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A VIOLAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO

LITERATURA FAMÉLICA

4. A LITERATURA FAMÉLICA DE RACHEL DE QUEIROZ

4.3 A VIOLAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO

A seca ensinou à humanidade grandes lições na relação entre o homem e a natureza: seja pelo desmonte da agricultura ou a relação de algumas populações em lidar com um regime de escassez de alimentos. Daí a importância de se pensar bases de uma política de segurança e soberania alimentar para que cada comunidade ou nação possam produzir e gerenciar sua comida de modo a não ficar tão vulnerável a embargos climáticos. O sertão de Rachel de Queiroz sofreu com a falta de alimentos e também de políticas que assegurassem o direito à alimentação.

A seca trouxe à tona miséria, sangue, conflitos. Em várias passagens a autora não silencia diante dos governantes, culpando-os pela situação catastrófica que afetava o povo oprimido. A imagem da jovem leitora solitária é a matriz da organização formal da obra; a partir de Conceição o enredo vai se moldando numa unidade de sentido. Ela é a personagem que imita a escritora, não apenas pelas proximidades literárias ou as leituras sobre a pedagogia, mas pelo princípio de mover os caminhos sociais: Rachel de Queiroz projeta na protagonista meios para subjetivar-se e trazer à tona às experiências da fome vistas por ela, e mais do que isso, denunciá-la como iniquidade social. As palavras de Josué de Castro ressaltam que a fome é hierárquica, por isso nem todos foram atingidos por ela, mas, o fato é que todos foram submetidos a um regime diferente ao que tinham antes da grande seca. A seca, portanto, marca um período na história do sertanejo não apenas de carências, mas também de descaso político-social.

Ao analisar a situação de vulnerabilidade, pobreza e miséria face à insegurança alimentar presente na obra, é possível notar o cenário descrito por Rachel retratando o Brasil carente de uma política de alimentação e combate à fome. Apenas com Josué de Castro, 15 anos depois da publicação de O Quinze, foi que os primeiros inquéritos sobre fome e subnutrição evidenciaram o quadro

brasileiro110. Nessa época, as questões governamentais eram voltadas na

tentativa de amenizar os efeitos do clima e não a questão alimentar, como mostra um estudo realizado por Campos (2014) que tenta remontar os períodos de secas e o envolvimento de políticas públicas no semiárido111.

Segundo o autor do estudo a periodização foi organizada em cinco fases, a terceira delas chamada de a hidráulica da solução (1877-1958) foi o primeiro posicionamento efetivo do governo central para criar uma política de redução da vulnerabilidade do semiárido às secas. Dentre as propostas, estava a construção do açude do Quixadá para melhorias na agricultura e no desenvolvimento local. As secas agrícolas persistiram, porém os impactos na economia e nas populações estivessem relativamente menores, não significou que as pessoas tivessem acesso e garantias à alimentação regular e de qualidade, como bem afirma Josué de Castro.

A família de Chico Bento não representa um caso isolado da época. Estima-se que na capital Fortaleza um amontoado de 8 mil pessoas estava na mesma situação. Se as ações contra a seca não foram efetivas para conter a situação dos famintos e manter a organização outras diligências deveriam ser tomadas. Isto é, sertanejos que partiram para Fortaleza, o governo local precisava tomar uma atitude para que a grande leva de retirantes não afetasse a ordem vigente e nem os interesses da elite. A resposta em decorrência do grande fluxo migratório foi a criação dos campos de concentração112. A obra

retrata a situação do Alagadiço, o que seria o “auschwitz cearense”

E, sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e viram levados através da praça da areia, e andaram por um calçamento

110 SOUZA, Nathália Paula de et al. A (des)nutrição e o novo padrão epidemiológico em um

contexto de desenvolvimento e desigualdades. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 7, p. 2257-2266, Julho 2017.

111 CAMPOS, José Nilson B. Secas e políticas públicas no semiárido: ideias, pensadores e

períodos. Estud. av., São Paulo, v. 28, n. 82, p. 65-88, Dezembro 2014.

112 O propósito do campo de concentração era evitar que os retirantes chegassem a Fortaleza,

trazendo “o caos, a miséria, a moléstia e a sujeira”, como informavam os boletins do poder público à época.

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pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, ascendendo fogo.

[...] Chico Bento olhava a multidão que formigava ao seu redor. Na escuridão da noite que se fechava, só se viam vultos confusos, ou alguma cara vermelha e reluzente junto a um fogo. Tudo aquilo palpitava de vida, e falava, e zunia em gritos agudos de meninos [...] E estendendo a vista longe, até aos limites do Campo de Concentração, onde os fogos luziam mais espalhado, o vaqueiro sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe oferecia a mulher, e procurando quebrar entre os dedos um pedaço de rapadura, murmurou de certo modo consolado: — Posso muito bem morrer aqui; mas pelo menos não morro sozinho...113

Estas ações foram urgentes e necessárias para o governo da época como garantia de que não houvesse qualquer insurreição do homem flagelado, desesperado de fome e que o mesmo permanecesse submisso à sua realidade hostil. Um vasto campo de cajueiros e mangueiras, ainda que sem qualquer condição infra estrutural, onde famílias inteiras de flagelados se abrigavam do relento nas copas das árvores ou em barracas rudimentares sem conforto mínimo ou qualquer privacidade. As condições sanitárias eram deploráveis, a ração (única comida ofertada) não atendia à demanda da população e a proliferação de doenças e desfechos fatais eram uma constante, já que não havia serviço de saúde disponibilizado pela capital para a população. O campo de concentração do Alagadiço fugiu completamente aos objetivos de seus idealizadores e passou a ser um local onde a promiscuidade era patente. A falta de moralismo como saques e assassinatos eram uma constante, assim como o adoecimento psíquico grave, visto que foram mencionados vários casos de perda total da razão e de altas taxas de suicídios.

