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A literatura famélica em O quinze de Rachel de Queiroz

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Academic year: 2021

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A literatura famélica em O Quinze

de Rachel de Queiroz

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CLÉBIO DOS SANTOS LIMA

A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUINZE DE RACHEL DE

QUEIROZ

NATAL, RN

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A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUNZE DE RACHEL DE QUEIROZ

Dissertação apresentada ao programa de pós- graduação em Ciências Socais como exigência parcial a obtenção do título de mestre em Ciências Socais sob orientação do Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

NATAL, RN 2019

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Lima, Clébio dos Santos.

A literatura famélica em O quinze de Rachel de Queiroz / Clébio dos Santos Lima. - 2019.

106f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Literatura brasileira Dissertação. 2. Alimentação -Dissertação. 3. Fome - -Dissertação. 4. Queiróz, Rachel de, 1910-2003. O quinze - Dissertação. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:821.134.3(81)-3

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

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A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUINZE DE RACHEL DE QUEIROZ

Dissertação apresentada ao programa de pós- graduação em Ciências Socais como exigência parcial a obtenção do título de mestre em Ciências Socais sob orientação do Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

Aprovada em: __/__/__

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (Orientador)

Fagner Torres de França (Membro interno)

Hermano Machado Ferreira Lima (Membro externo)

Orivaldo Pimentel Lopes Júnior (suplente)

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AGRADECIMENTOS

A Alex pela aposta no estudo e as zelosas orientações, sempre disposto às aventuras interdisciplinares.

Aos queridos colegas das orientações coletivas pelos momentos frutíferos de discussões e conversas, em especial, Jadson Maia, Rebekka Fernandes. Ao grupo de pesquisa Marginália.

A professora Michelle Jacob por toda disposição em partilhar pesquisa e tantos outros trabalhos conjuntos, e o professor Orivaldo Pimentel, ambos pelas contribuições na qualificação.

Aos membros da banca.

A professora Ceiça Almeida por tantas inquietações em sala de aula. A Edglei Silva que sempre presente é minha fonte de entusiasmo.

Aos mais que queridos Gabriel Pochapski e Yuri Kamozaki pelos cafés, gargalhadas e ombro amigo. Foram vocês que tornaram meus momentos de escrita mais leves.

A Viviany Chaves companheira de banco, de conversas e noitadas. Companheira pra vida.

Aos de longas datas, Janine Beatriz, Maristela Oliveira, Yanne Carvalho, João Pedro, Hugo Félix, Juliana Cândido e Adriana Fernandes, responsáveis por me arrancar os melhores risos.

A minha segunda alma, minha mãe.

Aos funcionários do PPGCS sempre prestativos e acolhedores, sobretudo aos mais que queridos Otânio e Jefferson

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"Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer." - Rachel de Queiroz, Dôra, Doralina: romance. 1984.

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RESUMO

A literatura traz possibilidades de estudos para compreender os fenômenos inerentes à condição humana. A obra O Quinze, da escritora cearense Rachel de Queiroz, foi utilizada neste trabalho como objeto de pesquisa, como corpus de conhecimento para compreender o fenômeno da fome e suas implicações no espaço social alimentar a partir da ótica da Segurança Alimentar e Nutricional. Para além de uma descrição dos elementos da fome, comuns em obras regionalista, a literatura foi aqui entendida como próprio espaço fruto da interrelação entre autor, pesquisador e corpus. Esta é maneira que uma corrente atual da geografia literária enxerga o espaço narrativo. Espaço este que aqui foi chamado de literatura famélica. Para essa demanda foram realizadas 6 leituras da obra integral com o intuito de interceptar as passagens que fizessem relações Espaço narrativo e Social Alimentar vigente. Foi elaborada uma matriz de classificação dessas informações que subsidiou o tratamento dos dados, inferências e interpretações. A análise retornou as seguintes questões: (1) a literatura funciona como mecanismo para produção histórica de uma poética da dignidade no contexto da fome (2) As dimensões do espaço alimentar marcado pela incorporação de novos repertórios alimentar resulta quadro de violação do Direito Humano à Alimentação Adequada e um regime de Insegurança (3) As desordens físicas, psicológicas e sociais são consequentes da ausência de uma política pública de Segurança alimentar e nutricional. Refletir sobre este fenômeno alimentar é uma possibilidade de adentrar num escopo de significações que vai além de interpretações objetivas. Através da escrita de Rachel de Queiroz pode-se compreender como os sujeitos em situações de escassez alimentar compreendem, enfrentam e resolvem este problema. Observa-se ainda a importância de olhar para o problema da fome com um olhar ampliado sobre o ato alimentar, sobretudo no cenário de injustiças sociais. Palavras-chave: literatura, alimentação, fome, segurança alimentar.

