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A vigilância sobre os livros e o controle do letramento

No documento Marcos Roberto de Faria (páginas 59-67)

1.2. A campanha pedagógica contra-reformista

1.2.2 A vigilância sobre os livros e o controle do letramento

A partir de 1592, para dar combate ao poderio das redes de livrarias protestantes, o papado preocupou-se em assegurar uma difusão rápida e segura dos textos doravante oficiais. Assim, de acordo com Julia, os textos conciliares foram imediatamente adotados nos

territórios dominados pela Coroa espanhola (JULIA, 2002, p. 82). Em 1612, o índex publicado pelo inquisidor Sandoval proibiu “a Bíblia e todas as suas partes impressas ou manuscritas em qualquer língua vulgar que seja”, mas também “os sumários e compendia, mesmo quando forem de ordem histórica, da Bíblia ou dos livros da Escritura sagrada, escritos em qualquer idioma ou língua vulgar” (apud JULIA, 2002, p. 84).

Assim, segundo Julia, a leitura dos textos não era autorizada a todos. Em 1651, Nicolas Le Maire publicou O santuário inacessível aos profanos ou A Bíblia proibida ao vulgo. Nesse livro, afirmava que “uma das práticas mais importantes da Igreja (...) consiste em ocultar os mistérios aos indignos e distanciar os profanos do santuário”. Para o autor, o “vulgar” não era somente “a borra do povo que se arrasta sob os pés dos outros”; compreendia também “os soberbos, os impuros, os ignorantes, os fracos e curiosos, os indiscretos, os imundos”. A leitura não era nem “para os artesãos e as mulheres” nem “para toda espécie de pessoas de qualquer condição”. Nicolas Le Maire salientava ser necessária humildade de não ler “sem mestre nem intérprete”. Portanto, a leitura não era “necessária e nem mesmo útil a todos” (apud JULIA, 2002, pp. 86-7). Tinha-se, portanto, a circulação de um padrão culto de leitura no século XVII: o tipo do discreto42, a que se opõe o tipo constituído como vulgar.

Jean Hébrard (2000b) observou que a Igreja Católica, a partir do Concílio de Trento, deu à escola e às instituições escolares, fundadas pelas novas congregações docentes, um impulso tal que era impossível reconstruir uma história da cultura escrita sem encarar as

42 Hansen (2001a; 2002b) se reportou à obra El discreto, de 1646, do jesuíta espanhol Baltasar Gracián, que foi padre da Contra-Reforma, na qual se tratou da vida sob o ponto de vista da morte e dos fins últimos, prescrevendo que a educação era uma arte que preparava o discreto para morrer bem. “Etimologicamente, o substantivo discreto, como em ‘o discreto’, vem do particípio passado do ‘discernir’. O termo significa a qualidade intelectual do juízo capaz de penetrar no mais intrincado dos assuntos, com perspicuidade ou perspicácia, para distinguir o verdadeiro do falso e estabelecer o meio-termo justo que é próprio da prudência. A discrição relacionava-se intimamente ao talento intelectual da invenção, o engenho, definido nesse tempo como um talento natural onde convergem retórica e dialética, ou seja, capacidade lógico-analítica da avaliação dos assuntos, como juízo dialético, que se acompanha de formas sintéticas ou agudas de expressão. Como uma categoria central dos Exercícios espirituais, de Inácio de Loyola, no mundo católico dos séculos XVI e XVII a discretio significava a capacidade lógica e ética de discernimento do juízo aconselhado pela luz natural da Graça inata” (HANSEN, 2002b, pp. 64-65 – nota). Segundo o autor, o discreto, “enquanto não morre, aprende a controlar as paixões, integrando-se virtuosamente no ‘corpo místico’ da monarquia absoluta orientada pela ‘razão de Estado’. Nela, a liberdade individual é a ‘servidão livre’, doutrinada por Suárez, ou submissão à hierarquia, na qual a posição se deduz da forma de representação verossímil e decorosa aplicada às várias ocasiões. É a educação que fornece tal conhecimento e suas pragmáticas. O discreto segue a progressão dos estudos do Ratio studiorum...”. Desde menino, o discreto se prepararia para entrar no mundo da Corte, dedicando-se inicialmente ao estudo de línguas, com as quais se formaria e informaria. “Aprende ‘duas universais’, o latim e o espanhol, e outras, ‘singulares’, grego, italiano, francês, inglês e alemão. Depois, dedica- se à história, definida ciceroniamente como magistra vitae, mestra da vida”. A memória do discreto era definida como uma parte da prudência; esta, por sua vez, seria virtude própria de príncipes e repartida com muita avareza pela natureza. “Se a muitos deu grandes engenhos, a poucos conferiu grande prudência. Assim, a educação jesuítica ordenada pelo Ratio studiorum ensina a adquiri-la no exercício dos atos de uma educação de letras,

