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A utilização cotidiana dos conceitos e o ideal de exatidão

Ainda abordando o conceito de “número” na §68, Wittgenstein responde a esta questão observando o seguinte:

Isto não precisa ser assim. Pois posso dar ao conceito ‘número’ limites firmes, isto é, usar a palavra “número” para a designação de um conceito firmemente delimitado, mas posso usá-lo também de tal modo que a extensão do conceito não seja fechada por um limite. E assim empregamos a palavra “jogo”. Como o conceito de jogo está fechado? O que é ainda um jogo e o que não o é mais? Você pode indicar os limites? Não. Você pode

traçar alguns: pois ainda não foi traçado nenhum. (Mas isto nunca o

perturbou, quando você empregou a palavra “jogo”.)

Portanto, a posição que Wittgenstein assume aqui é a de que o nosso emprego cotidiano dos conceitos por semelhança de família não é rigidamente delimitado, e sim vago. Esta vagueza, como ele deixa claro acima (“O que é ainda um jogo e o que não o é mais? Você pode indicar os limites? Não.”), tem a ver com a existência de casos para os quais a aplicação do conceito é duvidosa – ou, dito de outro modo, existem objetos que não sabemos se pertencem ou não à extensão de um conceito por semelhança de família. São casos limítrofes (borderline cases) para a aplicação deste conceito. Entretanto, esta falta de limites

rígidos não prejudica em nada o emprego cotidiano destes conceitos. Esta falta de limites “nunca o perturbou, quando você empregou a palavra “jogo””.

Primeiramente, devo sublinhar que Wittgenstein não diz que é impossível construir uma definição rígida para esses conceitos; acima, o filósofo não se mostra contrário à definição de ‘número’ através de soma lógica – ele diz apenas que “isto não precisa ser assim”. Em outras partes de sua obra Wittgenstein afirma que, caso seja necessário, é perfeitamente justificável que aperfeiçoemos nossa terminologia tendo em vista finalidades práticas (cf. IF §132). Assim, Campbell (1965, p. 244) afirma que “à medida que F e G admitem casos limítrofes [borderline cases], o valor de verdade de “Todos os F’s são G’s” é indeterminado”, e que, portanto, “em todos os casos em que desejamos fazer generalizações [...], predicados mais propensos a casos limítrofes devem ser substituídos por outros, produzindo novas classificações que sejam menos propensas a disputas sobre casos limítrofes”. Um dos âmbitos onde desejamos “fazer generalizações” é o científico, e Wittgenstein certamente não se oporia ao aperfeiçoamento de nossos termos tendo em vista metas científicas.

O filósofo discorda, entretanto, daqueles que pretendem aperfeiçoar a linguagem natural tendo em vista um ideal deturpado de “exatidão” ao qual nossas palavras devem corresponder. Ele trata desta questão na §71:

Pode-se dizer que o conceito ‘jogo’ é um conceito com contornos imprecisos. – “Mas, um conceito impreciso é realmente um conceito?” – Uma fotografia pouco nítida é realmente a imagem de uma pessoa? Sim, pode-se substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma nítida? Não é a imagem pouco nítida justamente aquela de que, com frequência, precisamos? [...]

Ao interlocutor imaginário, que se questiona se um conceito com contornos imprecisos é realmente um conceito, Wittgenstein responde (através da analogia com a fotografia): cotidianamente nos utilizamos sem dificuldades destes “conceitos imprecisos”, de modo que se a “imprecisão” de um conceito não nos impede de utilizá-lo frutiferamente em inúmeros casos, não se vê porque deveríamos dizer que não se trata de um conceito. O que caracteriza um conceito, portanto, é o uso que fazemos dele – e por mais que para determinadas situações seja proveitoso estabelecer critérios mais rígidos para a utilização de conceitos, isto não é sempre necessário. “Pode-se substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma nítida”, mas a imagem pouco nítida é “justamente aquela que, com frequência, precisamos”. Existem casos limítrofes para “azul” e “verde”, em que falantes frequentemente discordam da

aplicação dos termos – mas isto não faz com que estes conceitos de cor sejam inúteis, e nem os torna “não conceitos”. Como diz Wittgenstein, a fotografia pouco nítida é tão “fotografia” quanto a fotografia mais nítida, assim como o conceito com contornos imprecisos é tão “conceito” quanto um conceito científico, por exemplo.

Destarte, um conceito “impreciso” é certamente um conceito. Mas alguém poderia perguntar: “não devemos substituir, na medida do possível, todos os conceitos de nossa linguagem por conceitos exatos?” Precisamos analisar os pressupostos que jazem sob esta pergunta: o que é este ideal de exatidão colimado aqui? Como é estabelecida esta exatidão? Imaginemos que tenhamos como paradigma de exatidão o discurso científico, que nos diz que a distância média entre a Terra e o Sol é de 150 milhões de quilômetros. Mas a distância é exatamente esta? Não. Há aí uma série de aproximações. Entretanto, nenhum cientista objetaria, contra esta informação, que a distância entre a Terra e o Sol é de 150.000.000.010 metros em vez de 150.000.000.000 metros. 10m são irrelevantes aqui, e isto significa: é irrelevante para a ciência saber se a distância média entre a Terra e o Sol é 10m maior ou 10m menor do que é atualmente considerado. 10m é irrelevante mesmo para a consideração do diâmetro dos dois astros. Deste modo, se fôssemos requerer que todo tipo de discurso almejasse a exatidão “máxima” – se fôssemos considerar “exatidão” enquanto ideal a ser seguido, o próprio discurso científico passaria por inexato na grande maioria dos casos. Como observa Wittgenstein na §88, “um ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que devemos nos representar por isso – a menos que você mesmo estabeleça o que deve ser assim chamado. Mas ser-lhe-á difícil encontrar tal determinação; uma que o satisfaça”. Em vez disso, o filósofo defende que o termo “inexato” funciona em nossa linguagem como uma repreensão, enquanto que “exato” funciona como um elogio; “e isto significa: o inexato não alcança seu objetivo tão perfeitamente como o mais exato. Isto depende daquilo que chamamos de “objetivo”.” (IF §88). Ou seja, para os objetivos científicos atuais é exato estabelecer a distância média entre a Terra e o Sol como 150 milhões de quilômetros. Se imaginássemos que, no futuro, o homem pudesse ir até a superfície do Sol, talvez aí fosse necessário medir novamente esta distância, determinar critérios mais rígidos para estabelecê- la, mas não é por isso que, no presente, vamos chamá-la de uma medida “inexata” da distância média entre a Terra e o Sol. Ela é exata para os nossos objetivos científicos atuais. Do mesmo modo, pode-se dizer que nossos conceitos cotidianos são inadequados ou inexatos em relação à precisão metodológica da ciência, mas somente em relação a ela é possível dizer isso, e não como se houvesse um ideal de exatidão para além da linguagem natural e da ciência, ao qual todos os nossos termos ainda “inexatos” devessem corresponder. Considerando-se apenas

nossos propósitos cotidianos, nossos conceitos por semelhança de família não podem ser ditos “inexatos”, pois funcionam de maneira adequada.