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ABSTRACT

Literature offers possibilities of studies to understand the phenomena inherent to the human condition. The novel O Quinze by the writer from Ceará, Rachel de Queiroz, was used in this work as an object of research, as a corpus of knowledge to understand the phenomenon of hunger and its implications in the social food space from the perspective of Food and Nutrition Security. In addition to a description of the elements of hunger, common in regionalist works, literature was understood here as the very space of the interrelationship between author, researcher and corpus. This is way a current current of literary geography sees narrative space. This space has been called the famished literature. For this demand were made 6 readings of the integral work with the intention of intercepting the passages that made relations Narrative Space and Social Food in force. A matrix of classification of this information was elaborated that subsidized the treatment of the data, inferences and interpretations. The analysis returned the following questions: (1) the literature serves as a mechanism for the historical production of a poetics of dignity in the context of hunger. (2) The dimensions of the food space marked by the incorporation of new food repertoires results in violation of the Human Right to Adequate Food and a regime of Insecurity (3) Physical, psychological and social disorders result from the absence of a public policy on food and nutrition security. Reflecting on this food phenomenon is a possibility to enter into a scope of meanings that goes beyond objective interpretations. Through the writing of Rachel de Queiroz one can understand how the subjects in situations of food shortage understand, face and solve this problem. It is also observed the importance of looking at the problem of hunger with an enlarged view on the food act, especially in the scenario of social injustices.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

CAPA - Criança Morta (1994) de Cândido Portinari Imagem 1 – A casa velha do junco

Imagens 2 – Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras. Imagem 3 – Primeira capa da obra O Quinze

Imagem 4 - Espaço Social Alimentar de Jean-Pierre Poulain e Rossana Proença

Imagem 5 – El Triunfo de La Muerte (ano c. 1562) de Pieter Brugel Imagem 6 – The Last Road de Nina Machenko

Imagem 7– Retirantes de Cândido Portinari

Imagem 8 – Jornal noticiando o êxodo rural e os campos de concentração no Ceará

Imagem 9 – Pessoas mortas durante a travessia do sertão

LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Obras completas de Rachel de Queiroz Quadro 2 – Fatores determinantes da fome

Quadro 3 – Dimensões do espaço narrativo da obra

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SUMÁRIO

Apresentação, 12

Introitos: fome e literatura, 16

A PESQUISA 23

Apresentação do corpus, 24 Sistematização dos dados, 24

RACHEL DE QUEIROZ, 30

Ciência e literatura, 32

A filha da caatinga: Rachel de Queiroz, 39

A FOME, 53

O regime da escassez, 55 As políticas da fome, 61

A LITERATURA FAMÉLICA, 68

A modelização do espaço social da fome, 68 Sentenças do regime da escassez: o corpo faminto, 75 Violação do direito humano à alimentação, 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 88

REFERÊNCIAS, 90

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APRESENTAÇÃO

Chegara à completa loucura da fome, sentia-me oco, sem sofrimento, já não detinha as rédeas da imaginação. Refletia calado, metido em mim. Mediante saltos extraordinários de raciocínio, procurei aprofundar o sentido da nova palavra.

Knut Hamsun – Fome

A fome nunca foi tema para as salas de visitas. Nas palavras de Câmara Cascudo “dizer que se tem fome quando o almoço se eterniza, é um primor de

deseducação”1. São quadros indigestos: falamos da abundância e das

promessas futuras frente às conquistas e avanços no campo tecnológico e científico, da esperança de dias melhores, mas ainda não conseguimos avançar passos tão largos pra uma necessidade tão íntima e necessária que é o comer. O fato é que conhecemos a fome e estamos habituados a ela, por uma necessidade vital do corpo, sentimos fome duas ou três vezes por dia. Mas ao mesmo tempo, para muitos de nós, nada mais distante do que a verdadeira sensação de passar fome.

