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A verdade estava com a cigana

4.3 José Louzeiro

4.3.2 A verdade estava com a cigana

Na seção anterior, foi dito que outras fontes, além do romance-reportagem de José Louzeiro, precisaram ser consultadas para a construção de um sumário do caso Aracelli. A intenção era deixar o leitor da tese a par dos principais acontecimentos – ou histórias – em torno do assassinato da menina. Trata-se, contudo, de um trabalho acadêmico que discute as imbricações entre jornalismo e literatura; que tem, por corpus, textos cuja referencialidade tem sido apontada como causa de seu pouco ou nenhum valor literário; que visa ao questionamento da usual oposição entre discurso factual e discurso ficcional. Era inevitável, portanto, recapitular os “fatos” que motivaram a escrita de Aracelli, meu amor (1979). Mas o confronto – ou mesmo a simples complementação – do texto com outros documentos é fundamental para sua compreensão? A narrativa de Louzeiro é capaz de ultrapassar seu contexto imediato? Ou ainda: a ficcionalização empreendida fala por si mesma?

Paradoxalmente, a resposta a essas questões reside em outra pergunta; trata-se daquela sugerida por W. Ross Winterowd (1990), em substituição à convencional “O que é este texto?”. Para o teórico norte-americano, que aborda a chamada “literatura não-imaginativa” ou “literatura do fato” – denominações que considera inadequadas, adotando, por isso, a expressão “literatura outra”, em oposição à literatura declaradamente ficcional, privilegiada no meio acadêmico – do ponto de vista da retórica, a chave para a descrição das obras de jornalistas- escritores não está no que o texto “diz” ou “afirma”, mas no que o texto “faz”. Se perguntasse “Que tipo de força ilocucionária eu atribuo a este texto?”, o estudioso do romance-reportagem perceberia que, ainda que tais narrativas possam atuar como

“agentes de persuasão”, ou fornecer, a seus leitores, a base para futuros argumentos, elas não constituem argumentos em si; não exigem, do leitor, uma perlocução. E isso, simplesmente, por serem narrativas.

Desde as primeiras linhas de Aracelli, meu amor (1979), é estabelecido o distanciamento característico da mimesis. Isso significa que o leitor, apesar de acompanhar o desenrolar dos fatos, pode fazê-lo despreocupadamente, pois os acontecimentos representados não lhe dizem respeito de uma maneira direta. Trata- se da “tensão na distensão”, ou do “engajamento no alheamento”, a que se refere Paul Ricoeur (2010), e que marca a passagem do mundo do comentário para o mundo narrado. W. Ross Winterowd (1990), menos cauteloso que o filósofo francês, vê nesse distanciamento a própria transição do factual para o ficcional. Uma vez que personagens entram em cena, agindo em um sistema de coordenadas espaço- temporal diferente daquele compartilhado pelo autor e pelo leitor (HAMBURGER, 1986), leituras baseadas na autenticidade ou falsidade das informações deixam de ter prioridade; em lugar de procurar outras fontes, que corroborem ou contestem a versão apresentada, o leitor busca por mais informações no interior da própria narrativa.

Esse movimento endofórico pode ser vislumbrado desde a abertura do romance-reportagem de José Louzeiro, em que o narrador se desincumbe da tarefa de situar o leitor no mundo do texto já em pleno curso dos acontecimentos, sem interromper ou sequer desacelerar a narrativa para inserir as descrições. Um procedimento empregado no decorrer de todo o livro, mas especialmente marcante nos parágrafos iniciais, é o principal responsável pelo ritmo bem marcado da prosa: trata-se do encadeamento de orações sem o uso de conectivos. Além da agilidade imposta à leitura, a sucessão de vírgulas provoca uma sensação de continuidade ou infinitude – enfim, de que é preciso prosseguir – que, de certa forma, encontra eco no fim inconclusivo da trama, que será abordado mais adiante. Abaixo, um trecho da abertura do livro, para exemplificar o que se está tentando dizer:

Vitória, sexta-feira, 18 de maio de 1973.

Aracelli Cabrera Crespo sai do Colégio São Pedro, na Praia do Suá, vai para o ponto do ônibus, na esquina do Bar Resende, cadeiras de madeira pintadas de branco na calçada, uma banca de jornais em frente. É uma garota de nove anos, muito desenvolvida para a pouca idade, olhos negros e vivos, bonita na sua farda de saia azul, blusa azul mais claro, as iniciais SP bordadas no bolso esquerdo. Ainda não são 17 horas. Chegam outras pessoas, ficam olhando jornais e revistas. Aracelli senta-se numa cadeira,

põe a pasta sobre a mesa, brinca com o gato que sempre encontra por ali, silencioso e ágil.

