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3. As críticas à existência do princípio da proibição do retrocesso e o tratamento

3.2 Uma proposta constitucionalmente adequada para a proteção dos direitos sociais no

3.2.2 O controle da constitucionalidade das restrições aos direitos sociais

3.2.2.2 A verificação da existência de uma restrição sobre o direito social

1. Num próximo passo, depois de identificado o âmbito de proteção do direito social, busca-se aquilatar se há uma restrição a esse direito e se ela foi determinada pela Constituição, se possui autorização constitucional (reserva legal295) ou se não possui autorização constitucional expressa296.

Caso a restrição tenha sido realizada pela própria Constituição em caráter absoluto, não há espaço para discussão sobre a limitação levada a efeito, como se observa do art. 7º, XXV, da CF, ao estipular a “assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas”. Nessa hipótese, o constituinte limitou a possibilidade de assistência gratuita aos filhos e dependentes até determinada idade, de maneira que a restrição a esse direito decorre da própria Constituição.

Na hipótese de o constituinte ter autorizado a restrição, passa-se a analisa-la de modo a perceber se ela pode ou não prevalecer no caso concreto. Como exemplo de restrição autorizada pelo constituinte, há a redutibilidade do salário dos trabalhadores privados mediante convenção ou acordo coletivo, conforme preceitua o art. 7º, VI, da CF, que garante a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.

2. Caso não haja autorização constitucional expressa para a restrição ao direito social, é necessário avaliar se a medida não é, à primeira vista, manifestamente indevida297 e então se analisa a prevalência do direito ou da restrição em relação aos bens jurídicos afetados.

A constatação de que uma medida é manifestamente indevida deve estar ligada a uma

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Ingo Sarlet refere que as reservas legais não configuram limitações aos direitos fundamentais “na acepção mais rigorosa do termo”, pois seriam autorizações constitucionais para que haja a possibilidade de o legislador “restringir direitos fundamentais”, mas mais adiante menciona que o “regime jurídico-constitucional das reservas legais está sujeito a rigoroso controle”, A eficácia dos direitos fundamentais..., cit., pág. 526/527. Não concordamos com a posição do autor quanto à primeira conclusão, especialmente porque ela parece contraditória com a segunda. Por isso, preferimos expor o conflito tanto em uma hipótese (restrição não autorizada) quando em outra (restrição autorizada), pois ambas ceifam o titular de um direito fundamental de seu exercício ou de parte dele e, por essa razão, devem ser vistas como verdadeiras limitações. Até porque, caso não se entenda assim, no exercício da reserva legal o legislador poderá restringir os direitos fundamentais sem que haja um controle pela jurisdição constitucional (salvo em situações extremas), já que estará no seu campo de atuação com disponibilidade quanto à restrição ao direito. De tal sorte, entender que ambas são restrições aos direitos fundamentais propicia maior proteção a eles porque é passível submetê-las ao crivo judicial quanto à sua constitucionalidade, ainda que seja clara a existência de uma maior liberdade do legislador para restringir determinado direito quando expressamente autorizado pelo constituinte.

296 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., págs. 1276/1277.

297 Jorge Reis Novais preconiza haver uma reserva geral imanente de ponderação, o que autoriza excluir determinadas situações que não estariam incluídas na proteção estatal, diferentemente do que indica a teoria dos princípios de Robert Alexy, pois para este autor, prima facie, tudo estaria incluído no âmbito de proteção de um direito fundamental.

situação de ilicitude na conduta que se busca proteger em nome do direito social. Isso significa que pode haver um direito social protegido, salvo se configurar uma atuação ilícita ou a busca de afastar uma restrição sob a invocação de uma ilicitude. Uma ação contrária ao direito não pode prevalecer no processo de controle das restrições, pois à partida excluída do ordenamento jurídica como um todo, dado que não cabe ao Estado chancelar atividades contrárias ao Direito. Ou seja, se há uma norma prevendo determinada atividade como ilícita, não se pode outra autorizar que ela seja considerada como legitimadora de restrição aos direitos sociais ou de afastamento da restrição em nome do ato ilícito.

O controle de constitucionalidade sobre uma justificativa de atuação ilícita para afastar a restrição a um direito social foi exposta no julgamento da ADI nº 2.213. Na hipótese, ainda tenha sido afastado o “princípio da proibição do retrocesso” ao caso, o que é importante, nesta altura, é a justificação apresentada pela Suprema Corte brasileira de que não se poderia chancelar o esbulho possessório, cuja prática é ilícita no direito brasileiro, para afastar uma suposta restrição a um direito social realizada pelo Estado e chancelar a atividade ilegal como expressão dos direitos assegurados pela Constituição.

