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III. A fé comunitária como resposta eclesial à contemporaneidade

2. A fé como conversão: Metanoia

2.1. Significado básico de metanoia na Bíblia

Vimos que, para Nietzsche, o pecado e o arrependimento são invenções judaicas, às quais ele contrapunha o nobre espírito dos gregos, que descobriam a beleza até mesmo na impiedade e consideravam o arrependimento ridículo. No entanto, ao voltarmos o nosso olhar para a tragédia grega, vemos precisamente o contrário: o horror ante o poder da maldição que nem os deuses podem evitar. Olhando para a história das religiões, damo-nos conta de como ela está dominada pelo tema do pecado e da expiação, e como o homem, de diversos modos, tentou livrar-se do opressor sentimento de culpa sem nunca o ter conseguido379.

Quanto ao significado básico da palavra metanoia, o teólogo alemão chama à atenção para algumas anotações a ter em conta. Com o termo meta,noia-metanoei/n o mundo grego não se referia, como na tradição bíblica vétero e neotestamentária, a uma mudança

377 Cf. J. RATZINGER, Verdad, Valores, Poder, 51: «O sentimento de culpa, que quebra uma falsa

serenidade de consciência e que pode ser definido como um protesto da consciência contra a existência satisfeita de si mesma, é tão necessário para o homem como a dor física, qual sintoma que permite reconhecer as perturbações do normal funcionamento do organismo».

378 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 65. 379 Cf. J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 66.

radical da atitude ética, ou a uma modificação profunda da conduta. O verbo metanoei/n, no grego clássico, exprimia os significados de: «mudar de opinião, lamentar-se de algo, sentir remordimento, arrepender-se»380. O substantivo, por sua vez, tinha os significados de: «mudança de opinião, remorso, arrependimento»381. Não conhecia, porém, o sentido de

processo penitencial e de reorientação radical da existência, no sentido do Antigo e do Novo Testamentos. Assim, para o grego, os atos concretos da metanoia eram apenas atos individuais e circunstanciais, ligados ao arrependimento pontual de uma falta cometida perante si e perante os deuses. A palavra grega que mais se aproxima do sentido bíblico de «conversão» é epistrofh,-epistre,fein. Com este termo, os LXX traduzem o hebraico

šũb382.

Em Platão epistrofh,-epistre,fein designava o movimento circular, considerado o movimento perfeito, próprio dos deuses, do céu e do cosmos. No neoplatonismo, o termo conheceu uma evolução, passando a significar «o regresso da realidade à unidade, a inserção no grande círculo do cosmos, no postulado ético central»383. A partir daí, chegou- se à convicção de que para encontrar-se verdadeiramente a si mesmo, o homem precisa de um movimento global de «conversão», entendido como movimento de concentração da vida desde a dispersão na exterioridade para o recolhimento interior, onde habita a verdade384. Platão declara que, quando o homem se volta para si mesmo, no mais fundo de

si mesmo tropeça na divindade que aí há. No entanto, esta visão é um pouco idealista. A fé cristã é mais exigente, mais radical. Metanoia é obediência, é fé385. Por isso, adverte-se que:

380 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 66. 381 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 66. 382 Cf. J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 66-67. 383 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 67. 384 Cf. J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 67-68. 385 Cf. J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 68.

«A metanoia não apresenta uma atitude cristã qualquer, mas sim o ato cristão fundamental, ainda que certamente entendido desde um aspeto concreto: desde a modificação, a mudança, o fazer-se outro, novo e diferente. Para se tornar cristão, o homem tem que mudar, não de um lugar para o outro, mas, sem a menor reserva, até ao último fundamento do seu ser»386.

Ratzinger refere que, «enquanto a metanoia continuar a ser assunto de uma ética particular, não chega a ser genuinamente cristã. Porém, quando se pensa que o ser cristão depende de que se produza verdadeiramente a metanoia cristã, no sentido em que a entenderam a proclamação dos profetas e a pregação de Jesus, então é claro que esta

metanoia a meias é a razão última da crise do cristianismo atual»387.

Para ser cristão é necessário romper com a mentalidade circundante, isto é, romper com o mundo. Não se pode querer ser cristão e querer ter a aprovação do mundo. É precisamente esta a ambiguidade típica do divórcio entre a fé e a vida, esta atitude que não chega a ser a metanoia cristã, mas que busca a aprovação do mundo.

«A coragem para a rutura dá liberdade, só esta coragem dá liberdade. Esta coragem de rompimento tem um nome bíblico: metanoia. E esta é precisamente a coragem que nos falta […]. A disposição à mudança orientada para Cristo não tem nada que ver com a inconstância da cana que se inclina a todos os ventos, não tem nada a ver com aquela indecisão existencial, com aquela sugestibilidade fácil que se deixa mover em todas as direções. É pelo contrário “ser firme em Cristo”, uma “firmeza face a todas as tendências de mudança que vêm de baixo e uma suave recetividade a tudo quanto nos deve marcar de cima”. Por outras palavras: a

metanoia cristã é objetivamente idêntica à pistis (fé, fidelidade), uma mudança que não só

não exclui a fidelidade, mas, antes, a possibilita»388.

Trata-se da fidelidade ao anúncio de que a vida tem um sentido profundo. Fidelidade à Palavra feita carne, aquela Palavra que nos alcançou vinda de fora e nos indica o caminho a seguir, a direção correta. Neste sentido, «quem se converte da sua conversão, retrocede em vez de avançar. Quando se descobriu a direção correta, ou seja, a direção da

386 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 68. 387 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 70. 388 J. RATZINGER, Teoría de los Principios Teológicos, 71.

verdade […], afastar-se, desviar-se, mudar de direção já não pode ser outra coisa senão ser afastar-se da verdade»389.