modalidades da sua escolarização. Assim, “a alfabetização universal dos cristãos43 foi considerada necessária após o Concílio de Trento para transmitir a ciência da salvação” (HÉBRARD, 2000b, p. 37). A partir do século XVI, num mundo onde as igrejas estavam divididas e os dogmas eram objeto de guerras sem piedade, não bastava mais, para formar um cristão, batizá-lo no seu nascimento, na comunidade religiosa à qual pertencia. Por isso, de acordo com o autor, desenvolveu-se um modelo de relação com a escrita nas pequenas escolas. Era preciso formar o cristão, quer dizer, instruí-lo nas verdades da sua religião. Para isso, era necessário fixar a “letra” da doutrina e fazê-lo memorizar exatamente, de maneira que não se considerassem verdadeiras as proposições heréticas ou sacrílegas (HÉBRARD, 2000b, p. 43). Ou seja, para o autor, ao considerar esses dados, a universalização da escrita ganha um fundo religioso, pois “o sermão ou a catequese oral dominical não são mais suficientes para assegurar a formação cristã” (HÉBRARD, 2002, p. 21).

Para fixar a “ciência da salvação” em fórmulas que todos poderiam “confessar”, os grandes reformadores protestantes, e depois os bispos católicos, escreveram catecismos44.

Esses manuais eram primeiramente guias para os que ensinavam, nos quais as orações e os principais elementos da doutrina eram apresentados sob a forma de perguntas e respostas alternadas. Esse ensino oral (escutar/memorizar/recitar) era uma primeira iniciativa à cultura escrita, porque o pastor devia fazer decorar “letra por letra” um texto escrito, impresso, estável. Um século depois, o catecismo não era mais o “livro do mestre”, mas um livro do aluno (HÉBRARD, 2000b, p. 44).

Para Hébrard, no entanto, a Igreja não fez da alfabetização um valor em si. “Saber ler ou, sobretudo, reler um corpus limitado de textos, pronunciados muitas vezes nos rituais, parecia um bom meio de imprimir nas consciências das crianças uma marca tão mais indelével quanto mais precoce” (HÉBRARD, 2000b, pp. 44-5). Assim, no século XVII, vários modos heterogêneos de relação com a escrita coexistiram nas cidades, enquanto no campo o analfabetismo permanecia geral.

Para Hébrard (1990), com as Reformas (protestante e católica), os dispositivos de transmissão dos saberes elementares da cultura escrita pareceram se deslocar para as camadas

artes e teologia a ser complementada pelo exercício das armas”. Tal educação reeditava um mito heroico e fazia

da vida uma obra de arte (por exemplo, com os Exercícios espirituais, de Loyola) (HANSEN, 2001a, pp. 36-40). 43 Pareceu-me que aqui também devem ser incluídos os padres, pois, de acordo com Burke (1997), com base nos registros das visitas episcopais nas áreas rurais da Toscana e Lombardia, nos séculos XV e XVI, existem evidências de que alguns padres eram “illiterate”, enquanto, sobre outros, comentava-se que “nada sabiam”. Outros não possuíam breviários, e lhes era dado um mês para que os adquirissem, e a um padre analfabeto foi ordenado que aprendesse essas habilidades básicas até a Páscoa e que fosse suspenso de suas funções até que o fizesse (BURKE, 1997, p. 27).

44 Podem-se acrescentar os catecismos escritos por jesuítas. Destaco o de Anchieta, usado já no século XVI como instrumento fundamental da catequese indígena. A respeito desse tema, conferir o instigante estudo de Agnolin (2007).

sociais que até aí não os utilizavam nem tentavam adquiri-los. No contexto violento das conquistas e reconquistas religiosas, nas quais as camadas mais populares do corpo social tornavam-se progressivamente o alvo, a escola era agora uma arma. Nesse sentido, o Concílio de Trento está na origem de uma reflexão sobre as formas que deve assumir a catequese e sobre sua articulação com a escolarização (HÉBRARD, 1990, p. 69). Quis-se ver, assim, na Reforma católica, a origem de um modelo de escolarização centrado sobre o “apenas ler”, em oposição ao esforço de alfabetização mais completa dos protestantes. Por outro lado, “a formação cristã tal qual a pensa Lutero não organiza nem a alfabetização, nem a fortiori a escolarização das crianças. Mas ela implica uma familiaridade preliminar com a escrita...” (HÉBRARD, 1990, p. 86).

