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No jargão profissional, o termo reportagem possui dois significados. Em um sentido lato, designa o processo de coleta de informações que antecede a redação, ou seja, as horas gastas pelo repórter na rua ou ao telefone, ouvindo fontes ou consultando documentos. Em outro, mais específico, e que interessa a este trabalho, nomeia um gênero do discurso jornalístico que supõe um nível de planejamento superior ao da simples notícia, e cujo estilo é menos rígido. As informações, conforme Lage (2003), não precisam estar dispostas em ordem decrescente de importância: é possível narrar a história, como um conto ou fragmento de romance. Em certos casos, admite-se até mesmo que o repórter conte o que viu na primeira pessoa.

O mesmo autor, em outra obra (2001), diferencia a simples notícia da informação jornalística, categoria na qual inclui, além da reportagem, o artigo, a crônica e a crítica. Enquanto a notícia trata, segundo Lage, de um acontecimento que contém elementos de ineditismo, ou que represente um rompimento na ocorrência normal dos fatos – a queda de um avião, por exemplo –, a informação jornalística decorre de uma intenção, de uma visão jornalística – ou de uma problemática, como diria Traquina (2008). No caso específico da reportagem, esta pode até partir de uma notícia, mas não se restringe a acompanhar os desdobramentos de um evento.

Um desastre aéreo, em termos de cobertura noticiosa, pode gerar, nos dias seguintes, o acompanhamento da remoção dos destroços, da recuperação dos sobreviventes (se houver), do sepultamento dos mortos e do inquérito sobre as causas. Em termos de reportagem, motiva textos sobre a segurança dos vôos, indústria aeronáutica, serviços de salvamento, operação de aeroportos, atendimento médico de emergência etc.; ou então histórias pessoais com conteúdo trágico, dramático ou cômico relacionadas ao acidente. São, como se vê, coisas distintas. (LAGE, 2001, p. 39-40). Para Cremilda Medina, a reportagem é a combinação de dois fatores: o aprofundamento do acontecimento no tempo e no espaço, em relação à notícia, e a abordagem estilística. Como dispõe de um número de dados muito maior, graças ao levantamento de antecedentes históricos do fato e à busca do lado humano das informações – o que leva a um quadro interpretativo e à descoberta do que é permanente em um evento imediato –, o repórter/redator precisa conhecer técnicas de narrar. “Foge-se aí das fórmulas objetivas para formas subjetivas, particulares e artísticas. O redator não tem à disposição recursos prontos, mas passa a criar.” (MEDINA, 1978, p. 134).

Segundo Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986), foi nos Estados Unidos que esse gênero jornalístico ganhou impulso moderno. Para mostrar como uma simples notícia pode se transformar em reportagem, os autores utilizam o exemplo de Skeets Miller, ganhador do prêmio Pulitzer de 1925. Naquele ano, o jovem repórter do Courier Journal, um diário de Louisville, no estado de Kentucky, foi mandado à pequena Cave City para cobrir o desabamento de uma gruta, em que ficara preso o agricultor Floyd Collins. Quando o irmão da vítima, nervoso, negou-se a dar as informações solicitadas pelo jornalista, este se viu obrigado a conferir a situação de perto. Entrou na gruta, conversou com o camponês ferido e acabou participando de todas as tentativas de salvamento.

Collins não sobreviveu, já que, devido a outros desabamentos no local, a equipe de resgate só conseguiu chegar até ele mais de duas semanas depois. Naquele mesmo ano, outros dois acidentes do tipo mataram 53 e 61 pessoas. Contudo, ao contrário dos textos de Miller, publicados com destaque ao longo de vários dias – e que, mais tarde, inspiraram o filme A montanha dos sete abutres, de Billy Wilder –, ganharam apenas notas breves, meramente informativas, em páginas internas dos grandes jornais. O que teria levado a essa diferença de tratamento, já que os desabamentos posteriores ao que provocou a morte de Collins fizeram dezenas de vítimas?

Sodré e Ferrari (1986, p. 15) afirmam que, “nas condições de sofrimento de um indivíduo, filtradas pelas impressões de um outro indivíduo, projetavam-se as dificuldades de uma nação em luta pela vida”. Ou seja, relatando uma tragédia individual de forma impressionista – ou, conforme Medina, buscando o aspecto humano de um acontecimento –, Miller possibilitou que seus leitores se colocassem no lugar de Collins e, ao mesmo tempo, no seu próprio. “O tratamento narrativo, isto é, a reportagem, impôs-se no instante em que Miller sentiu-se ‘tocado pela extrema solidão’ de Floyd.” (SODRÉ E FERRARI, 1986, p. 14).

Para o estudioso norte-americano Norman Sims (2007), professor de jornalismo na University of Massachusetts, esse tipo de abordagem tem, como características, a intensidade na apuração – ou seja, a imersão no assunto abordado –, o uso de estruturas narrativas complexas, o desenvolvimento de personagens, a presença de simbolismo, a criação de uma voz pessoal por parte do autor, o foco nas pessoas comuns e a precisão. Quanto a esta, Sims explica que, apesar de ser muito diferente do jornalismo noticioso – que ele chama de jornalismo “científico”, por reportar informações de segunda mão e estatísticas –, a reportagem mantém, com o público, o mesmo acordo implícito de fazer referência a situações ocorridas, e não inventadas – ainda que, segundo ele, os leitores tenham o hábito de usufruir dela como de uma prosa de ficção realista.

No jornalismo norte-americano, os profissionais têm se dividido entre uma perspectiva “científica” e “abstrata” e outra “humanística” desde a ascensão dos jornais de circulação de massa, na década de 1890. Nesses pouco mais de cem anos, a evolução da tendência humanística (2007, p. 20, tradução nossa), “tem sido uma jornada de altos e baixos pontuada por surpreendentes inovações”. As mudanças mais marcantes, de acordo com Sims, surgiram em resposta a forças culturais disruptivas, como a depressão econômica, a Primeira Guerra Mundial e a revolução comportamental da década de 1960. A primeira geração de jornalistas a se deixar levar pelo desejo de fazer mais do que simplesmente apresentar “fatos verificáveis” é localizada pelo autor na cidade de Chicago, na virada do século XIX para o século XX, e foi motivada pelo surgimento de novos tipos urbanos em função da industrialização e da imigração.12

12 Antes disso, em meados do século XIX, os jornais norte-americanos, especialmente em ambientes “rurais”, costumavam publicar esquetes, textos que brincavam com a voz e a perspectiva do narrador e desafiavam o leitor a avaliar sua veracidade. São famosas as esquetes de Mark Twain, escritas

Esse gênero de escrita jornalística foi batizado apenas em 1937, mesma época em que surgiu a revista The New Yorker, primeiro veículo de comunicação norte-americano a fornecer o suporte necessário – em termos não só de tempo e de espaço, mas também de recursos financeiros – para que seus repórteres se dedicassem integralmente a um jornalismo diferenciado. Aqui, contudo, cabe um esclarecimento: diferentemente de países de língua latina, que adotaram correlatos da palavra francesa reportage, os norte-americanos deram a esse tipo de narrativa o nome de jornalismo literário – literary journalism.13 A expressão já havia sido usada algumas vezes desde o início do século XX, mas foi Edwin H. Ford, um professor de jornalismo da University of Minnesota, quem a empregou pela primeira vez no sentido em que é compreendida hoje, no meio acadêmico: como uma forma de jornalismo, e não como o produto de um jornalista que escreve sobre literatura.

No Brasil, o início da reportagem é associado ao trabalho de João do Rio, pseudônimo do jornalista Paulo Barreto, cujo palco de atuação foi o Rio de Janeiro de 1900. Conforme Cremilda Medina (1978), tratava-se de uma cidade em remodelação, com suas primeiras casas de chopp, o cabaré Chat Noir em estilo Paris, as livrarias como ponto de encontro dos escritores e a recém-aberta Avenida Rio Branco ou Central, símbolo de modernidade e de civilização. Tendo à disposição o burburinho das ruas, repletas de novos tipos, como o dândi, João do Rio não se satisfez com a notícia telegráfica e imediata. Os três rumos que, conforme a pesquisadora, foram tomados mais tarde pelo jornalismo interpretativo – uma outra maneira de chamar a reportagem –, já estavam presentes em Paulo Barreto, ainda que de forma incipiente: a humanização, a ampliação do fato imediato no seu contexto e a reconstituição histórica do fato. E, apesar dos excessos retóricos do autor, que também pecava pelo egocentrismo – em seus textos, há uma centralização no repórter –, estão lá o envolvimento, a criação de uma voz, a construção de personagens e o foco nas pessoas comuns de que fala Sims. Conforme Brito Broca (1960, p. 247):

quando o escritor ainda assinava seus textos como Samuel Clemens. Segundo Sims, tanto as esquetes quanto a narrativa de viagem tiveram papel importante no desenvolvimento da reportagem. 13 Sims explica que os dois termos se sobrepunham, pois eram usados para fazer referência aos mesmos trabalhos jornalísticos. Todavia, a palavra reportage não se popularizou, por ser considerada pedante. O autor cita a jornalista Lillian Ross, que em suas memórias afirma que reportage soa como uma palavra buscada no século XIX por pessoas que querem ser tidas em alta conta pelas outras.

