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4.1 PODER LEGISLATIVO E PROCESSO LEGISLATIVO

4.1.1 A tutela legislativa

Antes de iniciar, adequado que se mencione o contexto fático em que foram propostos os projetos de lei aqui tratados.

Em 2013, principalmente nos meses de junho e julho, a população brasileira fez uso do seu direito de se manifestar por meio de reuniões pacíficas em locais públicos, a qual teve início com o aumento das passagens dos transportes públicos e foi maximizada pela carga política vivenciada pela população, esgotada com notícias ligadas à corrupção e descaso na prestação de serviços públicos (DANTAS JUNIOR, 2014, p. 253-254).

De acordo com Santos (2013), renomado sociológico português, os movimentos populares de junho de 2013 ficaram marcados na história do país, com atenção a sua originalidade e a diversidade ideológica, bem como a multiplicidade de interesses contrastantes dos inúmeros grupos sociais participantes.

Porém, frente às manifestações populares, o governo optou, inicialmente, pela repressão, o que gerou atrito entre os participantes e as autoridades de segurança pública e tensão que reverberou em todos os âmbitos do poder público, um deles o Congresso Nacional (MONTENEGRO, 2014).

Na mesma toada, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2014, p. 59), em análise das manifestações populares e dos projetos de leis por elas motivadas, entendeu que:

Com o aumento das reivindicações, associada na maioria dos casos a um evidente despreparo na repressão às manifestações, notadamente em razão da utilização pela Polícia Militar de gás lacrimogênio, bombas 'de efeito moral' e 'balas de borracha', além de outras armas não letais, passou-se a se deparar com o acirramento dos ânimos, proporcionando à prática de atos de violência física, graves ameaças, agressões verbais, além de destruição do patrimônio público e privado, quando da realização de passeatas, atos públicos, comícios, etc.

Nesse mesmo sentido, entendendo que a própria atuação do Estado repressivo leva ao descambo da violência nas manifestações populares, segue entendimento de Bechara (2013):

[…] a abordagem repressiva de movimentos sociais por parte do Estado contribui em grande medida para a ocorrência de confrontos violentos. Com efeito, quaisquer manifestações que incitem ao ódio e a violência, sejam de policiais, sejam de manifestantes, militam em prol do autoritarismo e caminham em direção contrária ao plano traçado na Constituição da República, que tem como valores fundantes a pluralidade, a harmonia social e a resolução pacífica das controvérsias.

Nesse contexto fático acima apresentado, foram propostos dois Projeto de Lei do Senado (PLS) relacionados às manifestações populares, tais quais: a) PLS nº 499 em 28/11/2013, o qual passou a ter prioridade na tramitação depois da morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes de Comunicação, Santiago Andrade, e apontava como crime inafiançável “provocar ou infundir terror generalizado” e como formação de grupo terrorista como “a associação de três ou mais pessoas com o fim de praticar terrorismo” (MONTENEGRO, 2014); e b) PLS nº 508/2013, o qual tipificava o crime de Vandalismo.

Será tratado abaixo, de forma detalhada, as tramitações dos PLS´s acima referidos, o teor exato de suas redações, as motivações de proposição, os fundamentos jurídicos, as tramitações – principalmente no que diz respeito a CCJ mista –, bem como os demais elementos que envolvem esse projeto de lei.

4.1.1.1 Análise do Projeto de Lei do Senado n° 499/2013

O inteiro teor do PLS em questão traz em seu bojo diversas tipificações de condutas, sendo as mais importantes as seguintes: a) tipificação como crime de terrorismo o ato de provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de

ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa: pena de 15 a 30 anos de reclusão; b) tipificação como crime de terrorismo contra coisa o ato de provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante dano a bem ou serviço essencial: pena de 8 a 20 anos; c) tipificação como formação de grupo terrorista a associação de três ou mais pessoas com fins de praticar as condutas acima descritas: pena de 5 a 15 anos de reclusão (BRASIL, 2013).

Além do mais, o PLS define como inafiançável, hediondos e insuscetíveis de graça ou anistia os crimes nele descritos (arts. 9º e 10), embasando-se legalmente e, ao mesmo tempo, justificando a criação da lei pelo repúdio ao terrorismo na ordem constitucional (arts. 4º, VII, e 5º, XLIII, da CF) e pela classificação como crime hediondo (Lei nº 8.072/90) (BRASIL, 2013).

