• Nenhum resultado encontrado

A verdade, o poder e a história: o diálogo entre Nietzsche e Foucault

3.3 A ANATOMIA DO DISCURSO MÉDICO: UM ESTUDO SOBRE A PESTE

3.3.4 A verdade, o poder e a história: o diálogo entre Nietzsche e Foucault

“Nietzsche, a genealogia e a história”, um dos capítulos do livro já mencionado, embora seja curto em sua extensão, é denso pela carga semântica e pragmática que são incumbidas as palavras. Dividido em cinco seções, traz a ideia de origem, de verdade, e dos próprios mecanismos que conduzem à história a fomentar um discurso próprio. As reflexões de Foucault neste ponto refletem, em um primeiro momento, seu pensamento contrário ao que acreditava Paul Rée, filósofo alemão e amigo de Nietzsche. Para o último, o pensamento, assim como as práticas atreladas a ele, é absolutamente linear. É como se existissem elementos a priori que conduzem as palavras a formarem as coisas.

Ainda nesse primeiro momento, o intelectual passa a discutir sobre a linearidade e a genealogia. Para ele, a genealogia não contradiz o desenrolar da história – que é entendida por ele como a ciência que investiga os acontecimentos – mas é contrária às perspectivas do ideal e das teleologias. Após isso, já na parte segunda do capítulo, Foucault traz à tona dois termos: Ursprung e Herkunft, ambos considerados por Nietzsche para o seu estudo.

Em um primeiro momento, Foucault tenta separar tais termos, mostrando seus desvelamentos e contradições, mesmo que ambos estejam ligados à ideia de origem. De certa forma, essa prática já demonstra o ponto nevrálgico que o autor pretende buscar nas suas reflexões. Para Foucault, Nietzsche faz a distinção desses dois termos evitando a neutralidade; à medida que eles se aproximam da sua real identidade, se afastam da sua origem – o neutro.

Com base nisso, Foucault prossegue tecendo a sua crítica. Antes de mais nada, ele vê a metafísica com certa ressalva. Para ele, é como se ela fosse responsável por proceder aos acontecimentos, como o próprio desdobramento da história como ciência, a qual coloca os fatos em formas definidas que têm desencadeamento lógico, baseando-se na causa e na consequência. Portanto, busca- se o devir ao invés do acontecimento por ele mesmo.

Sendo assim, com base em sua recusa pelo a priori, o autor considera que a verdade não está ligada à origem. Podemos pensar, em um nível mais aprofundado que a verdade, para Foucault, talvez não exista. Isto é, tal verdade não se forma na sua conjuntura mais pura, mas sim por meio do discurso, já que a prática social é discurso, bem como a constituição da imagem que se faz sobre determinado indivíduo. Ele complementa:

ela estaria nesta articulação inevitavelmente perdida onde a verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a obscurece, e a perde. Nova crueldade da história que coage a inverter a relação e a abandonar a busca "adolescente": atrás da verdade sempre recente, avara e comedida, existe a proliferação milenar dos erros (FOUCAULT, 1979, p. 13-14).

Isso se refere a uma visão positiva de mundo, o que significa recorrer à ciência histórica que se consolida no século XIX. Para ele, é como se a verdade não fosse “pura”, ou melhor, não pudesse ser constatada em sua origem pois ela é antecedida por uma série de erros; não apenas por vitórias e grandes indivíduos que formaram uma história lógica e linear. Assim, ele conclui, que haveria várias verdades ou, mais ainda, conforme nossa perspectiva, essa multiplicidade acabaria por levar a vários caminhos que não resultariam em uma verdade única; ela é inexistente como representação da própria verdade.

Foucault (1979) adverte que buscar a genealogia não é traçar uma origem primeira e negligenciar todos os episódios da história, já que esses acontecimentos não devem ser esquecidos ou apagados. Eles devem, segundo sua ótica: “os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros” (1979, p.21) mostrando, assim, a bilateralidade do poder, principalmente quando ele se dá nas formas relacionais, assim como será discutido no objeto que abordaremos posteriormente.

Na terceira parte do capítulo, Foucault retoma um dos termos que já discutiu brevemente: Herkunft. Esse nome é ligado com o conceito de proveniência, que significa que não há um passado vivo prévio; o que se dá é a junção de acontecimentos que se formam, bem como a união de todos os percalços que esses entrecruzamentos incorporam. Após isso, na quarta parte do capítulo, o conceito de Estestehung é trazido pelo autor. Para ele, essa ideia equivale à emergência. Isto é:

designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. E o princípio e a lei singular de um aparecimento. Do mesmo modo que se tenta muito frequentemente procurar a proveniência em uma continuidade sem

interrupção, também seria errado dar conta da emergência pelo termo final (FOUCAULT, 1979, p. 16).

É como se, nesse sentido, não fosse possível começar do final, há um ponto de início. Embora Foucault não admita que Estesthung seja diferente do que é entendido como origem, a palavra corrobora a sua noção de disciplina. Isto é, não há, para ele, a possibilidade de o castigo físico servir como exemplo, já que se trataria da consequência e não da causa. Assim, ao contrapor esses dois termos: Estesthung e Herkunft, ele considera que o primeiro é ligado aos hiatos, isto é, às lacunas que surgem no enfrentamento e consequente distribuição de forças. Essas lacunas possibilitam a troca de ameaças e, principalmente, formam discursos. Enquanto isso, o segundo termo se refere às marcas que esses hiatos ocasionam, moldando o corpo social formado pelos indivíduos resilientes a essas lutas.

Foucault passa então à quinta e última parte deste capítulo, que tem por objetivo definir a relação entre os dois termos citados e a genealogia. Ele traça uma crítica à ideia de “supra-história”, já que ela significa: “uma história que teria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo” (1979, p.17). Portanto, é como se ela se apoiasse em um ponto fora dela mesma, com uma noção apriorística de certo desenvolvimento linear. Além disso, crítica o historiador do século XIX: “a impossibilidade em que ele se encontra de criar, sua ausência de obra, a obrigação em que ele se encontra de se apoiar no que foi feito antes e em outros lugares o constrangem à baixa curiosidade do plebeu” (FOUCAULT, 1979, p. 20). Tal impossibilidade de criar – de rever e perceber novos fatos – seria, portanto, o fim da história? Isto porque a história se findaria nela mesma como ciência, sempre revisitando o que já se foi dito para interpretar novos acontecimentos. Não é demais nos lembrarmos de Francis Fukuyama (1992) que entende o fim da história pela dominação do capitalismo em um mundo que estava se desenvolvendo globalmente. Para ele, como esse sistema econômico se fixaria, não haveria possibilidade de existir uma lacuna que pudesse fornecer a contradição entre o socialismo e o capitalismo. Em suma, seria a falta da emergência de Nietzsche, se é que podemos considerar assim.

Assim sendo, a solução para resolver essa disparidade do discurso da história seria a própria Estentehung, já que seria ela que demonstraria os desvelamentos e lutas o que, consecutivamente, afetaria a ideia de supra-história, e se valeria de uma perspectiva antiplatônica. Embora ele considera a ciência histórica como neutra,

acredita que, para que ela se mova, é necessário a presença das paixões, das inquietudes e da própria maldade, sendo o conhecimento a única finalidade para ela. Portanto, a emergência daria conta de uma multiplicidade de histórias que se formariam nas lutas, e não na linearidade dos acontecimentos.