• Nenhum resultado encontrado

Uma história inacreditável: Corações sujos

4.2 Fernando Morais

4.2.1 Uma história inacreditável: Corações sujos

Foi em meio ao processo de investigação para escrever Chatô: o rei do Brasil que Fernando Morais ouviu falar da Shindo Renmei pela primeira vez. Ao entrevistar uma nissei – filha de imigrantes japoneses – que, aos 17 anos, havia mantido um romance com Francisco de Assis Chateaubriand, quando este já se encontrava na faixa dos 50 anos, Morais quis saber, da mulher, como ela havia conhecido o fundador dos Diários Associados, pois ignorava que o magnata das comunicações tivesse uma relação próxima com a colônia japonesa. A nissei respondeu que seu pai, funcionário do Diário da Noite, fora preso na década de 1940 pelo seu envolvimento com a organização dos kachigumi, e que Chatô fora o responsável por tirá-lo da cadeia. Ao insistir por mais detalhes, a entrevistada desconversou, e o repórter precisou refrear sua curiosidade até o término do livro em andamento, como conta em entrevista a Alessando Giannini para a revista IstoÉ Gente. (MORAIS, 2000). O gérmen de Corações sujos, porém, estava lançado.

Em seu romance-reportagem, Morais (2007) conta que os kachigumi, ou “patriotas”, tinham o apoio de 80% da colônia japonesa, composta, à época, por mais de 200 mil imigrantes, a maior parte concentrada no estado de São Paulo. Quando a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim, em agosto de 1945, eles não aceitaram a notícia da rendição do Japão: tudo não passaria de propaganda dos Aliados para quebrar o espírito nipônico. Afinal, em 2.600 anos, o Exército Imperial Japonês jamais perdera uma guerra. A Fala do Trono, quando o imperador Hiroíto, em um pronunciamento transmitido via rádio, dirigiu-se pela primeira vez aos seus súditos, a fim de pedir que “suportassem o insuportável”, não foi capaz de convencê- los do resultado do conflito. Tampouco a Declaração da Condição Humana, lida por Hiroíto em 1.º de janeiro de 1946 por imposição dos norte-americanos – e que chegou aos lares brasileiros pela Rádio Record – abalou a fé dos kachigumi na invencibilidade do Império do Sol Nascente e na divindade de seu imperador.

Mas se, conforme o jornalista, quase a totalidade dos imigrantes que começaram a aportar em Santos em 1908 era constituída por pessoas de formação

modesta – lavradores contratados para trabalhar nos cafezais, feirantes, tintureiros e ex-militares –, cuja fidelidade ao imperador e ao Yamatodamashii – espírito ou modo de ser japonês – era inabalável e cujo único objetivo era reunir economias para um dia voltar à terra natal, havia, entre os membros da colônia, quem realmente quisesse integrar-se ao novo país: profissionais liberais, jornalistas, empresários, criadores de bicho-da-seda, produtores de hortelã, diretores de cooperativas rurais e até mesmo ex-diplomatas – como Shigetsuna Furuya, que tinha sido embaixador do Japão na Coréia, no México e na Argentina antes de se mudar para o Brasil e se tornar um grande produtor e exportador de bananas. Muitos não concebiam a ideia de serem confundidos com “fanáticos”, e consideravam fundamental esclarecer o restante da comunidade sobre o desfecho da guerra. Os makegumi, “esclarecidos”, passaram a ser vistos pelos kachigumi como “traidores da pátria” ou “corações sujos”. A colônia, assim, estava perigosamente dividida em “vitoristas” e “derrotistas”.

Organizados na Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, e liderados pelo ex-coronel Junji Kikawa, que havia migrado para o Brasil em 1933 para conseguir sustentar sua família – ele abandonara a carreira militar aos 45 anos em função da miopia, pois considerava inadmissível que um membro do Exército Imperial Japonês tivesse qualquer deficiência física –, os kachigumi, que de 1942 – ano de fundação da liga – a 1945 haviam se dedicado sobretudo a um trabalho de propaganda e aliciamento – entre as promessas feitas aos colonos, estava a de repatriamento imediato após o fim do conflito bélico, quando o Japão, vitorioso e principal potência mundial, mandaria navios para buscar seu povo –, começam a formar os tokkotai, Batalhões do Vento Divino. A missão desses grupos: calar os makegumi que insistissem em alardear a derrota.