O cronista por excelência do “1900” brasileiro seria Paulo Barreto (João do Rio). E uma das principais inovações que êle trouxe para a nossa imprensa literária foi a de transformar a crônica em reportagem – reportagem por vezes lírica e com vislumbres poéticos. Machado de Assis, Bilac e outros eram cronistas sem o temperamento de repórteres; o primeiro, principalmente, sabendo comentar com sutileza e finura os acontecimentos populares, como os faits-divers, mantinha-se dêles um tanto distanciado. Capazes de formular as considerações mais inteligentes e irônicas sôbre um crime passional que abalara a cidade, jamais lhes passaria pela cabeça ir à cadeia ver de perto o criminoso e conversar com êle. Foi essa experiência nova que João do Rio trouxe para a crônica, a do repórter, do homem que, freqüentando salões, varejava também as baiúcas e as tavernas, os antros do crime e do vício. Subia o morro de Santo Antônio com um bando de seresteiros e ia aos presídios entrevistar sentenciados.

Alma Encantadora das Ruas intitular-se-ia um dos seus livros. A crônica

deixava de se fazer entre as quatro paredes de um gabinete tranqüilo, para buscar diretamente na rua, na vida agitada da cidade o seu interêsse literário, jornalístico e humano.

Por outro lado foi João do Rio dos primeiros a vulgarizar em nossa imprensa o hábito das entrevistas.

Essas considerações estão longe de fornecer um conceito fechado de jornalismo literário. O próprio Sims, tido como um dos maiores especialistas dos Estados Unidos no assunto e autor de diversos livros na área, acredita que a leitura dos textos considerados exemplos de reportagem seja mais esclarecedora do que qualquer revisão teórica. O que se pode afirmar, segundo ele, é que se trata de “uma criatura com pais nos dois campos”, o jornalístico e o literário – entendendo-se a literatura, aqui, como prosa ficcional. O já mencionado Edwin H. Ford, por exemplo, descrevia o jornalismo literário como “[...] a escrita que cai na zona crepuscular que divide a literatura do jornalismo”. (FORD, 1937 apud SIMS, 2007, p. 8, tradução nossa)14. Sims cita também a definição de reportage de Joseph North, que era editor da revista New Masses (1926-1948) em 1935: uma forma tridimensional de reportar, em que o escritor não apenas condensa a realidade, mas ajuda o leitor a senti-la. Na mesma linha de pensamento, Sodré e Ferrari (1986) apontam a reconstituição e a presentificação das ações como básicas na conceituação de reportagem.

Talvez Alceu Amoroso Lima (1969) esteja se referindo à diferença entre notícia e reportagem ao distinguir o mau do bom jornalismo. O profissional que opta pelo primeiro, conforme o crítico (p. 46), “[...] fica demais na sua função de noticiarista e decai de jornalista propriamente dito a telegrafista ou boateiro”. O que opta pelo segundo tira o “essencial do acidental”, o “permanente do corrente”. “Fazer

da informação um gênero literário, é o sinal do bom jornalista. Fazer de um gênero literário, como o jornalismo, uma simples informação, é o sinal de um mau jornalista.” (LIMA, 1969, p. 47).

Para o intelectual, que foi membro da Academia Brasileira de Letras, a literatura é (p. 22) “expressão verbal com ênfase nos meios e não com exclusão dos fins”. Ou seja: não é preciso renunciar ao compromisso com a “realidade” do jornalismo para se fazer literatura. Só assim, dentro do que ele considera uma concepção racional, e não purista, é possível enquadrar o bom jornalismo – ou seja, aquele que consegue descobrir a “eternidade” de cada momento, sem descuidar do estilo – entre seus gêneros. Por sua vez, Antonio Olyntho Marques da Rocha (1955) afirma que a literatura de ficção pode haurir seu material tanto da realidade em ato quanto da realidade em potência, mas que ambas passam pela mesma transformação, sujeitando-se às leis da descrição e da narração. Leis que, segundo o crítico, também vigoram na reportagem.

Para Rocha, há uma diferença entre o jornalismo que não perde o todo de perspectiva e o jornalismo “rotineiro” e “viciado”, que se atém ao imediatismo: enquanto aquele atinge a permanência, este apenas manipula matéria morta. Os sertões, de Euclides da Cunha, tido como uma das maiores obras da literatura brasileira, é considerado pelo autor um exemplo perfeito de reportagem, justamente porque o escritor soube ver, em um episódio considerado localizado e transitório por muitos (1955, p. 60), “uma constante da natureza humana, ávida de sobrenatural”. Ao reproduzir pontos de vista como este, no entanto, este trabalho não pretende convencer o leitor de que o jornalismo é uma arte, mas mostrar as relações entre jornalismo e literatura, dois discursos que, a princípio distintos, imbricam-se na reportagem.