O ônibus aparece, coberto de poeira, naquela tarde de sol quente, céu azul, coqueiros acenando as palmas verdes, bananeiras perfilando-se nas encostas, mostrando o avesso claro e fresco das folhas. Os passageiros tomam seus lugares no ônibus, Aracelli continua na cadeira, alisando o pêlo do gato.

– Perdeu o ônibus, Aracelli? – pergunta o garoto que se aproxima na bicicleta sem pára-lamas, nu da cintura para cima, pés descalços.

O garoto prossegue pela avenida asfaltada, ninguém mais repara na menina de uniforme bem passado, sapatos lustrosos, que brinca com o gato, oferece-lhe sorvete.

Se Aracelli tivesse tomado o ônibus, agora estaria a meio caminho de casa, no bairro de Fátima, onde as ruas não têm calçamento, são largas e os arbustos crescem nos quintais, formando tufos de verdura por cima das cercas e muros baixos. (LOUZEIRO, 1979, p. 3).

O excerto acima permite outras considerações. Uma delas, por exemplo, diz respeito ao uso do presente do indicativo, que persiste ao longo de toda a narrativa. É possível que a escolha desse tempo verbal consista numa tentativa de evocar ou reproduzir o imediatismo da notícia.32 Tal hipótese é reforçada pela data que encima o texto – “Vitória, sexta-feira, 18 de maio de 1973” –, e que segue a formatação empregada pelos jornais diários em seus cabeçalhos. Por outro lado, a data, precisa, é uma forma de reivindicar a autenticidade dos fatos apresentados. Por fim, tanto a quase simultaneidade da notícia em relação ao “fato” quanto seu status de testemunho fidedigno da “realidade”, qualidades às quais o livro de Louzeiro aspira, são buscadas por meio do emprego de um narrador que, nesses momentos iniciais, move-se praticamente como uma câmera; como um repórter “imparcial”, cujo único desejo é retratar o que vê.

Todavia, quando um mundo se interpõe entre autor e leitor – um mundo configurado pelo narrador do romance-reportagem Aracelli, e não “comentado” pelo escritor ou jornalista José Louzeiro –, o uso do presente do indicativo não é suficiente para simular a situação de locução que se tem na notícia, na qual o sujeito do enunciado – o repórter que assina a matéria – e seu interlocutor, por se encontrarem no mesmo plano axiológico que os fatos e pessoas “sobre” os quais se fala, podem dar início a um debate. Tampouco a opção por um “narrador-câmera”,

32 É certo que o presente do indicativo, em Aracelli, não tem o mesmo sentido que possui em

Abusado, de Caco Barcellos. Na obra do jornalista gaúcho, o tempo verbal é reservado às passagens

nas quais a ação se faz mais intensa, como a perseguição e a troca de tiros entre a quadrilha de Juliano e a Polícia Militar, no início do livro. A maior parte das cenas, no entanto, é construída no pretérito perfeito, destacando-se dos sumários, nos quais é empregado o pretérito imperfeito. Tudo leva a crer que o uso indiscriminado do presente do indicativo em Aracelli tenha, realmente, o objetivo de reafirmar uma filiação ao jornalismo.

que capte apenas o movimento exterior, sem adotar a perspectiva desta ou daquela personagem, impede que, a qualquer momento, venha à tona aquilo que Genette (1991) chama de a “onisciência elástica” do ficcionista – embora, para o teórico francês, o conhecimento absoluto do ficcionista derive da invenção, e não de seu poder de moldar ou dar acabamento a uma experiência temporal caótica por excelência.

Assim, ainda que José Louzeiro tivesse a intenção de envolver o leitor de Aracelli de uma forma mais “pragmática” – por meio das estratégias empregadas pela notícia e pelo jornal diário na identificação do “aqui e agora” a partir do qual os acontecimentos devem ser compreendidos e analisados –, tentando fazê-lo acreditar que estivesse no mesmo plano ético-cognitivo que as personagens, o narrador do romance-reportagem impede qualquer perturbação no distanciamento ficcional. Vai deixando suas marcas configuradoras pelo texto, como o advérbio “naquela” na 11.ª linha da citação – “naquela tarde de sol quente” –, que desfaz qualquer ilusão de que ainda se pudesse estar no mundo comentado. Da mesma forma, logo demonstra que seu conhecimento ultrapassa os limites do que pode ser captado por uma câmera: na última frase do trecho reproduzido – “Se Aracelli tivesse tomado o ônibus, agora estaria a meio caminho do bairro de Fátima [...]” –, por exemplo, revela, quase sem querer, sua habilidade de ir e vir no tempo.