Para os padres conciliares, o caminho, no entanto, foi diverso: para eles, era urgente melhorar o recrutamento e a formação dos clérigos. Nessa perspectiva foram feitos os primeiros esforços de aperfeiçoamento da catequese católica: quando o concílio tridentino decretou a redação de um catecismo oficial – o Catecismo romano –, foi a língua latina a escolhida e o leitor visado continuava sendo o vigário em sua paróquia45.

Carlos Borromeu assumiu, entre 1562 e 1566, o empreendimento do Catecismo romano. No entanto, antes dele, outros catecismos católicos tinham já aparecido, destinados aos fiéis e crianças. Por exemplo, o de Pedro Canísio, destinado aos alunos dos Colégios jesuítas. Porém, em relação aos fiéis, a Igreja Católica permaneceu particularmente reservada quanto à utilidade e eficácia de uma catequese que utilizasse o suporte livro. Duas razões principais explicavam esta reticência. Uma delas era propriamente teológica (“a fé vem do ouvido”) e implicava que o pregador fosse um intermediário obrigatório entre a Escritura e os fiéis. A outra era mais conjuntural: o mal protestante estava completamente ligado à difusão da imprensa. Para os padres conciliares a catequese continuava presa aos modelos antigos, nos quais prevalecia a transmissão oral dos saberes. Ela não era concebida imediatamente como devendo se articular com a aprendizagem da leitura ou com a escolarização (HÉBRARD, 1990, pp. 92-4).

45 Diferentemente dos protestantes: o calvinismo, por exemplo, em 1533 na cidade de Genebra, por meio de Olivétan, um primo de Calvino, fez imprimir um opúsculo de 152 páginas que poderia ser o primeiro manual escolar protestante. Escrito em francês, ele o intitulou “L’instruction dês enfants contenant la manière de prononcer & escrire em françoys. Lês dix commandemens. Lês articles de la Foy. L’oraison de Iesus Christ. La salutation angelique. Avec la declaration d’iceux. Faicte em manière de recueils, dês seulles sentences de l’escriture saincte... Já se encontram aí as características da catequese reformada e sua maneira bem específica de relacionar o saber doutrinal e a Escritura – é o objeto de ‘declarações’. Observa-se aí também o deslocamento da língua religiosa e, por consequência, da alfabetização no latim para a francesa” (HÉBRARD, 1990, p. 91). Pois “o francês era a língua oral e escrita da vida social, ao contrário do latim da Igreja” (HÉBRARD, 2000b, p. 46).

De acordo com o modelo de catequese proposto por Borromeu, por exemplo, a lição “do objetivo cristão” compunha-se de algumas perguntas: Por que conhecer a Deus? Por que amar a Deus? Por que servir a Deus? Em que estado devemos servir a Deus? A questão “por que conhecer a Deus” exigia três respostas: Deus é um ser eterno, é todo-poderoso, é pai e juiz. Cada uma dessas respostas era desenvolvida em um longo comentário. Uma lição durava cerca de uma hora. As crianças eram interrogadas sobre as questões e deveriam memorizar as respostas (HÉBRARD, 1990, p. 96).

Roma tinha, pois, várias estratégias de controle e uniformização das práticas católicas pelo mundo. Destaco, por fim, um aspecto que penso ser fundamental para a história da educação: a fundação de seminários e a formação do clero. De acordo com os apontamentos de Julia (2002), o Concílio de Trento havia convidado cada bispo a instituir em sua diocese um seminário encarregado de recolher e educar os futuros candidatos às ordens sagradas. Para o autor, o imenso esforço pedagógico da Contra-Reforma visava a fazer dos membros do clero paroquial homens de estudo e de livros (JULIA, 2002, p. 91).

Outra maneira que Roma usou para uniformizar as práticas – e, consequentemente, vigiá-las – eram as conferências eclesiásticas46. Essas objetivavam fomentar, no seio do clero, um trabalho intelectual comum e a produzir um discurso e uma prática comuns. Tratava-se de reuniões periódicas nas quais eram tratados assuntos dogmáticos, a Sagrada escritura e matérias relativas ao exercício do ministério sacerdotal47. À medida que os seminários eram implantados, elaborava-se toda uma literatura religiosa. Redigida pelos próprios padres (jesuítas, oratorianos e outros), esta literatura cresceu porque, nas dioceses e províncias, os bispos dispunham de um privilégio geral para mandar imprimir os livros usados por sua diocese. Assim, de acordo com Julia, a Bíblia e o Novo testamento em latim, a Suma, de São Tomás, as Vidas dos santos, a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, eram encontrados em diferentes impressões, tamanhos e preços (JULIA, 2002, pp. 92-4).

Para o autor, restava, ainda, perguntar:

O que fazem os párocos e vigários de suas leituras? Para retomar a excelente fórmula de Michel de Certeau, poderíamos dizer que a maioria deles “fabrica” uma Igreja, organizando as práticas ortodoxas e eliminando as superstições populares. Educadores, eles tornaram-se pouco a pouco os “burocratas de uma ideologia religiosa” (JULIA, 2002, p. 97).

46 Na Companhia de Jesus, essas Conferências recebiam o nome de Congregações Provinciais.

47 No Brasil, no entanto, especificamente com relação aos jesuítas, parece-me que, a partir da leitura que fiz das atas de suas congregações, o efeito foi contrário: ou seja, eram exatamente nessas reuniões que os padres apresentavam suas posições, nem sempre de acordo com as de Roma. No decorrer do texto, ver-se-á como isto se deu.

Bem, mas como a campanha pedagógica contra-reformista foi recebida na Colônia? De acordo com Hansen (1999), “a história literária não é mais uma evidência”. Por conseguinte, no século XVII luso-brasileiro, “não funciona necessariamente a oposição de alfabeto/analfabeto, que costumamos generalizar para todas as épocas como uma história natural da constituição do sentido” (HANSEN, 1999, p. 169). Assim, no caso de Portugal e sua Colônia, fatores como a opção católica pela transmissão oral da traditio canônica, a difusão dos padrões cortesãos da agudeza e da discrição, a interpretação providencialista dos eventos históricos e das coisas da natureza etc. “deveriam bastar para nos impedir de generalizar a concepção de alfabetismo pela qual as representações são sempre apropriáveis segundo o modelo do texto escrito ou do livro” (HANSEN, 1999, p. 170).

Nesse sentido, para os jesuítas que atuavam na Província do Brasil, por exemplo, o processo educativo se dava por meio de vários recursos: as representações teatrais, as procissões, a pregação, as aulas, as Visitas pastorais etc. No decorrer desta tese, em vários momentos se ressaltará essa questão. Por isso, vejo que é fundamental pensar do que se está tratando quando se fala em educação nesse período. Assim, mesmo quando, neste texto, por meio dos documentos de que faço uso, não trato diretamente de conceitos como escola ou práticas escolares, ou ainda de uma educação formal como estamos hoje acostumados, ao me referir, por exemplo, às Visitas feitas à Província do Brasil, trato de questões, por assim dizer, educativas, porque estão inseridas num programa civilizatório, no qual a visão do padre é marcada por uma maneira correta de viver: cristã, católica, europeia, civilizada etc. Isto porque, da mesma forma que não se pode separar religião e política no período, também não se pode fazer aqui um trabalho de história da educação separado desse modelo civilizatório.

Da mesma maneira, de acordo com Hansen,

os discursos que hoje lemos como literatura, segundo critérios de autoria,

autonomia estética, originalidade, unidade e coesão estilística, não eram literários nem necessariamente legíveis. É o caso da oratória sacra e da poesia satírica, produzidas para fins utilitários e polêmicos e inicialmente dirigidos à audição (HANSEN, 1999, p. 170 – grifos do autor).

Cabe apontar, ainda, que, na medida em que se estabeleceu um cânone, o que estava fora dele era considerado errôneo ou periférico ou, ainda, no caso desta pesquisa, pecaminoso e diabólico. Por isso, é relevante destacar que, não obstante a “modelização” sutil e educativa da “pedagogia” da Contra-Reforma, há que considerar também as consequências das determinações contra-reformistas em terras brasílicas e, nessa direção, o papel repressor desempenhado pelos jesuítas em relação aos costumes e crenças não-católicas na sociedade

colonial. Esse papel repressor dos jesuítas foi uma importante fonte de conflitos entre estes e os indígenas, por exemplo48.