De agosto de 1945 a setembro de 1946, 23 pessoas foram mortas pelos tokkotai da Shindo Renmei e 147 ficaram feridas nas missões de assassinato e ações de vandalismo. Dos 31.380 imigrantes detidos, identificados e fichados pela polícia paulista por suspeita de envolvimento com a liga, 1.423 foram acusados pelo Ministério Público, embora a Justiça tenha aceito a denúncia de somente 381 pessoas, todas citadas no epílogo do livro de Morais. Outros 80 japoneses, entre eles o coronel Junji Kikawa, tiveram a expulsão do país decretada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, mas ingressaram com recursos judiciais que protelaram a

execução das penas de expulsão até que o presidente Juscelino Kubitscheck, no Natal de 1956, decidiu anistiar todos os prisioneiros.

Dar início à pesquisa para Corações sujos (2007), que a Companhia das Letras publicou em 2000, não foi fácil. Morais tentou conversar com vários amigos, nissei e sansei – filhos e netos de japoneses. Muitos nunca tinham ouvido falar na Shindo Renmei. Os que sabiam de algo sobre o episódio se esquivavam, como a antiga namorada de Chateaubriand. No material promocional do filme Corações sujos, há um depoimento do autor sobre o que a “briga de vizinhos” – como alguns se referiam à luta entre os kachigumi e os makegumi, na tentativa de fazer com que o jornalista perdesse o interesse no assunto – realmente significava para os imigrantes ainda vivos e seus descendentes:

Só muitos anos depois [das conversas iniciais], ao descobrir, comidos por traças, os autos do processo depositados nos arquivos do Tribunal de Justiça de São Paulo, é que me dei conta de que a Shindo Renmei era um segredo zelosamente guardado por mais de meio século por uma comunidade de mais de um milhão de pessoas.10

Tão zelosamente guardado que Morais nunca havia ouvido falar sobre ele antes, apesar de circular por todo o estado de São Paulo, como repórter ou político, desde a década de 1960. Com a autorização do TJ, consultou os arquivos, reproduziu documentos, anotou nomes de pessoas e de cidades – quase todas localizadas na região da Alta Paulista – e partiu em busca das testemunhas dos acontecimentos. Entre elas, um único tokkotai, ou seja, membro dos pelotões de execução da Shindo: Tokuiti Hidaka, agora um comerciante septuagenário que, por dois anos, relutou em falar com o repórter. Mas o idoso não foi o único a ficar desconfiado, ainda conforme o relato do escritor no pressbook do filme:

Esta é uma das mais inacreditáveis histórias que já haviam caído nas minhas mãos. E certamente foi, também, meu livro de mais difícil apuração. Ao ver um brasileiro bisbilhotando seu passado, velhos kachigumi e

makegumi reagiam com indignação. “O que um gaijin, um estrangeiro, pode

pretender ao bisbilhotar uma história de japoneses?” Fui salvo, no fim, por uma conclusão a que eles próprios chegaram: era melhor que o segredo fosse revelado por um gaijin do que por um descendente de japoneses ligado por laços afetivos ou familiares com uma das duas partes envolvidas no conflito.

10 O pressbook do filme Corações sujos, em formato PDF, pode ser baixado a partir da página oficial do longa-metragem na internet, <http://www.coracoessujos.com.br/pressbook.html>.

Apesar de breve, o depoimento do escritor merece uma análise um pouco mais detalhada. Em primeiro lugar, aparece, nas poucas linhas reproduzidas acima, a velha noção de uma história pronta, apenas esperando para ser transposta para o papel; uma história que “caiu nas mãos” de Morais. É certo que a experiência prática não é desprovida de um aspecto temporal: uma ação se desenrola no tempo. Possui, ainda, aspectos estruturais e simbólicos: além de pressupor interação – agir é agir com outro, em situação de cooperação ou de luta, por exemplo –, motivações, objetivos, resultados – que podem ser afetados por circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis, que contrariem ou confirmem as antecipações dos agentes – e consequências, uma ação sempre é avaliada moralmente. Porém, como mostra Paul Ricoeur (2010), esses aspectos são apenas “indutores de narração”. Somente a composição da intriga, por fazer a mediação entre as ações individuais, cria uma totalidade temporal que supera o caráter cronológico ou episódico, atribuindo a cada acontecimento o seu peso. O processo de escrita, assim, não é uma operação secundária, uma mera questão de retórica da comunicação: narrar é, ao mesmo tempo, compreender e explicar, e as condições de aceitabilidade da explicação dependem menos da acurácia das informações do que da capacidade da história de ser seguida pelo leitor.

