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3. As críticas à existência do princípio da proibição do retrocesso e o tratamento

3.2 Uma proposta constitucionalmente adequada para a proteção dos direitos sociais no

3.2.2 O controle da constitucionalidade das restrições aos direitos sociais

3.2.2.3 A verificação da existência de limites à restrição ao direito social (“limites

3.2.2.3.6 Limites materiais de revisão constitucional e os direitos sociais

A Constituição Federal brasileira prevê expressamente a possibilidade de sofrer alterações formais mediante o processo de emendas constitucionais (art. 60, da CF) ou mediante a aprovação de tratados internacionais de direitos humanos, na forma do art. 5º, § 3º, da CF.

Esse processo de reforma constitucional encontra limitações formais401, circunstanciais402 e de conteúdo. O último, que interessa para este trabalho, exige uma especial atenção nesta altura, por estar atrelado às matérias que não podem ser objeto de processo de modificação da Constituição quando visarem uma abolição dos direitos nela previstos, expressamente excluídos da deliberação derrogativa pelo legislador.

O constituinte originário indicou algumas matérias sensíveis ao contexto constitucional, que não podem ser excluídas da Constituição, como forma de manter a unidade no tempo do seu trabalho. Há uma vedação constitucional para que haja uma alteração constitucional tendente a abolir os direitos enunciados como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º), cuja proteção busca resguardar o núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário, na tentativa de preservar de quaisquer mudanças institucionalizadas. A finalidade, portanto, das cláusulas pétreas é a imutabilidade (quanto à abolição) de certas matérias, de forma a proteger as matérias mais importantes da Constituição.

As matérias que constituem as chamadas cláusulas pétreas estão arroladas no art. 60, § 4º e dizem respeito à (I) forma federativa do Estado, (II) ao voto direto, secreto, universal e periódico, (III) à separação dos Poderes e (IV) aos direitos e garantias individuais. A última hipótese é a que ostenta relevância no contexto deste trabalho, pois traz consigo discussões acerca do seu alcance, especialmente no que toca a inclusão ou não dos direitos sociais nesse núcleo duro previsto pelo constituinte originário.

é necessário (i) que o Estado tenha ensejado comportamentos capazes de gerar nos cidadãos expectativas de continuidade; (ii) essas expectativas devem ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; (iii) os cidadãos devem ter feito planos de vida tendo a expectativa de continuidade do comportamento estatal; e (iv) é necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa, conforme acórdão nº 128/2009.

401 Os limites formais de alteração constitucional exigem quórum especialmente qualificado para a aprovação de emenda à Constituição: é necessária aprovação da emenda mediante voto favorável de 3/5 dos membros de cada Casa do Congresso Nacional e em dois turnos de votação em cada uma. Ainda, é vedado que a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada seja objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (CF, art. 60, § 5.°).

402

O poder de emenda também se submete a limites circunstanciais. Proíbe-se a mudança em certos contextos históricos adversos à livre deliberação dos órgãos constituintes, como a intervenção federal, estado de sítio ou estado de defesa (CF, art. 60, § 1º).

Como já mencionado, os direitos sociais estão elencados no Título II da Constituição Federal, que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, dentro do qual estão, além de outros, os capítulos “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (Capítulo I) e “Dos Direitos Sociais” (Capítulo II).

Já ao tratar do art. 60, § 4º, IV, da CF, o constituinte elencou dentre as cláusulas pétreas os “direitos e garantias individuais”, expressão essa que não encontra correspondência exata no texto constitucional e tampouco corresponde ao título II da Constituição ou a algum de seus capítulos, razão pela qual a doutrina diverge quanto ao alcance da aludida expressão403.

A primeira interpretação trilha no sentido da necessidade de a expressão “direitos e garantias individuais” ser lida para abranger também os direitos sociais, na medida em que a Constituição brasileira não faz distinção entre os direitos de defesa e aqueles, além de a estrutura de muitos direitos de segunda dimensão ser equiparada aos de primeira, bem como porque uma interpretação restritiva excluiria a proteção das cláusulas pétreas sobre os direitos de nacionalidade e os direitos políticos404. Aliado a isso, a Constituição brasileira tem em seu núcleo essencial o princípio da dignidade da pessoa humana a irradiar proteção máxima sobre todos os direitos materialmente fundamentais, independente de sua posição formal, o que justifica que recaia um reforço especial sobre a matéria405.

De outro lado, existe entendimento no sentido de que essa interpretação extensiva não é mais adequada por contrariar aquilo que está expresso na Constituição, sem que exista um fundamento justificável de que não tenha sido a dicção legal o alcance pretendido pelo poder constituinte originário406. Argumenta-se, ainda, de que a menção a direitos individuais buscou justamente restringir a impossibilidade de atuação legislativa em um número menor de matérias, dado que se trata de uma norma limitadora da atividade do legislador e, por isso, deve ser interpretada de maneira restrita.

O Supremo Tribunal Federal ao ser confrontado com um pedido de suspensão da votação em proposta de emenda à Constituição que visava a reforma da previdência social,

403 Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional, pág. 241 e segs. Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, pág. 820. Ingo Sarlet, A eficácia..., cit., pág. 557; Gilmar Ferreira Mendes, Curso..., cit., pág. 155; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O poder Constituinte, 2014, pág. 202 e segs. Uadi Lammêgo Bulos, Curso de Direito Constitucional, 2014, págs. 416 e segs; Marcelo Novelino,

Manual de Direito Constitucional, 8ª edição, 2013, p. 108. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, pág. 51.

404 Ingo Sarlet, A eficácia..., cit., pág. 557. O Supremo Tribunal Federal conferiu amplitude maior à cláusula contida no art. 60, § 4º, IV, da CF, para abranger também o princípio da anterioridade tributária, prevista no art. 150, III, 'b', da CF, quando do julgamento da ADI nº 937-7/DF.

405 Luís Roberto Barroso, Curso..., cit., pág. 244.

que tramitava na Câmara dos Deputados e posteriormente deu origem à Emenda Constitucional nº 20/98, mencionou que a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, I e IV, da CF, apenas impedia proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais ou a forma federativa do Estado407. Mas por esse julgamento é possível retirar a conclusão de que a Suprema Corte brasileira fez uma interpretação ampliativa da cláusula pétrea dos “direitos e garantias individuais” para abranger também o direito social decorrente do regime previdenciário408

, não obstante tenha considerado a inexistência de qualquer afetação apta a afastar a tramitação da proposta de emenda à Constituição409.

Essa interpretação ampliativa da cláusula contida no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, foi admitida no referido caso pelo Supremo Tribunal Federal, mas sem uma discussão efetiva sobre o real alcance da expressão constitucional, de modo que não espancou as divergências doutrinárias sobre a questão.

Há duas perspectivas centrais para se chegar ao significado da norma constitucional do art. 60, § 4º, IV, da CF: uma delas diz respeito à própria expressão utilizada pelo constituinte; e outra, a (des)proteção das normas não consideradas como cláusulas pétreas no bojo da Constituição.

Quanto à expressão “direitos e garantias individuais”, é incontroverso não haver correspondência exata em outra parte da Constituição, mas isso não afasta o seguinte questionamento: essa expressão não ostenta um significado preciso nas normas constitucionais? E a resposta é positiva. Os “direitos” e as “garantias” possuem significação no direito constitucional, aqueles como representantes por si só de certos bens e estas destinatárias de assegurar as condições para fruição desses bens410. Já o termo “individuais”, agregado à expressão “direitos e garantias”, confere a ideia daqueles direitos de defesa do indivíduo contra a atuação do Estado. No todo, a expressão “direitos e garantias individuais” prevista na Constituição está atrelada aos bens jurídicos constitucionais voltados à defesa da pessoa do indivíduo contra o Estado e dos meios postos à disposição daquele para poder exercitar a sua atuação defensiva em face deste.

A menção do texto constitucional aos direitos e garantias individuais não está, portanto, equivocada. Tampouco pode ser tido como desarrazoado que o constituinte tivesse a

407 Mandado de Segurança nº 23.047/DF. 408

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 633.703/MG, também ampliou a garantia da cláusula pétrea para abranger a previsão contida no art. 16 da Constituição Federal sobre a anterioridade eleitoral.

409 Isso se deve porque a postura adotada pela Corte Constitucional brasileira quanto às cláusulas pétreas está em resumir a impossibilidade de proposta de emenda à Constituição que tenda a abolir – ou seja, a atingir o núcleo essencial do direito previsto no § 4º, do art. 60 – restringido a interpretação quanto ao ponto severamente, como o fez no julgamento da ADI nº 2.024-2/DF, na medida cautelar.

intenção de conferir a impossibilidade apenas de uma proposta de emenda à Constituição tendente a abolir esses direitos que são os mais importantes para os cidadãos, pois aqueles voltados contra os bens jurídicos mais importantes dos indivíduos enquanto tais, na esteira da própria dignidade da pessoa humana.

Até porque, ao se ampliar as cláusulas pétreas para além do texto constitucional, criar- se-á uma limitação aos poderes do legislador mediante uma interpretação às normas constitucionais, sobre as quais não há um controle objetivo, em desrespeito à própria autonomia da atividade legislativa, cuja base está alicerçada na vontade do povo e na própria noção de democracia.

Mas essa conclusão leva à segunda indagação: então os direitos sociais, os direitos e nacionalidade e os direitos políticos podem ser abolidos pelo legislador? E aqui a questão passa pela proteção das normas constitucionais que não estejam arroladas como cláusulas pétreas.

Não se pode perder da retina que as cláusulas pétreas têm a pretensão de obstar proposta de emenda à Constituição que tendam a “abolir” os preceitos elencados como tais. Ou seja, qualquer outra proposta menos ampla que a abolição (leia-se, extinção completa, com perdão da redundância) não é passível de ser obstada, de modo que a proteção conferida pelas normas inseridas no art. 60, § 4º, da CF, é extremamente restrita. Aliás, foi isso que decidiu o Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 23.047, ao limitar essa proteção ao núcleo essencial dos direitos previstos naquele dispositivo legal. Vale dizer, não haver a abolição do instituto do ordenamento jurídico, não contrariou a cláusula pétrea.

A partir dessa concepção muito restrita da proteção das cláusulas pétreas, vê-se que a grande maioria das propostas de emenda à Constituição Federal sobre essas matérias não poderão ser barradas enquanto propostas que não as eliminem completamente. Isso significa que os projetos de modificações da Constituição podem ser votados e, consequentemente aprovados, o que não significa que sejam constitucionais e que não possam ser afastadas do ordenamento jurídico.

O que ocorre é que eventuais alterações constitucionais que não sejam abolicionistas quanto aos direitos e garantias individuais (para ficar restrito ao art. 60, § 4º, IV, da CF) e todas as outras emendas à Constituição (sobre direitos sociais, de nacionalidade, etc.) poderão passar pelo crivo do controle de constitucionalidade realizado pela jurisdição constitucional. Tanto é que não há discussão no campo doutrinário e jurisprudencial brasileiro acerca da

possibilidade de controle de constitucionalidade sobre as emendas constitucionais411.

E nesse controle é aplicável a forma aplicável a todas as restrições aos direitos sociais que ora se propõe e, com muito mais razão e intensidade, por se estar alterando o próprio texto da Carta Constitucional.

Como resultado, vê-se que os direitos sociais não estão desprotegidos como sustenta a tese ampliativa do conteúdo das cláusulas pétreas, na medida em que o fato de aqueles direitos não estarem inseridos no art. 60, § 4º, IV, da CF, não afasta o controle judicial sobre eventual alteração constitucional de suas normas. O que apenas não se pode evitar é que haja uma proposta de emenda tendente a abolir esses direitos. Mas caso ela seja levada a efeito, sem qualquer discussão, ela será considerada inconstitucional por violar a proporcionalidade e os demais princípios constitucionais.

De tal sorte, ainda que os direitos sociais não estejam incluídos no rol das cláusulas pétreas, é plenamente possível o controle de constitucionalidade sobre quaisquer medidas que venham afetar esses direitos elencados na Constituição, de maneira que eles estão suficientemente protegidos por ostentarem natureza de direitos fundamentais.