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3.2 A MEDICINA DA CONTROVÉRSIA: O COMBATE À TUBERCULOSE EM

3.2.1 Do contexto surgem as controvérsias

A partir do século XX, com essas noções mais internalizadas nas discussões sobre os rumos do país, medidas mais efetivas vem à tona. Órgãos próprios para o cuidado com a saúde, principalmente, são criados. Especializar, portanto, significaria ter mais controle do todo. Não só no campo médico esses órgãos foram criados. Segundo Olinto (2007), o Ministério da Educação e Saúde Pública foi um deles. A ideia seria de que, por meio da educação – e intervenções nas escolas – em primeiro plano, os projetos de higienização tivessem um apelo maior para as futuras gerações; ao passo que a saúde pública tomaria as medidas necessárias para a profilaxia, diagnóstico e tratamento das doenças que poderiam vir a ser prejudiciais para o desenvolvimento das cidades.

A doença era vista como caos. Pensar em um país no auge de seu desenvolvimento é não o ligar a doenças, mas sim a harmonia e a ordem. “Sujeira, dor, fome, contágio, anomia [são componentes de] um ambiente de impurezas” (OLINTO, 1995, p.174).

O Paraná aparece nesse cenário mesmo que tardiamente aparece em meados dos novecentos. Sua emancipação de São Paulo, em 1853, traz consigo uma carga de necessidade de modernização que deveria, aos moldes do restante do país, acompanhar a Europa. É nesse sentido que os discursos médicos passam a fomentar e apresentar soluções para a modernização da medicina e consequente modernização do estado. Nesse entremeio as mais diversas posições surgem a fim de assegurar o que seria melhor para o jovem estado que passara a caminhar com as suas próprias pernas.

Documentos oficiais, resultado de estudos, anais de medicina, revistas de medicina, entre outros materiais dão a ideia das controvérsias que se arregimentavam em solos paranaenses. Para Latour (2000) a ciência é formada por essas controvérsias. Antes de mais nada, em seus escritos, ele deixa claro que é fundamental que se analisem os processos ao invés dos produtos finais quando se trata da técnica e da ciência. Isso significa que “vamos dos produtos finais à produção, de objetos estáveis e ‘frios’ aos instáveis e ‘quentes’” (p. 39). É como se fosse necessário refletir sobre as várias transformações que guiaram a ciência antes que ela se tornasse um espectro fechado, “universal”.

Modalidades positivas e negativas são consideradas durante esse processo. O que poderíamos chamar de sentenças ou premissas são consideradas por ele como “modalidades”. Isto é, elas “modificam (ou qualificam) outra” (LATOUR, 2000, p. 40). Para ele, as modalidades positivas são aquelas que se concentram no fato mais fechado possível, sem levar em conta todos os percalços que ela passou para se constituir enquanto tal. Enquanto isso, as modalidades negativas se organizam de modo a desvelar os contextos de criação dela. É partir da sentença geral para sentenças mais particulares, responsáveis pelas controvérsias, acertos, erros e formações discursivas que surgem em sua constituição.

Nesse sentido, pensar em fato e ficção é primordial para entendermos como as modalidades se organizam. Quando há uma modalidade positiva, o fato está muito mais concreto; fechado em si mesmo. É uma sentença que apresenta uma coerência interna e pode afastar, pelo menos por hora, qualquer dúvida sobre a sua veracidade. Entretanto, quando temos uma modalidade negativa, que parte de algumas contradições, reformulações, e escolha pontual das palavras, mais temos a ficção. Pode ser uma sentença que ao tentar se justificar em diversos enquadramentos técnicos e utiliza-se de palavras não tão assertivas para se justificar, acaba por não provar muita coisa.

Entretanto, uma sentença não tem o “poder” de se estabelecer como fato ou ficção, não de maneira independente. Ela só se firmará assim de acordo com as sentenças ulteriores a ela. Só se concretizará em fato ou ficção, portanto, se houver controvérsias e pontos que justifiquem a sua permanência (ou não) na ciência. Além da estrutura interna dessas modalidades, Latour (2000) considera o próprio receptor da mensagem que essas sentenças passam. Para ele, o encadeamento dessas modalidades é fundamental para modular a própria visão do leitor.