Os retratos mais cruéis que perdura entre tempos de colheita e abundância resulta do desperdício, da ganância que grassa os nichos de riqueza, que age em surdina e mata silenciosamente, pois pode passar despercebida ou mascarada por outra causa. Pensar a respeito desse assunto sempre me intrigou “por que em meio a tanta produção de alimentos e os

saberes necessários de uma boa nutrição, ainda existem pessoas que não têm o mínimo para uma refeição digna? Como um nutricionista pode falar sobre comida para quem não tem acesso a ela?” Tomado por essas inquietações foi

que decidi explorar a temática na pós-graduação.

É de modo racional e concebível questionar-se que lugar habita um nutricionista nas Ciências Humanas. Acredito que no decorrer do tempo somos

1 CASCUDO, Luís da Câmara. O historiador da fome. In: ASCOFAM. O drama universal da fome. Rio de Janeiro, 1958. P 296.

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vários e, sobretudo, ao escrever uma pesquisa. As travessias que percorre o ser pesquisador é uma viagem de olhos vendados em mares ainda não revelados, parafraseando Clarice Lispector. É ofício do viajante não pertencer a nenhum lugar e poder conquistar todos os horizontes possíveis sem deslembrar suas origens. O norteamento dessas trilhas é indubitavelmente a aspiração pelo conhecimento e o deleite da escrita. O percurso me foi árduo, contudo, é inenarrável o aprazimento em meio a esta tarefa. Uma experiência não somente de criação, mas descobrimento da complexa condição humana que está para além dos rigores disciplinares e racionalizações. Seguimos aprendendo.

Este trabalho na verdade, é fruto de um percurso acadêmico que se inicia em 2013 quando ainda era estudante do curso de Nutrição/UFCG. Na época, estava entretido às disciplinas de Bioquímica e Metabolismo de Nutrientes quando me deparei em um outro universo que, inconscientemente já habitava em mim: o gosto pela literatura. A partir daí encontrei pessoas dispostas a me ajudar a pensar mais sobre outras relações com a alimentação. Cada vez mais crescia o número de interessados no tema e, aos poucos unificamos nosso grupo e institucionalizamos nossas reuniões. Naquele momento erámos o Grupo Universalidades, Literatura e Alimentação, ou simplesmente o GULA.

A partir desse grupo a pesquisa intitulada Atlas culinário da literatura

brasileira2 surgiu. Uma proposta enraizada na ideia em desvendar as fronteiras

da arte, da alimentação e de uma nova forma de pensar a ciência. Eu sou apenas um viajante que corajosamente despiu-se das amarras fisiológicas da Nutrição e seguiu em frente com os olhares voltados para uma das maiores escritoras brasileiras sobre a fome. A jornada findou aqui, com o cuidado intelectual do primoroso professor Alex Galeno e suas zelosas orientações. De bagagem teórica farta, é um grande explorador das aventuras transdisciplinares; no meio de tantas turbulências que enfrentei já na reta final do curso, foi apenas por ele que prossegui com este trabalho. Meu processo de construir uma profissão quase foi interrompido por um anúncio trágico. Os problemas familiares se intensificaram de uma forma a me empurrar numa caverna fechada e escura.

2 MEDEIROS, M.; CHAVES, V.; LIMA, C. Culinary Atlas of BrazilianLiterature. Razón y palabra,

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Era apenas eu e minha solidão de voz forte que ecoava me aconselhando a acabar com tudo. Mas, cá estamos. Retornei as tarefas e me dei conta que estava vivo pra continuar.

Certa vez, numa aula de teorias contemporâneas da cultura a professora Ceiça Almeida disse, parafraseando-a, que a pesquisa é uma forma de organizar o caos. Apesar de entender naquele momento o que ela quis dizer, eu gostaria de estar tão convicto disso como ela. Mas tentei organizar meu caos. Permita- me então, apresentar como foi feito.