São valiosas as lições do argentino Eugênio Raúl Zaffaroni298, extraídas do ensino de direito penal quando da análise da tipicidade, mas cujo raciocínio pode ser transposto na interpretação das medidas manifestamente indevidas (ilícitas). O autor sustenta que para se constatar se um fato é materialmente típico (se pode ser considerado como crime dentro do seu conceito analítico), deve haver a verificação se está presente a tipicidade conglobante, no sentido de que a conduta criminosa deve ser proibida pelo ordenamento jurídico como um todo e não apenas na esfera penal. Caso uma conduta seja permitida ou tolerada pelo Estado em outro ramo do direito, não poderia ser considerada crime para fins penais porque o ordenamento jurídico na sua totalidade a chancela. Trata-se de avaliar se num contexto jurídico global a medida é ilícita, para, então, poder dizer que a conduta pode ser considerada criminosa para fins penais.

Essa noção, mutatis mutandis, pode ser transposta para o cenário que ora se coloca. Caso uma medida seja considerada ilegal por qualquer ramo do direito, ela não poderá ser considerada como lícita para fins de justificar ou obstar o controle sobre uma restrição aos direitos sociais, na medida em que não é admitida ou tolerada pelo Estado. Essa verificação do direito conglobado para fins de excluir uma atuação manifestamente indevida é útil para excluir condutas que poderiam ter que passar por todo o processo de controle de

298 Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, pág. 472.

constitucionalidade, mesmo sendo evidentemente desarrazoada por contrariar o direito como um todo.

Com isso, os exemplos utilizados por Christian Starck para tecer críticas à teoria de Robert Alexy, ao sustentar que qualquer direito prima facie deve ser considerado como admitido pelo ordenamento jurídico até haver a incidência da restrição e, por isso, existiria a possibilidade de um indivíduo ter direito prima facie ao furto, ao homicídio e à receptação299 ficaria excluído já no primeiro momento da técnica de controle das restrições, porquanto se trata de uma conduta penalmente ilícita, não admitida ou tolerada pelo ordenamento jurídico como um todo, de modo que numa perspectiva conglobada estaria afastada como atuação possível de ser protegida ou em nome dela não se poderia valer para afastar uma restrição levada a efeito pelo Estado300.

3. Ainda na avaliação das restrições não autorizadas expressamente pela Constituição, a justificação para sua incidência sobre os direitos sociais é de grande relevância para o controle da atuação estatal301. Em que pese não seja da tradição brasileira uma dedicação sobre a exigência de justificação das afetações aos direitos fundamentais302, ela é imprescindível para que se possa levar a cabo a verificação da compatibilidade constitucional das medidas afetadoras dos indivíduos, especialmente para aquilatar a real intenção do legislador ou do administrador ao comprimir eventual direito e, dessa forma, ponderar acerca da restrição realizada sem autorização expressa para tanto303.

A comprovação da importância da intervenção nos direitos fundamentais mediante uma restrição levada a efeito pelo Estado somente pode ser aquilatada pela justiça constitucional caso esteja acompanhada da uma justificação. A mera edição de restrições aos

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Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais..., cit., pág. 329. 300

Em sentido próximo, Jorge Reis Novais, Direitos fundamentais..., cit., pág. 101, ao sustentar que deve ser excluída, à partida, como exercício do direito fundamental aquilo que é considerado como ilícito penal, em sentido material e também aquilo que fora consensual e indiscutivelmente rejeitado por inadmissível numa sociedade democrática, de modo que apresenta uma concepção restritiva mitigada em relação à delimitação do conteúdo protegido dos direitos fundamentais.

301 Jorge Reis Novais leciona que ao avaliar a justificação dada pelo Estado para afetar os direitos fundamentais ela deve ser suficientemente forte para fazer ceder o direito fundamental em causa, caso contrário será invalidada pela jurisdição constitucional, Direitos fundamentais..., cit., pág. 103.

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Mesmo com a exigência do art. 6º, da Lei 9.868/99 (que trata do procedimento para a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade ou da Ação Declaratória de Constitucionalidade), e do art. 5º, § 2º, da Lei nº 9.882/99 (que trata da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre a necessidade de o relator pedir informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou o ato impugnado, nas decisões proferidas pela Corte Suprema não se vê uma atenção à justificação dada para afetação aos direitos sociais, conforme se constata dos julgados analisados neste trabalho.

303 Veja-se a chamada “jurisprudência da crise” portuguesa acima analisada, na qual o Tribunal Constitucional sempre levou em consideração as razões apresentadas para a adoção das medidas estatais que afetaram os cidadãos portugueses, colocando-as no processo de ponderação para aquilatar a compatibilidade constitucional das medidas questionadas.

direitos sociais, ou mesmo na esfera de conformação ou revisibilidade das leis, quando desacompanhada de uma justificativa forte, pode conduzir à invalidação do ato com o argumento da inconstitucionalidade.