Há mais duas vantagens em acompanharmos os períodos iniciais da construção dos fatos. A primeira é que cientistas, engenheiros e políticos estão sempre nos oferecendo rico material quando uns transformam as afirmações dos outros na direção do fato ou da ficção [...] (LATOUR, 2000, p.46)

Portanto, ao acompanhar a modalização dos fatos desde o seu início, a opinião do leitor pode variar segundo as contradições e reafirmações que aparecem durante esse processo. É como se quem produz essas sentenças queiram direcionar o leitor a um fato ou uma ficção. Assim, ao nos depararmos com um fato concreto “metade do trabalho de interpretação das razões que estão por trás da crença já está feita” (LATOUR, 2000, p. 47).

A definição do fato ou ficção deve, entretanto, ser conduzida com cautela. O fato só será aceito pela comunidade científica e pelos indivíduos leigos se for resultado de diversos debates. O conjunto de sentenças que se articulam, principalmente em sequência ulterior, contribuem para o seu grau de certeza. Esse grau dependerá também de sentenças ulteriores que a reafirmem ou a contradigam, formando as estruturas internas da ciência.

Ainda de acordo com Latour, por vezes, a voz do próprio indivíduo, em uma discussão, já não é o suficiente para tomá-la como “ganha”. É necessário que outros recursos sejam utilizados para que a opinião seja embasada com mais propriedade. Nesse sentido, há um caminho que parte da opinião para o fato. A leitura de diversas posições é o ponto central nesse exercício: “quanto mais discordam, mais científica e técnica se torna a literatura que leem” (LATOUR, 2000, p.54). É nesse campo que surge um dos importantes gêneros textuais fundamentais para concentrar essas discussões: o artigo científico.

O artigo científico é um gênero textual com modalização própria muito frequente nos mais diversos ambientes acadêmicos. Suas características são de um texto sólido, consistente, fundamentado e embasado em um ponto de vista que deve ser justificado por discussões anteriores, além de deixar espaço para novas contribuições que possam adensar o campo do qual faz parte. Nesse sentido, Latour (2000) considera três aspectos fundamentais para a consolidação do gênero e a sua respectiva presença na vida prática: a. arregimentando amigos; b. reportando-se a textos anteriores; e c. ser tomado como referência por textos posteriores.

Nas palavras do autor, o arregimentando amigos se refere a quando uma discussão já não se basta por ela mesma. É necessário que haja um referencial fora do texto para que ela ganhe força e possa fazer mais sentido. Dessa forma, recorre- se a um argumento de autoridade ou a um veículo de autoridade, os quais apresentam prestigio junto à comunidade acadêmica da qual se faz parte.

Fazer alusão a textos anteriores também é uma forma de fortalecer a argumentação. Nesse caso, o emissor faz referência a outros documentos. A falta dessa complementação faz com que a tese defendida fique vazia e mais próxima da ficção do que do fato, isso porque a primeira faz uso de poucos documentos que comprovem um ponto, enquanto a segunda se debruça sobre as mais variadas fontes que a enquadrem como um argumento lógico e internamente coeso.

Por fim, o último ponto, “ser tomado como referência por textos posteriores” (LATOUR, 2000, p.67) reflete o quanto as controvérsias são importantes para a própria progressão das descobertas científicas que há dentro de um campo do conhecimento. “Metaforicamente falando, as afirmações, de acordo com o primeiro princípio, são muito parecidas com genes: não conseguem sobreviver se não conseguirem passar para os organismos subsequentes” (LATOUR, 2000, p.67). Isto é, as gerações – denominadas pelo autor – são uma série de textos que exprimem o mesmo assunto, principalmente dialogando com as gerações anteriores e refinando premissas, a fim de que o campo se torne heterogêneo e as controvérsias auxiliem no desenvolvimento dos fatos. Latour conclui essa última parte expondo que o leitor comum se sentiria sozinho ao ter que dialogar com os textos anteriores a ele, o que faz com que tome o fato fechado como concreto, já que as interpretações de várias gerações o concretizaram como tal.

Então, consideramos que a medicina é um campo fértil para entendermos as diferenciações que o autor faz entre fato e ficção, bem como sua discussão sobre as controvérsias que formam a ciência e a técnica enquanto tal. Pensar o Paraná do XX, principalmente por meio de dois relatórios tecnocientifícos que exprimem métodos diferentes para o diagnóstico da tuberculose, bem como apresentam maneiras diferentes de trato com a doença, pode ser uma chave para que entendamos como as modalidades de ambos os discursos se formulam ao passar do século.