Outro ponto que deve ser destacado é a definição da história, por seu autor, como “inacreditável”. Seria Corações sujos um dos casos de “ficção condicional” de que fala Genette (1991), ou seja, em que uma história, apesar de verdadeira, é tida como improvável, ou até mesmo impossível, por leitores de determinado espaço geográfico ou época, e por isso os seduz? O fato de o cisma na colônia japonesa ter sido guardado em segredo por tanto tempo poderia favorecer essa hipótese: ao contrário do que acontece com os outros dois livros sob exame neste trabalho, Abusado e Aracelli, meu amor, cujos temas e personagens tiveram ampla exploração na mídia, o leitor da obra de Fernando Morais dispunha, até 2000, de pouca ou nenhuma informação sobre a guerra entre vitoristas e derrotistas no interior do estado de São Paulo. Isso ocorre não apenas porque Caco Barcellos e José Louzeiro publicaram suas narrativas quando os fatos por eles abordados ainda eram relativamente recentes e, portanto, estavam vivos na memória do público, mas também porque lidam com questões – tráfico de drogas e violência contra crianças, por exemplo – com as quais, infelizmente, a sociedade brasileira tem mais familiaridade. Além disso, no caso de Corações sujos, mesmo que os leitores mais

céticos decidissem buscar os jornais da década de 1940, pouco veriam, ali, que corroborasse a intriga construída por Morais no livro: os registros pontuais e escassos feitos à época trataram a Shindo Renmei como coisa de “malucos”, e a colônia japonesa em geral como “quisto amarelo” ou reduto de espiões a serviço do Eixo, sem qualquer esforço de compreensão do ocorrido.

Ainda que o próprio Morais, em seu livro, refira-se à Shindo, diversas vezes, como uma seita – e a seus membros como fanáticos –, a impressão que se tem é a de que o autor usa tais palavras, que alterna com outras expressões, para não se repetir ou, em alguns casos, para dar ao leitor a dimensão exata da devoção dos imigrantes japoneses ao Yamatodamashii e ao imperador Hiroíto. Em nenhum momento, quando empregadas em Corações sujos, soam pejorativas ou zombeteiras. Pelo contrário: apesar de não esconder os exageros cometidos pela Shindo Renmei – e até mesmo algumas “trapalhadas”, como executar as pessoas erradas –, a admiração do autor pelos valores da cultura japonesa, levados tão a sério pelos kachigumi, fica evidente em vários momentos. É claro que Morais não compactua com os atos de vandalismo e com os assassinatos perpetrados pela organização de cunho nacionalista e militarista; porém, ao mostrar como a comunidade japonesa vinha sendo tratada no Brasil – situação que se agrava com a Segunda Guerra Mundial –, elege o preconceito, a segregação e a repressão como uma das causas que levaram parte dos membros da colônia a atos tão extremos.

É a essa “explicação”, que consiste na narrativa em si mesma – e que difere da explicação por leis própria da ciência, que promove a destemporalização dos acontecimentos –, que a sedução exercida pela história sobre o leitor deve ser atribuída, e não ao caráter extraordinário ou “inacreditável” dos fatos, como sugere Genette (1991) ao afirmar a existência de uma ficcionalidade condicional. Se assim fosse, no caso em questão, tal ficcionalidade estaria desde o princípio comprometida por referências extratextuais, ou seja, pelas fartas informações disponíveis acerca tanto do escritor Fernando Morais, jornalista reconhecido, quanto dos trabalhos que costuma publicar em livro. Há, ainda, o paratexto: o subtítulo do livro, A história da Shindo Renmei, já indica sua pretensão de veracidade, ao passo que, na contracapa, os editores anunciam Corações sujos como a volta de Fernando Morais à grande reportagem e falam em “reconstituição” de um episódio da imigração japonesa no Brasil. Por fim, em 2001, a obra recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias Livro do Ano de Não-Ficção e Reportagem.

Uma última observação a respeito do depoimento de Morais se faz necessária: ele afirma que o fato de ser um gaijin foi decisivo para conquistar a confiança dos velhos kachigumi e makegumi, pois somente uma pessoa sem conexões com qualquer um dos lados envolvidos na guerra que dividiu a colônia japonesa poderia contar o ocorrido da maneira apropriada. Ora, a relação da figura do estrangeiro com a do repórter, parte “isenta” ou “desinteressada” na história que conta – conforme a ideologia da profissão –, é quase imediata. Porém, como se viu no capítulo 1, uma das características fundamentais da reportagem é a escolha de um ângulo para o tratamento de determinado assunto (LAGE, 2003). Mais que de um acontecimento extraordinário ou inédito, ela decorre de uma intenção jornalística – ou problemática, no dizer de Traquina (2008, v. 2) –, e, por isso mesmo, não encontra espaço no jornalismo noticioso, cotidiano. Essa intenção jornalística pode, tranquilamente, ser comparada à intenção configuradora da narrativa, que faz a síntese de elementos heterogêneos para obter um todo repleto de sentido. Aliás, não parece haver impedimentos para que a diferenciação que Ricoeur (2010) faz entre a crônica e a história propriamente dita seja transferida para a notícia e a reportagem – guardadas as peculiaridades da história e do jornalismo e a maneira como cada um se relaciona com a ficção: à notícia, como à crônica, falta a inteligibilidade retrospectiva; a reportagem, como a história, “advém quando a partida terminou” (v. 1, p. 260), ou seja, quando as ações passam a ser descritas sob a luz de novos acontecimentos, desconhecidos dos agentes iniciais.