Dada a importância da justificação das restrições aos direitos sociais, Abramovich preconiza a inversão da carga probatória quando há retrocesso desses direitos, de maneira que o Estado, ao retroagir, gera uma presunção de inconstitucionalidade que só será afastada caso exista uma justificativa razoável para a legislação proposta304. Embora não tenhamos avalizado integralmente essa afirmação, a falta de justificação para as restrições aos direitos fundamentais deve ser levada em consideração no processo de ponderação pela jurisdição constitucional como indiciária da inconstitucionalidade, pois pesa sobre o Estado um dever de realização progressiva dos direitos sociais nos limites de suas condições econômicas.

O peso da carência de razões estatais pode variar conforme o direito atingido e a intensidade da afetação, porquanto no processo de controle de constitucionalidade a motivação do Estado para atingir os direitos sociais é de grande relevância para deixar clara a real necessidade de dar um passo atrás, sob pena de a medida ser invalidada caso não seja vislumbrada a finalidade da restrição305.

Na avaliação das causas apresentadas, portanto, a verificação da constitucionalidade está atrelada à ponderação de bens considerados para editar a restrição em detrimento daqueles bens afetados por elas. Nesses termos, leciona Canotilho, para quem é indispensável a “justificação e motivação da regra de prevalência parcial assente na ponderação”, de acordo com os princípios constitucionais, sobretudo da igualdade, da justiça e da segurança jurídica306.

É verdade que por se tratar de direitos sociais, a margem de atuação do legislador é, no mais das vezes, mais ampla, justamente pela necessidade de valoração da reserva orçamentária e das diversas opções políticas existentes para a conformação desses direitos,

304 Abramovich e outro, Los derechos sociales..., cit., págs. 102. Os autores sustentam caber ao Estado demonstrar a estrita necessidade da medida retrocessiva através da (a) existência de um interesse estatal permitido; b) do caráter imperioso da medida; c) e da inexistência de outras ações menos restritivas dos direitos em questão. E acrescentam que a justificativa do Estado no retrocesso de direitos sociais deve demonstrar que a legislação em que pese implicar retrocesso em um direito implica um avanço na totalidade dos direitos previstos, bem como devem ter sido empregados todos os recursos que dispõe e ainda assim necessita proteger aos demais direitos, Los derechos..., cit., págs. 109/110. Essa é a interpretação dada por Alessandra Giotti como uma das consequências advindas do retrocesso social, Direitos sociais, cit., pág. 150. A inversão da carga probatória também é compartilhada por Flávia Piovesan, Dignidade humana..., cit., pág. 406.

305 Vieira de Andrade, ao discutir sobre a garantia de estabilidade das situações ou posições jurídicas dos direitos sociais, assevera que em um “grau intermédio” ela produzirá efeitos sobre a necessidade de fundamentação dos atos legislativos retrocessivos “num valor constitucional que no caso se revela mais forte”, diminuindo a liberdade de conformação e a possibilidade de arbítrio legislativo, Os direitos fundamentais..., cit., pág. 378. 306 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., pág. 1240.

bem como para sua restrição. Mas isso não torna menos importante a justificativa a ser apresentada quando da afetação desfavorável pelo Estado. Impõe apenas que os motivos do legislador ou do administrador sejam considerados no processo de controle das restrições307, isso sem descurar a necessidade de máxima efetividade dos direitos sociais, pela observância dos bens jurídicos tutelados pela ordem constitucional.

As razões apresentadas ainda propiciam, na interpretação das restrições, visualizar a maximização ou a otimização da eficácia dos direitos fundamentais, mas não só em relação aos afetados pelas medidas, mas no tocante a totalidade daqueles bens que se pretende salvaguardar com a adoção delas. Ao se permitir que a jurisdição constitucional tenha a visão do todo, da realidade constitucional que a cerca, o intérprete não será seduzido para privilegiar uma só das dimensões dos direitos fundamentais, qualquer que ela seja308.

Nessa linha segue o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no Comentário Geral nº 3, parágrafo 9, ao estabelecer a necessidade de que as medidas deliberadamente regressivas devam ser plenamente justificadas em relação à totalidade dos direitos previstos no Pacto e no contexto do máximo de recursos disponíveis309.

Aliado a isso, as justificações levadas a efeito sobre os direitos sociais são necessárias porque, conforme aponta Konrad Hesse, as limitações devem ser adequadas à obtenção do objetivo perseguido310, o que somente é passível de constatação pela jurisdição constitucional caso tenha havido a exposição da real justificativa motivadora da atividade estatal contrária aos níveis dos direitos já estabelecidos.