• Nenhum resultado encontrado

O filósofo termina a §65 com uma promessa de que as seções seguintes procurarão elucidar o que foi dito ali, e já na §66 ele investiga o conceito de “jogo” para mostrar que não há nada em comum a todos os jogos em virtude de que apliquemos a todos eles a palavra “jogo”. Não se deve negligenciar o fato de que Wittgenstein coloca, como primeiríssimo ponto para elucidar o que foi dito na §65, o exame do funcionamento de um conceito. Afinal, ao investigarmos as seções das Investigações que nos levaram a construir C1, ficou evidente a

oposição wittgensteiniana à construção de teorias em filosofia, e, sob essa luz, poderia parecer um tanto estranho o posicionamento do filósofo na §65. Ele expõe ali o que à primeira vista poderia nos parecer uma teoria filosófica, que propõe que certos conceitos são aplicados a determinados objetos graças a uma série de parentescos existentes entre esses objetos, e não graças a uma característica em comum. Entretanto, o que se segue nas Investigações deixa manifesto que, ao menos aos olhos de Wittgenstein, não se trata de uma teoria ou de uma hipótese. Trata-se, sim, de uma conclusão direta da investigação de como certos conceitos funcionam em nossa linguagem. Forster (2010, p. 75) observa que “Wittgenstein tem a intenção de que grande parte da força de seu modelo de semelhança de família venha do exame minucioso de exemplos específicos” – eu diria que, se Wittgenstein deseja ser condizente com a sua rejeição de teorias filosóficas, toda a força do modelo deve vir da verificação minuciosa de exemplos específicos. Se um conceito é ou não um conceito por semelhança de família deve ser uma conclusão direta do exame de seu funcionamento.27

26

Campbell (1965, p. 243) atenta para o fato de que “um predicado não é um predicado por semelhança de família em nenhum sentido absoluto, mas apenas relativamente a um dado contexto linguístico abarcando como variáveis o vocabulário, os propósitos, as capacidades e as escolhas de um grupo que se utiliza da linguagem”. Por isto devemos dizer que “solteiro” não é um conceito por semelhança de família se considerado enquanto “homem não-casado e não viúvo”, i.e., se considerado por meio de uma definição conjuntiva.

27 Não me estenderei na discussão de exemplos específicos deste tipo de exame, mas em relação a isto é

É sob este prima que deve ser lida a seguinte admonição wittgensteiniana, presente na §66: “Considere, por exemplo, os processos que chamamos de ‘jogos’. [...] O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”, – mas veja se algo é comum a eles todos.” A oposição aqui é muito clara: de um lado temos uma posição teórica que prescinde de examinar o funcionamento efetivo de nossa linguagem (“Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”), ou que já se lança sobre a linguagem pensando que ela deva corresponder a uma certa teoria; do outro lado, temos a posição wittgensteiniana – resumida sob o lacônico veja –, que nos aconselha a analisar os casos específicos do que costumamos chamar de “jogo” antes de estabelecer se tal conceito se aplica corretamente a estes casos graças a uma característica comum a todos eles. Ao dizer- nos “não pense, mas veja!”, Wittgenstein deseja nos precaver contra este tipo de (pressu)posição teórica. O mesmo ponto é reafirmado na §340: “Não podemos adivinhar como uma palavra funciona. Temos de ver seu emprego e aprender com isso”. Assim, que certos conceitos sejam conceitos por semelhança de família é inferido diretamente de uma investigação do funcionamento destes conceitos, e o que é exposto a partir da §65 deve ser visto principalmente como uma tentativa de descrever o funcionamento de um certo tipo de conceito, e não como uma hipótese a ser posteriormente confrontada com a realidade. Respeitamos, desta forma, C1, além de evidenciarmos como Wittgenstein pôde ter pensado a

noção de semelhança de família sob sua reiterada injunção de que a tarefa da filosofia é primordialmente descritiva.

Após o exame de “jogo”, buscando nos diversos jogos uma característica em comum a todos eles que justifique a aplicação do conceito e falhando, o que Wittgenstein descobre, ao invés disso, é que entre os jogos existe “uma rede complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor” (IF §66). Muitos jogos são recreativos, mas nem todos (considere o futebol jogado profissionalmente, por exemplo). A maioria envolve a vitória e a derrota de jogadores, mas estes conceitos não são tão facilmente aplicáveis a jogos como “verdade ou consequência” e role-playing games. Recreação e vitória/derrota são portanto características de um grande conjunto de jogos, mas não de todos. Por outro lado, alguns jogos são jogados com bolas, alguns envolvem redes, alguns envolvem corrida, e estas características se cruzam e se sobrepõem. Certamente, todos

provavelmente a mais extensa e direta que o filósofo realiza para um conceito por semelhança de família nas

Investigações. A conclusão é de que não aplicamos “ler” para descrever um processo que esteja ocorrendo na

mente daquele que lê, mas que possuímos diversos critérios em diferentes contextos para utilizar o conceito, e nenhum destes critérios pode ser considerado como único e necessário para dizermos se alguém está lendo ou não.

são atividades, e a maioria possui regras, mas apenas estas características dificilmente podem defini-los – uma reunião de trabalho é igualmente uma atividade e possui regras. Destarte, Wittgenstein utiliza “jogo” como o exemplo paradigmático de um conceito por semelhança de família. Não há uma única característica ou conjunto de características que todos os jogos possuam em comum e que possa definir o que é um “jogo”, mas sim uma complicada rede de semelhanças.