Mas a opção pelo narrador-câmera nos primeiros parágrafos da narrativa não pode ser atribuída apenas a um desejo de “enganar” o leitor, levando-o a crer que ainda se encontre no mundo comentado, ao qual pertence o jornalismo informativo diário – o jornalismo “científico” de que fala Sims (2007). Ocorre que o narrador não conhece Aracelli; o desaparecimento da menina, seguido de sua morte, é a justificativa para que as verdadeiras personagens da trama sejam postas em movimento: o vereador – e, mais tarde, deputado – Clério Falcão, o perito Asdrúbal Cabral e a cigana Rita Soares. Daí o fato de, em sua breve aparição na trama, Aracelli ser vista de longe, apesar de seu espírito pairar como uma ameaça sobre a cidade de Vitória – incapaz de dar uma conclusão ao caso – do início ao fim da narrativa. Daí, também, a escolha da obra em questão, e não de outro dos livros de Louzeiro, como Lúcio Flávio ou Infância dos mortos, em que os próprios protagonistas são as vítimas mais ou menos impotentes da polícia e do sistema correcional que o autor deseja expor.

Dessa forma, basta que os três protagonistas entrem em cena para que o narrador assuma, sem pudor, seu poder de acessar a interioridade das eu-origines fictícias. (HAMBURGER, 1986).33 No entanto, ainda que mais de uma das personagens mencionadas acima estejam juntas em uma determinada situação, é adotada apenas a perspectiva de uma delas por vez; a alternância da focalização interna se dá em função da centralidade do papel desempenhado por cada um dos três caracteres nos episódios do livro. Essa estratégia narrativa acaba por transmitir uma sensação de solidão e desamparo; solidão e desamparo que causam estranheza, se levado em conta o fato de que Clério, Dudu e Rita Soares são aliados em uma busca pela verdade. De certa maneira, essa impressão que se tem em relação ao trio – de que as personagens, apesar de trabalharem juntas, estão sós para enfrentar suas angústias – repercute uma ideia que se insinua várias vezes ao longo da narrativa: a da degradação da cidade de Vitória, ou da perda de seu senso de comunidade.

Abaixo, três passagens em que essa noção, de que Vitória não era mais a mesma cidade, transparece. O primeiro é retirado do capítulo 1, Desaparecimento, e traz o pai de Aracelli, seu Gabriel, levantando hipóteses para o sumiço da filha. O segundo está no capítulo 2, O prêmio e as romarias, e faz parte do já referido diálogo entre o sargento Homero Dias, que investigava o crime, sua esposa, Elza, e seu pai, João Dias. O terceiro foi pinçado do capítulo 5, Conversa gravada, e corresponde a considerações de Dudu sobre a capital capixaba:

Teria Aracelli, junto com colegas, ido para uma praia, sumido nas ondas? Era impossível. Alguém teria visto, os próprios companheiros terminariam contando a verdade. E Aracelli não faria uma coisa dessa. Teriam seqüestrado Aracelli? Não. Isso é coisa de cidade grande. De lugares onde não há mais solidariedade, onde as pessoas se tornaram virtualmente inimigas umas das outras, são feras com aparência de gente. (LOUZEIRO, 1979, p. 8).

– Como foi mesmo que mataram a menina? – pergunta o pai. – O senhor precisava ver. Uma monstruosidade!

– Nossa Senhora! – exclama dona Elza Dias. – Não gosto nem de ouvir falar nisso. Basta o que tenho lido nos jornais e visto na televisão.

– O mundo tá virado, minha filha.

33 Antes mesmo do surgimento, na trama, do vereador Clério Falcão, primeira das personagens principais a que o leitor é apresentado, o narrador já havia adotado a focalização interna em relação ao pai de Aracelli, Gabriel Cabrera Sanches; isso foi necessário para que o leitor pudesse acompanhar o “instante inicial de um drama”, como diz o título do capítulo.