Importante ressalvar que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mediante o Ofício nº 345/2014 se manifestou contrária à aprovação do PLS nº 499/2013, destacando importantes fatos e argumentos, tais quais: a) o Projeto do Novo Código Penal (PLS nº 236/2011) tipifica o crime de terrorismo e o faz sem a urgência do atual momento político e de forma mais razoável; b) pela legislação comparada e nos Tratados e Convenções que tratam sobre Terrorismo, as condutas tipificadas são afrontas à democracia, motivados por questões de cunho religioso, político ou étnico, etc.; c) o Terrorismo não está presente no nosso país e as manifestações populares vivenciadas não tem relação com essa conduta, que objetivam o fim de um determinado Estado, ou a derrogação de um líder do poder, motivados pelo ódio racial, separatista, político, de classes, etc, que daí sim poderiam ser punidos com penas de 15 a 30 anos; e d) o Brasil não está envolvido em qualquer tipo de violência internacional relacionada ao Terrorismo (BRASIL, 2014, p. 60-61).

Assim, conclui, muito lucidamente a OAB, que não há situação fática e jurídica apta a legitimar a tramitação do PLS nº 499/2013 perante o Senado Federal, pois os atos praticados por manifestantes – mesmo que dotado de certa violência – encontram tipificação no atual ordenamento jurídico e, de outro lado, o crime de Terrorismo já está sendo tratado projeto de lei anterior (BRASIL, 2014, p. 62).

Após 13 emendas no Plenário, aprovados os requerimentos de exame da matéria pelas Comissões de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH); de Constituição, Justiça e Cidadania; de Relações Exteriores e Defesa Nacional; e de Assuntos Sociais para

exame do Projeto e das emendas de Plenário, o PLS em questão foi objeto de debate da primeira comissão supracitada, sendo proferido parecer em 15 de maio de 2015.

No teor do voto do Relator Senador Randolfe Rodrigues, a CDH entendeu pela rejeição do PLS nº 499/2013 pelos seguintes motivos: a) foi redigido de forma ampla e com utilização de termos genéricos (art. 2º), deixando de disciplinar as condutas tipificadas, o que é manifestamente inconstitucional, pois ofende o princípio da reserva legal em direito penal; b) prevê penalizações extremamente elevadas em comparação com as reprimendas do Código Penal (vide o crime de homicídio com pena de 6 a 20 anos de reclusão – art. 121), o que evidencia a falta de proporcionalidade; e c) não houve suficiente discussão pela sociedade e o ingresso da matéria na pauta legislativa, diante das circunstâncias fáticas atuais, deixa desprotegidos os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (BRASIL, 2015, grifo nosso).

Rejeitada pela CDH, o PLS em questão, atualmente, continua tramitando e aguarda parecer da CCJ.

Assim, destacada a aplicação, por parte do legislativo, da ponderação (proporcionalidade) como uma das formas de solucionar a colisão de direitos fundamentais, neste caso, direito de reunião e de manifestação versus direito à vida e direito à segurança pública.

4.1.1.2 Análise do Projeto de Lei do Senado n° 508/2013

O inteiro teor do PLS em questão, proposto no Senado Federal pelo Senador Armando Monteiro, traz em seu bojo apenas a tipificação do crime de Vandalismo, prevendo pena de 4 a 12 anos de reclusão, e descrevendo as condutas como:

[…] promover ou participar de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos, mediante violência ou ameaça, por qualquer motivo ou a qualquer título (BRASIL, 2013, p. 1).

Além da conduta principal e da ressalva na possibilidade de configuração, também, do crime de formação de quadrilha, o projeto traz um crime de mera conduta, na forma do § 1º (BRASIL, 2013, p. 1):

O crime também se configura pela presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder objetos, substâncias ou artefatos de destruição ou de provocação de incêndio ou qualquer tipo de arma convencional ou não, inclusive porrete, bastão,

barra de ferro, sinalizador, rojão, substância inflamável ou qualquer outro objeto que possa causar destruição ou lesão.

Mais direto do que PLS analisado anteriormente, o legislador motivou a proposição do PLS nº 508/2013 em razão dos seguintes fatores: a) situação fática da ocorrência de perturbação, baderna e danos aos patrimônios público e particular durante manifestações populares sociais democráticas; b) a ilegalidade da conduta atentatória à paz pública, que afronta as garantias constitucionais do direito de ir e vir e do direito de livre manifestação, atentando ao Estado Democrático de Direito; c) o grande repúdio da maioria da população em relação aos atos de vandalismo; d) ausência de tipificação penal apropriada, embora exista a conduta de violência e de dano qualificado no Código Penal; e) a dificuldade em punir individualmente os vândalos; f) a semelhança existente entre os atos praticados por vândalos e a conduta tipificada como roubo no CP, observando o resultado causado ao patrimônio alheio (BRASIL, 2013, p. 2-3).

Da mesma forma que agiu em relação ao PLS nº 499/2013 (Terrorismo) – visto acima – a OAB se manifestou, por meio de ofício, repudiando o projeto de lei e pugnando pela sua rejeição (BRASIL, 2014).

O Conselho Federal da OAB apontou as razões pelas quais o referido PLS deveria ser rejeitado pelo Congresso, aduzindo que: a) o legislador, sabendo da existência de tipificação dos crimes de dano com ou sem violência (art. 163, CP), ao propor a tipificação do crime de Vandalismo, deixou de proceder na forma correta, que seria apresentar propositura para revisão do Código Penal, e fez uso da legislação penal de emergência e de tipos penais abertos (procedimentos reprováveis no Direito Penal); b) não se observou o princípio da proporcionalidade, pois a penalização prevista é alta e, ainda, há várias causas de aumento de pena; c) trata-se de resposta com apelo demagógico à sociedade, com forte viés intimidatório, valendo-se do Direito Penal como instrumento político de coerção, violando-se princípios como taxatividade e culpabilidade, bem como direitos e garantias fundamentais e postulados democráticos; e d) utiliza-se da situação de insegurança pública para apresentar uma solução milagrosa, quando na verdade está banalizando o Direito Penal e afrontando direitos fundamentais, atuação típica de um Estado autoritário (BRASIL, 2014, p. 63-66).

A proposta passa por análise da CCJ mista, composta por senadores e deputados, e teve dois pedidos de emendas, um que prevê a alteração do Código Penal para incluir causas de aumento de pena em relação a crimes cometidos durante manifestações populares e outro

para aumentar ainda mais a pena em relação ao ato de vandalismo contra veículo prestador de serviço de transporte público.

Em voto separado, o Senador Randolfe Rodrigues se manifestou pelar rejeição do PLS e/ou suas emendas pela sua manifesta inconstitucionalidade, apontando os seguintes motivos: a) atenta contra a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, bem como contra as suas formas de expressão coletiva, ou seja, direito de reunião e de livre associação; e b) pretende transformar o ambiente das manifestações populares em qualificadora ou causa de aumento das penas previstas no CP (BRASIL, 2015).

No sentido do voto em separado do Senador supracitado, dispõe-se abaixo doutrina específica de VAY (2014):

[…] toda e qualquer tentativa legislativa de criminalizar movimentos sociais e protestos, ou conceber tratamento mais gravoso para os que deles tomem parte, deve ser veementemente rechaçada por padecer de inconstitucionalidade em sua gênese, uma vez que não respeita o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Trata-se da proteção pela dignidade, em que o princípio da dignidade da pessoa humana é compreendido como limite dos limites dos direitos fundamentais, ou seja, como restrição 'à atividade limitadora no âmbito dos direitos fundamentais, justamente com o fim de coibir eventual abuso que pudesse levar ao seu esvaziamento ou até mesmo à sua supressão'.

Para finalizar, importante atentar ao entendimento de Bechara (2013), quando dispõe sobre a tentativa de penalizar condutas relacionadas às manifestações sociais:

Vê-se, portanto, que para além de constituir medida contraproducente à concretização da democracia, a tentativa de selecionar para dentro do âmbito jurídico-penal manifestações sociais, por si mesmas revelam-se um caminho pragmaticamente equivocado, na medida em que é apta a produzir e reproduzir atos de violência generalizada. Melhor do que buscar limitar ou reprimir o exercício das liberdades de reunião e de manifestação é orientá-los democraticamente, garantindo o mais pleno diálogo social.

Diante do exposto, percebe-se que o legislador, ao pensar na possibilidade de criminalizar condutas relacionadas às manifestações populares, deve entender que essas condutas estão intimamente vinculados ao livre exercício dos direitos fundamentais de reunião e de manifestação – que por sua vez têm ligação direta com a manutenção do sistema democrático –, devendo, portanto, agir com cautela e na forma adequada para buscar as soluções que representem o menor esvaziamento possível dessas liberdades.