual cole- tivo.

Essa idéia já vem sendo defendida pela maioria dos doutrinadores que tratam do processo coletivo, os quais vêem o CDC como um ―Código de Processo Coletivo Brasileiro‖. Aliás, o art. 81, parágrafo único, da Lei nº 8.078/1990 traz os conceitos de direitos difusos, coletivos stricto sensu, e individuais homogêneos, atingindo, as- sim, um tema que não havia sido explicitamente tratado por nenhuma legislação na- cional.

Ademais, o diploma trouxe uma série de inovações processuais, como a pos- sibilidade de determinar-se a competência pelo domicílio do autor, a extensão subje- tiva da coisa julgada, as regras de legitimação, a regulamentação da litispendência entre a ação coletiva e a individual. Além disso, ao alterar a Lei de Ação Civil Públi- ca, o Código de Defesa do Consumidor atuou como agente unificador e harmoniza- dor, adequando os dispositivos do seu Título III à sistemática processual vigente do CPC e da LACP e criando mecanismos de interação entre esses diplomas.

Com isso definiu-se um microssistema processual para as ações coletivas. Assim, no que for compatível, em sede de ação popular, de ação civil pública, de ação de improbidade administrativa ou mesmo de mandado de segurança coletivo, aplica-se o Título III do Código de Defesa do Consumidor.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 74-82)