É necessário frisar, contudo, que, para O’Malley (2004), o século XVI marca a grande mudança na catequese que lhe tinha sido atribuída durante longo tempo. Os jesuítas apareceram justamente quando esta mudança estava ocorrendo. Para o autor, a mudança da catequese no século XVI foi essencialmente dupla:

Primeiro, o que fora anteriormente apenas a preocupação de poucos indivíduos e dos círculos da elite explodiu em agitação e ação, que eventualmente tocaram todas as camadas da sociedade. O ensino do catecismo tornou-se um empreendimento organizado mais sofisticadamente do que jamais o fora em épocas anteriores. Mudou-se do íntimo do coração para o espaço público. A máquina de impressão e a nova fé na educação, que caracterizaram aquela época, inflamaram a mudança e deram-lhe muito de seu caráter. O entusiasmo para a catequese fazia parte da “guerra contra a ignorância e a superstição” que ambos, protestantes e católicos, combatiam tão implacavelmente (O’MALLEY, 2004, p. 185).

Nesse sentido, o autor lembrou que a catequese na Companhia de Jesus teve importância fundamental. Assim, por exemplo, as Constituições determinavam aos plenamente professos, como parte de seu voto de obediência, que dessem “cuidado especial à instrução das crianças”. A primeira Congregação Geral da Companhia aprovou obrigar os professos a ensinar o catecismo e sustentou a posição lembrando que Loyola uma vez os obrigara a ensinar por um período contínuo de 40 dias (O’MALLEY, 2004, p. 185).

De acordo com Agnolin (2001), nos seus catecismos tupis, os jesuítas produziam discursos dirigidos aos índios (aldeados): eles operavam com conceitos e categorias gramaticais, retóricas, teológico-políticas e metafísicas que não existiam nas línguas das culturas indígenas (brasileiras), as quais eles utilizavam para catequizar. De fato, para realizar esta difícil tarefa, produziram uma “língua geral da costa” que tinha a função de se tornar um ágil instrumento de tradução, por meio de dois aparatos externos à cultura que utilizavam: a estrutura gramatical latina e os modelos de discurso usados nos catecismos ibéricos (AGNOLIN, 2001, p. 59).

Cabe perguntar, entretanto: de onde vinha o interesse tão acurado da Igreja pela alfabetização? Destacando esta questão, Burke, ressalta que, “do ponto de vista da Igreja, o

48 Esse trabalho faz uso de fontes que revelam o caráter repressor da ação do padre nas aldeias, por exemplo, no modo como eram aplicados os “castigos” aos índios. Tais fontes não são “ortodoxas” e muito menos publicáveis a um grande público, no sentido de que as negociações e casuísmos que aparecem nelas são censuradas no próprio documento, escondendo-se o nome do sujeito “pecador”, por exemplo. Mas penso que estes papéis revelam muito mais do que os documentos e decretos oficiais do período poderiam revelar. O leitor perceberá, nesse sentido, que a pesquisa não discute com profundidade o Ratio studiorum, porque não apareceram referências a este documento nas fontes que pesquisei e, acima de tudo, porque o presente trabalho se interessa pela realidade da Colônia, com suas práticas e negociações, bastante distantes da ortodoxia romana.

analfabetismo incentivava a superstição” (BURKE, 1997, p. 29). Por outro lado, de acordo com o autor, os leigos alfabetizados também eram um problema aos olhos da Igreja. Havia uma preocupação de que se entregassem à heresia em consequência de terem lido os livros errados. Por volta do ano de 1530, um padre chegou a declarar que “todas as pessoas alfabetizadas são heréticos” (tutti i literati siano heretici). Dessa forma, a Igreja estava presa a um dilema: teria um problema se incentivasse a difusão da alfabetização, e outro, se não o fizesse. Seus líderes parecem, no geral, ter optado pela difusão da alfabetização, mas de forma controlada. Exemplo disso foi o já citado Carlos Borromeu, arcebispo de Milão no final do século XVI, que incentivou as “escolas de doutrina cristã” (BURKE, 1997, p. 29).

Por isso, de acordo com Burke, tendo optado pelo incentivo à alfabetização, a Igreja sabia da necessidade de controlar os instrumentos de comunicação, em especial por meio da investigação de mestres-escolas, a quem era pedido que assinassem profissões de ortodoxia religiosa. A fim de supervisionar e controlar as crenças, a Igreja instituiu vários mecanismos. Dentre eles, Burke citou os “atestados de comunhão”. Veja-se:

A confissão e a comunhão anuais eram um dever dos leigos. Durante a confissão, a

No documento Marcos Roberto de Faria (páginas 59-67)