O Quinze possibilita uma reflexão sobre a evolução que o Brasil sofreu

entre os anos de 1915 até os dias atuais, no tocante das políticas públicas voltadas para as causas sociais e, sobretudo, veiculadas à questão da alimentação como um direito básico e igual para todos. A narrativa de Chico Bento prático daqueles que estão às margens de uma vida sem dignidade, refletindo a imagem de uma população brasileira que não tinha meios para vencer a situação de extrema precariedade alimentar. Nos dias de hoje, grande

parte dos homens, mulheres e crianças possuem meios para terem acesso a um alimento de qualidade e em quantidade suficiente, sendo assegurados pelas políticas e ações governamentais da SAN. Com esta evolução, mudanças ocorreram no cenário brasileiro e, atualmente, por causa das decisões políticas, o Brasil está fora do mapa da fome no mundo, o que confirma assim a afirmação de Josué de Castro que: a fome é um fenômeno social de causas políticas.

Imagem 7 – Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal O POVO, em 16/04/1932. Fonte: Museu de imagens114.

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Imagem 8 - Vítimas da seca. Crianças e adultos jazem ao lado da linha férrea que

levava para o Campo de concentração de Senador Pompeu. Fonte: Museu de imagens115

Neste ponto da discussão, pode-se perceber que não é a seca, propriamente, a principal causa da fome que Rachel de Queiroz pronuncia na obra, apesar de sua constância. O flagelo narrado de O Quinze, assim como a epidemia de cegueira de Saramago ou a peste de Camus, são grandes calamidades destruidoras da ordem, que servem de subterfúgio para romper o verniz civilizatório que encoberta o ser humano e o meio o qual se insere. O espaço narrativo evidencia o sofrimento que a seca desencadeia mediante as reações dos diferentes personagens frente à tragédia, com isso, traça um perfil de certos caracteres humanos apreendidos no próprio espaço literário. Encontra- se homens e mulheres sendo desumanizados.

Ao traçar a modelização do espaço alimentar na obra, torna-se claro as condições de pobreza, fome, desamparo político e violência que caracterizam

um cenário de violação dos direitos humanos e de uma alimentação adequada. Desde o contexto histórico da obra até os dias atuais passaram-se mais de um século, e ainda é possível notar — em grandes escalas numéricas — famílias como a de Chico Bento que enfrentam diariamente situações de Insegurança Alimentar e Nutricional (ISAN). Um cenário o qual Josué de Castro questiona se a calamidade da fome é “um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma

contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem?” O próprio responde, seguramente, que a natureza não é

mesquinha e que na verdade eventos como a fome e a guerra desobedecem a qualquer lei natural e são, em sua completude, criações humanas. E Rachel de Queiroz de alguma forma relatou isso.

Em verdade, não se pode atribuir um conjunto de causas metafísicas a essa problemática, mas deve-se reconhecer que a mesma ocorre pela pauta da matéria humana, e que abre um ponto chave para essa discussão: em que circunstância o espaço narrativo e social alimentar em O Quinze auxilia a pensar a problemática da fome nos dias atuais? Superar as desordens alimentar envolve uma transformação dos modelos alimentares como bem nos lembra Raj Patel “To overcome the food crisis, we need to transform the food system.”116

Sob o olhar retirante medidas ínfimas: campos de concentração para famintos e miseráveis, construção de barragens e açudes pouco ofereceu dignidade aos Bentos e seus semelhantes, pelo contrário, o resultado foi um amontoado de doença e mais miséria. De outra vertente, os proprietários de terra perderam gradativamente a força trabalhadora da agricultura. Rachel de Queiroz utilizou-se da temática para explorar a condição humana diante da impotência do homem frente aos acontecimentos naturais intensificados pela realidade social e econômica do sertanejo pobre.

Caso fosse possível retratar a vida de famílias como os Bentos no cenário no Brasil atual, certamente outras medidas ligadas à SAN concederiam uma melhoria na situação alimentar e os recursos para prover alimentos. Programas como Bolsa Família, Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),

116 PATEL, Raj. Shattuck, Annie. Holt-Giménez, Eric. Food Rebellions: Crisis and the Hunger

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Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) entre outros, contemplam famílias que estão em situação de vulnerabilidade social, garantindo assim o direito à uma alimentação regular e adequada. Caso se tome o Programa Bolsa Família como um exemplo prático para relacionar com a situação de vida de Carolina, pode-se contextualizar uma realidade totalmente distinta e com mais dignidade, uma vez que, os objetivos do programa são o de assegurar o DHAA, promover a SAN, contribuir para a erradicação da extrema pobreza e conquistar um espaço de cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome.