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3. As críticas à existência do princípio da proibição do retrocesso e o tratamento

3.2 Uma proposta constitucionalmente adequada para a proteção dos direitos sociais no

3.2.2 O controle da constitucionalidade das restrições aos direitos sociais

3.2.2.3 A verificação da existência de limites à restrição ao direito social (“limites

3.2.2.3.2 A garantia do conteúdo essencial

Na categoria dos limites últimos à atuação Estatal vem elencada pela doutrina a necessidade de respeito ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais334. A ideia dessa barreira às restrições aos direitos fundamentais encontra amparo no texto constitucional alemão335 e português336, mas não está prevista na Constituição brasileira337.

Ainda assim, no Brasil, tanto no campo doutrinário quanto no jurisprudencial, são encontradas referências ao conteúdo essencial dos direitos como limites aos limites, sob o argumento da necessidade de protegê-los contra atuações do Estado que acabem com aqueles direitos mais importantes consagrados no texto constitucional, cujo conteúdo mínimo sempre deve ser respeitado em qualquer situação, por se constituir em um reduto interno,

331

Robert Alexy, Teoria..., cit., págs. 575/627 332

Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., cit., pág. 269.

333 Victor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos..., cit., pág. 99.

334 Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais..., cit., págs. 205/301; Virgílio Afonso da Silva, Direitos

fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, págs. 183/207; O mesmo autor, O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais, págs. 40/51. Jorge Miranda, Manual..., vol. IV, cit., págs. 343/352; Miranda, O princípio da eficácia jurídica..., cit., págs. 80/84. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais..., cit., págs. 282/288; Ingo Sarlet, A eficácia..., cit., págs. 536/539. Benedita Mac Crorie, Os limites..., cit., págs. 259/263. Gilmar Mendes, Hermenêutica Constitucional..., cit., pág. 241 e segs.

Canotilho, Direito constitucional..., cit., págs. 559/560. Quanto à aplicação sob o enfoque dos direitos sociais, Abramovich, Los derechos sociales..., cit., págs. 89/92. Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial como

conteúdo essencial dos direitos fundamentais, pág. 4. Patrícia Martins, A proibição do retrocesso social..., cit.,

pág. 414. Para uma análise crítica sobre a garantia do núcleo essencial, por todos, Jorge Reis Novais, As

restrições..., cit., págs. 779/798 e Os direitos sociais..., cit., págs. 190/237.

335 Art. 19, II. Sobre a previsão constitucional alemã, Bodo Pieroth e Bernhard Schlink preceituam que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais é intocável pela Lei Fundamental, no sentido de proibição, de retirar da disposição do Estado, Direitos fundamentais, pág. 95.

336 Artigo 18.º, nºs 2 e 3, da CRpág.

intransponível, do direito, alheio à atividade legislativa.

Na tentativa de explicitar o que se entende por conteúdo essencial dos direitos fundamentais são encontradas as teorias absoluta, relativa e mista338.

A teoria absoluta busca identificar esse conteúdo essencial como um núcleo duro, intransponível, determinável abstratamente, para cada direito, de modo a tornar essa parte intocável. Trata-se de um limite que o Estado não poderia, em hipótese alguma, ultrapassar, sob pena de acabar com o próprio direito, fazendo com que ele deixe de existir339.

A teoria relativa, de outro lado, parte da ideia de que o conteúdo essencial do direito é passível de verificação mediante da legitimidade da restrição, mediante o uso da técnica da proporcionalidade, com a finalidade de salvaguardar bens jurídicos mais relevantes, mais valiosos. Dessa forma, haveria afetação do núcleo essencial se a restrição ao direito fundamental não fosse legítima, o que varia conforme a situação que se analisa.

A concepção de uma teoria absoluta não encontra razão de ser no contexto até então exposto quanto aos direitos fundamentais, pois não é possível identificar um núcleo imutável em abstrato dos direitos de liberdade ou dos direitos sociais, na medida em que mesmo nas hipóteses em que já houve conformação do direito a nível constitucional é possível que haja a necessidade de compressão de determinado direito em uma situação concreta, de modo a afastar a existência de um conteúdo mínimo de todos os direitos fundamentais abstratamente considerados340.

