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III. A fé comunitária como resposta eclesial à contemporaneidade

2. A fé como conversão: Metanoia

2.3. A verdadeira reforma da Igreja: conversão e santidade

Quando falamos em conversão como um processo contínuo de mudança, de viragem, de renovação, está implícita a noção de ‘reforma’. Este conceito traz muitas ambiguidades: há mesmo quem diga que a Igreja necessita de uma reforma, isto é, de um novo Concílio. Mas qual é a essência da verdadeira reforma de que a Igreja necessita? Já está claro que, para Ratzinger, não é uma reforma inventada por nós, mas antes o acolher daquilo que Deus nos oferece, porque a Igreja é um dom de Deus e não uma invenção nossa. A tentação de substituir o «creio» pelo «nós pensamos» torna a Igreja uma instituição meramente humana395. E, como sabemos, o humano é limitado e incapaz de fazer o homem realizar-se, é incapaz de o satisfazer. Ratzinger afirma que «a reformatio, a que é necessária em qualquer tempo, não consiste em podermos remodelar sempre de novo a “nossa” Igreja como nos agrada, em podermos inventá-la, mas sim em dilatarmos sempre de novo as nossas próprias construções de apoio, a favor da luz puríssima que vem do alto e que é, ao mesmo tempo, a irrupção da pura liberdade»396. De facto, a liberdade fundamental que a Igreja nos pode dar consiste em nos situar no horizonte do Eterno, em nos fazer sair dos limites do nosso saber e do nosso poder397.

Para Ratzinger, a reforma tem um centro espiritual e, portanto, não pode vir das nossas instituições, mas sim da fé. «A própria fé, em toda a sua grandeza e amplitude, é efetivamente a reforma sempre nova e essencial da qual temos necessidade; a partir dela

394 J. RATZINGER, Un canto nuevo para el Señor, 178.

395 Cf. J. RATZINGER, Le omelie di Pentling, Liberia Editrice Vaticana, Città del Valticano, 2015,

22-30.

396 J. RATZINGER, Questões sobre a Igreja, 97.

devemos pôr à prova as instituições que nós próprios construímos na Igreja»398. Está muito difundida hoje em dia, mesmo em ambientes religiosos, a ideia de que uma pessoa é mais cristã quanto mais estiver comprometida na atividade eclesial. A este respeito, o nosso autor pensa que «pode acontecer que uma pessoa se dedique ininterruptamente a atividades associativas eclesiais e nem sequer seja cristão»399.

De facto, «a ideia de reforma degenerou-se na consciência comum e perdeu o seu sentido autêntico. Reforma, no sentido genuíno, é um fenómeno espiritual, muito próximo da conversão, e neste sentido pertence ao centro da fé cristã. Só pela conversão nos tornamos cristãos»400. Isto vale tanto para a vida do indivíduo como para a Igreja ao longo

de toda a história. «Mas quando a reforma se desvia deste contexto, do esforço pela conversão, e se espera que a salvação venha da mudança do outro e de formas sempre novas de adaptação aos tempos, então, pode até acontecer algo de útil, mas no seu todo será uma caricatura de si mesma»401.

Tudo o que se disse acima remete para a santidade, isto é, para aquela relação entre dom e missão que está patente nas palavras de Jesus: «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu» (Mt 18,3)402. O nosso

teólogo, citando um comentário de J. Behm a respeito deste texto, escreve que

«ser criança... é ser pequeno, necessitar de ajuda e ser capaz de acolher. Quem se converte, torna-se pequeno diante de Deus... pronto para deixar que Deus atue nele. As crianças do Pai celestial, que Jesus anunciou..., perante Deus são simplesmente acolhedoras. Deus dá-lhes o

398 J. RATZINGER, Ser cristiano en la era neopagana, 21. 398 J. RATZINGER, Ser cristiano en la era neopagana, 21. 399 J. RATZINGER, Ser cristiano en la era neopagana, 21. 400 J. RATZINGER, Credo para hoje, 190.

401 J. RATZINGER, Credo para hoje, 190-191.

que elas mesmas não podem dar-se... também a meta,noia é dom. É dom de Deus e, ao mesmo tempo, exigência que compromete»403.

Este simples centro da metanoia, que não se refere a “exageros heróicos”, mas nos remete para a paciência quotidiana com Deus e de Deus connosco, foi vivido amorosamente nos fins do século XIX por Santa Teresa de Lisieux. Em vez do modelo de santo, como herói de virtudes, ignorando o que é efetivamente o sentido cristão da vida, ela optou pelo “pequeno caminho” – o acolhimento e aproximação diária de Jesus. Outro exemplo é o de São João XXIII: quem lê os seus diários fica desiludido, e não pode acreditar que o homem formado numa ascese de seminário já ultrapassada é a mesma personalidade do grande Papa da renovação. É interessante notar que estes diários, iniciados ainda durante o tempo em que vivia Santa Teresinha, correspondem ao “pequeno caminho” e não ao caminho das grandezas. É justamente no perseverar neste caminho, nesta simplicidade e paciência da fidelidade quotidiana, só conseguida através de uma renovação e mudança diárias, que amadureceu uma simplicidade espiritual; esta simplicidade ensina a ver, e fez deste senhor baixo, gordo e velho uma figura bela, através de uma luz especial que dele imanava. «Aqui tudo é dom e tudo é confissão: metanoia que faz cristãos e forja santos»404.

Os santos «realmente reformaram a Igreja profundamente, não elaborando planos para novas estruturas, mas reformando-se a si mesmos […]; é de santos, e não de executivos, que a Igreja precisa para responder às carências do homem»405.

403 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 75. 404 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 76.

405 J. RATZINGER, Credo para hoje, 190; veja-se também a este respeito H. U. von BALTHASAR

– J. RATZINGER, ¿Por qué soy todavía cristiano? ¿Por qué permanezco en la Iglesia?, Ediciones Sígueme, Salamanca, 2005, 15-16.