Antes de um aprofundamento na poética de Corações sujos, resta justificar a sua escolha, em detrimento dos demais trabalhos de Fernando Morais. Ocorre que grande parte de sua obra – Olga, Chatô, Montenegro e O mago – chegou ao público sob o rótulo de “biografia”, embora os métodos de apuração do escritor não difiram significativamente de livro para livro, seja centrado em uma personagem ou em várias, gravitando em torno de um episódio. O próprio Morais (2006) afirma que não se considera um biógrafo profissional, mas “[...] um jornalista que publica reportagens em forma de livro, que podem ser também sobre uma determinada pessoa”. Além disso, no plano textual, desconsiderando-se as soluções narrativas próprias a cada livro, poder-se-ia dizer, em concordância com os comentadores da obra do autor – resenhistas de jornais e revistas –, que tanto as “biografias” quanto as “reportagens” de Morais são lidas como “romances” ou como “ficção”.

Porém, se a biografia, enquanto gênero, já é reconhecida pela crítica literária, sem sequer ser alijada de seu direito à ficcionalidade, a reportagem ou jornalismo literário – e Corações sujos, como se viu, é definido pelos editores de Fernando Morais como a volta do autor à reportagem, depois das biografias Olga e Chatô –, é relegada à posição de paraliteratura: seu próprio nome faz soar um alarme que, aos literatos, evoca uma tentativa frustrada de cópia ou de imitação da realidade, de reprodução da linguagem desproblematizada do jornal ou da televisão. Se, por um lado, a situação é um pouco melhor nos Estados Unidos, já que não é incomum ver a biografia e a reportagem – e até mesmo o ensaio – serem estudadas conjuntamente, não se pode, por outro, falar em um avanço naquele país, já que tais obras, apesar de valorizadas, são colocadas sob a chancela da “escrita de não- ficção” ou, ainda, “escrita não-imaginativa”, o que leva a análises dicotômicas e repetitivas do tipo “conteúdo jornalístico ou verdadeiro versus forma literária” – e, também, a afirmações duvidosas como a de Mark Kramer (1995), de que a força da expressão “jornalismo literário” reside na sua “inocuidade”.

Para evitar, portanto, ingressar em outro campo minado – o das distinções das narrativas ditas “factuais” entre si –, optou-se por uma obra que, além de ter tido sua condição de narrativa “verídica” ou de “não-ficção” avalizada pelo mercado editorial e por instituições como a Câmara Brasileira do Livro (CBL), por meio do Prêmio Jabuti, teve também reconhecido o seu status de reportagem – embora a biografia, ao menos como praticada por Fernando Morais e outros autores oriundos do meio jornalístico, como Ruy Castro (O anjo pornográfico, Estrela solitária e Carmen, entre outros títulos), não se diferencie da reportagem, a não ser por centrar-se em uma única personagem. Quanto a Cem quilos de ouro e A ilha, o primeiro foi preterido em função de ser uma coletânea de textos menores – fugindo, portanto, à estrutura romanesca – e, o segundo, por ser um depoimento em primeira pessoa, repleto das impressões do repórter.11 Já Na toca dos leões não é tido como

um trabalho significativo do autor, enquanto Os últimos soldados da Guerra Fria foi lançado quando esta pesquisa já se encontrava em andamento.

11Ainda que A ilha também seja um exemplo de reportagem ou jornalismo literário e, portanto, uma narrativa, avaliou-se que o processo de ficcionalização empreendido pela obra seria mais difícil de ser demonstrado, em comparação às reportagens de Caco Barcellos e José Louzeiro. Isso não apenas em função do uso da primeira pessoa ao longo de todo o texto – e, aqui, é preciso lembrar tanto Käte Hamburger (1986), com sua diferenciação entre o sistema de referência da realidade e o sistema de referência fictício, quanto Tom Wolfe (2005), quando este fala sobre as limitações de dar, ao leitor, acesso unicamente ao que se passa na cabeça do repórter –, mas também porque o uso de cenas e a construção de personagens – que não a do próprio narrador, é claro – são incipientes no livro.