Além do mais, a utilização de um conteúdo essencial absoluto faria com que as restrições aos direitos fundamentais que reduzissem os direitos esse núcleo duro estivessem na livre esfera de revisão pelo legislador, sem que fosse possibilitado um controle jurisdicional efetivo sobre ele, na medida em que a proteção efetivamente dada a um determinado direito estaria limitada àquela pequena parte. Isso permitiria que ao invés de garantir proteção ao preceito constitucional ele fosse praticamente reduzido ao conteúdo essencial, cujo manto protetor estaria extremamente limitado a casos extremos, na beira da sua aniquilação.

338 Ricardo Lobo Torres, O mínimo existência e o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, pág. 7. Reis Novais, As restrições..., cit., págs. 795/796. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, pág. 282. Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Direitos fundamentais, cit., pág. 112.

339 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais..., cit., pág. 282.

340 Exemplifica essa situação o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, no julgamento do HC nº 126.292, o qual apontou a possibilidade de “conformação” diversa inclusive sobre os direitos de liberdade, ocasião em que foi levada a efeito uma mutação constitucional para tornar mais estreita a presunção de inocência prevista no art. 5º, LVII, da CF, e, assim, admitir a prisão do condenado a partir do segundo grau de jurisdição. Importante registrar que essa decisão operou uma verdadeira restrição ao direito de liberdade em nome da conformação da cláusula da presunção de inocência, alterando a interpretação de que somente os cidadãos poderiam ser presos depois de transitada em julgado a sentença penal condenatória, salvo as hipóteses de prisões cautelares.

Aos defensores da teoria relativa, ela permitiria que houvesse uma compatibilização dos direitos fundamentais ou, eventualmente, desde que a restrição seja considerada legítima, de maneira a preponderar sobre determinado bem jurídico prima facie protegido constitucionalmente. E nesse controle da legitimidade da restrição seria imprescindível a observância às técnicas de restrição e aos seus demais limites. Por isso Jorge Miranda aduz que as teses relativas quanto ao conteúdo essencial confundem esse com a proporcionalidade341.

Para Ana Paula de Barcellos, o “núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõe-se como uma regra” e não como um princípio, de modo que nesse caso não há o que se ponderar ou otimizar; tendo havido violação a esse núcleo da dignidade ela será tal como se violasse uma regra342.

Juarez de Freitas indica que devem ser ultrapassadas posturas interpretativas abstratas ou presas ao conteúdo programático das normas de direitos sociais, porque eles, ao menos em um núcleo, devem ser respeitados de maneira direta e por isso não podem deixar de ser respeitados não apenas pelo legislador, mas também pelo intérprete343.

Na tentativa de superar as dificuldades das duas teorias, surgiu uma terceira: a teoria mista, cuja construção combina os elementos das duas anteriores. Conforme Ricardo Lobo Torres, ao mesclar as duas teorias antagônicas forma-se a mista, que numa eficácia negativa é absoluta quanto ao conteúdo essencial e numa eficácia positiva é relativa em relação a ele. Ocorre que a virtude dessa utilização mista é apenas de congregar os defeitos das duas teorias que lhe deram origem. Isso porque não é suficiente para proteger os direitos fundamentais, especialmente os sociais, porque permanece com a dificuldade de se sustentar um conteúdo intocável de qualquer direito amparado na Constituição, bem como por permitir que até esse núcleo mínimo o legislador tenha ampla margem de conformação, podendo reduzir os direitos sempre a um mínimo, sem qualquer controle até chegar ao seu centro.

De tal sorte, essas concepções não agregam defesa adicional aos direitos sociais pela existência de conteúdo essencial além daquilo que já está protegido pelo princípio da proporcionalidade. Essa afirmação fica mais evidente a partir do silogismo apresentado por Virgílio Afonso da Silva no sentido de que se as restrições ao atingirem o conteúdo essencial são inconstitucionais, mas as restrições consideradas proporcionais são constitucionais, é perceptível que as restrições aprovadas pelos testes da proporcionalidade não atingem o

341

Jorge Miranda, O princípio..., cit., pág. 83.

342 Ana Paula Barcellos, A eficácia jurídica..., cit., pág. 226.

conteúdo essencial344. Logo, o conteúdo essencial estaria contido na proporcionalidade e com isso sempre que uma medida restritiva for considerada constitucional por respeitar a proporcionalidade, ela não terá atingido o conteúdo essencial do direito, de modo que esse núcleo não foi capaz de conferir uma proteção extra aos direitos sociais. Na hipótese de a restrição não passar pelo confronto com a proporcionalidade ela será inconstitucional sem que seja necessário recorrer à garantia do conteúdo essencial.

A partir dessa perspectiva, Jorge Reis Novais afirma, com razão, que o conteúdo essencial pode constituir, quando muito, um elemento sinalizador da necessidade de preservá- lo no direito fundamental, tanto quanto possível, para garantia de um mínimo de conteúdo, objetivo ou subjetivo, demarcado materialmente pela dignidade humana e funcionalmente pela natureza dos direitos fundamentais enquanto trunfos contra a maioria. E, assim, essa garantia atua como fator complementar de limitação das restrições aos direitos fundamentais quando da ponderação de bens, através da exigência de preservação de uma posição jusfundamental mínima, sem que isso lhe confira um sentido autônomo345.

Ou seja, a efetiva proteção ao direito social é levada a efeito pela proporcionalidade, admitindo-se o conteúdo essencial não como uma garantia autônoma, mas apenas como um norte interpretativo quando se estiver diante de um direito fundamental sob restrição, de maneira a indicar a necessidade da preservação346, sempre que possível, de um mínimo do direito sob compressão.

No domínio dos direitos sociais a garantia do conteúdo essencial é apontada como decorrência do mínimo social (ou mínimo existencial)347. Na doutrina brasileira, Ricardo Lobo Torres aduz a ideia de que o mínimo existencial não é um valor nem um princípio jurídico, mas é o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e por isso não está sujeito à aplicação pelas técnicas da ponderação, e sim pela subsunção tal como a natureza de regra que ostenta, pois é irredutível por definição. O autor atrela esse mínimo ainda à dignidade da pessoa humana, por se tratar de uma parcela indisponível dos direitos fundamentais aquém da

344 Virgílio Afonso da Silva, Direitos fundamentais..., cit., págs. 206/207. 345 Jorge Reis Novais, As restrições..., cit., pág. 798.

346

Ao que parece esse é o sentido admissível por Ingo Sarlet ao referir que “acima de tudo, retoma-se aqui a exortação feita no início do presente item [do conteúdo essencial], no sentido de que o mais importante é que, doutrina e jurisprudência, sigam desenvolvendo parâmetros que sirvam, sem prejuízo de sua consistência argumentativa e, portanto, de sua sempre possível controlabilidade, para assegurar aos direitos fundamentais a sua máxima proteção, potencializando a noção de limites aos limites dos direitos fundamentais”, A eficácia...,

cit., pág. 538.

347 Ricardo Lobo Torres, O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos, fundamentais. Revista

Fórum de Direito Financeiro e Econômico – RFDFE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, pág. 147173, mar./ago. 2012,

pág. 147 e segs.; Virgílio Afonso da Silva, Direitos fundamentais..., cit., págs. 204/205; Jorge Reis Novais,

qual desaparece a possibilidade de se viver com dignidade348.

Ocorre que sequer essa referência do mínimo existencial dos direitos fundamentais, identificada com a dignidade da pessoa humana, é capaz de conferir uma proteção a mais aos direitos sociais. Essa concepção de irredutibilidade de uma parte desses direitos identifica-se com a teoria absoluta do conteúdo essencial e traz consigo a impossibilidade de se definir em abstrato o seu significado na ordem constitucional. Ao atrelar ao princípio da dignidade da pessoa humana não melhora a situação, pois deixa mais flexível o seu manejo, mas então torna dispensável a utilização dessa “garantia”, por estar intrínseca aos juízos de ponderação quando da afetação dos direitos sociais, conforme já apontado.

Como lembrado por Virgílio Afonso da Silva, o mínimo existencial é aquilo que pode ser realizado mediante determinadas condições fáticas e jurídicas, expressões que traduzem noções utilizadas por vezes de forma vaga, sob o abrigo da reserva do possível349.

Nesse contexto, a garantia do conteúdo essencial, ainda que sob a roupagem de mínimo existencial, não pode ser considerada uma nova proteção aos direitos sociais350, senão como critério orientador da interpretação das restrições a esses direitos, mas sem conteúdo autônomo a impedir a retrocessão, por si só, nesse campo. Tampouco é crível identificar o conteúdo essencial com a dignidade da pessoa humana, porque eventual restrição que contrarie esse princípio será inconstitucional por essa razão e não por ter afetado a garantia desse conteúdo intangível.