A obra de Rachel de Queiroz possibilita a construção não somente em nível epistemológico como também no sentido de apoiar uma análise tanto sociológica como literária. Nesse sentido, o romance cearense como corpus do estudo reflete o esforço de traçar o espaço social da fome e os fenômenos que o cerca. Este são os principais temas da pesquisa: fome, literatura e espaço.

Nessa discussão as Ciências Humanas e Sociais podem oferecer grandes contribuições. À luz da ideia de Espaço Social Alimentar (ESA) proposto por Jean-Pierre Poulain e Rossana Proença permite, ao mesmo tempo, fazer a Sociologia para os sociólogos e criar as condições de aplicação de um diálogo pluridisciplinar com as Ciências da Alimentação e da Nutrição. Pensando no papel da literatura nessa empreitada, ao falar de espaço partimos de uma ideia que ultrapassa as interações entre os sujeitos e o lugar onde habitam; é dessa forma que geografia literária proposta por Sheila Hones caminha: o texto literário em si pode ser compreendido como um espaço próprio resultante de interrelações entre o seu contexto de produção, a voz ficcional e os sentidos atribuídos pelo pesquisador (leitor). Por fim, o debate com a fome vem dos contributos de Josué de Castro e seu trabalho em traçar a Geografia da Fome.

Após algumas notas introdutórias inerentes a pesquisa, o primeiro capítulo explica o porquê da escolha do corpus de pesquisa, como a geografia literária pode apoiar análises relacionadas a fome e de que forma o espaço social alimentar pode ser uma ferramenta de análise nesse contexto. Além desse construto, está apresentada Rachel de Queiroz e suas geografias literárias e de vida. O capítulo posterior segue com a construção dos dados, bem como o tratamento, interpretações e inferências destes.

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Por fim, os dois últimos capítulos foram escritos no intento de ampliar as questões colocadas anteriormente: a fome histórica como produto das iniquidades sociais rompe a naturalização da falta de alimentos. E a seção seguinte expõe como a questão da fome vem à tona a discussão política e de que forma a obra de Rachel de Queiroz contribui para essa discussão. Finalizamos o estudo com a modelização alimentar a partir das dimensões do ESA e suas significações.

Estas foram as categorias de análises encontradas para responder os objetivos deste trabalho. As considerações finais ou conclusões, sintetizam as proposições da investigação em uma avaliação concisa.

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INTRÓITOS: FOME E LITERATURA

Ítalo Calvino diz que um clássico, entre outras peculiaridades, “provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe”. São obras que formam um endosso de literaturas contemporâneas a todos os tempos que atuam como dobras na memória mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual3. A partir dessa

afirmação poderíamos pensar a respeito de uma literatura brasileira clássica: a famélica.

O início do século XX foi marcado por um movimento literário que se desguardou dos princípios libertadores e rigorosos da estética europeia transmutando-se para centralidade político-social “ao querer denunciar pelos recursos literários não só as mazelas oriundas do passado colonial e escravocrata da sociedade brasileira, mas também os regimes ditatoriais que assolam a vida republicana”4. Esta foi a proposta apresentada pela geração

subsequente da semana de Arte Moderna de 1922. Uma nova ordem literária surgiu; a literatura dos anos 30 ou também chamada de regionalista, diante das novas configurações históricas, apresentou experiências artísticas nascidas em tempos beligerantes, apresentando uma outra demanda: a necessidade de um maior envolvimento social, um olhar acurado para a região nordeste e a eclosão de alguns dilemas, até então obscuros, como a fome, considerado um tema delicado, proibido e pouco aconselhável a ser discutido em público5.

Os romancistas desse movimento apresentam copiosos relatos sobre a fome em suas obras. A inauguração fica à cargo de José Américo de Almeida com o romance A bagaceira (1928) ambientado entre as grandes secas do século XIX (apogeu em 1989) e a seca de 1915. O autor evidencia seus

3 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. 5.ed. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora

companhia das letras, 2004, p 12.

4 SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo

Horizonte: Ed UFMG, 2004, p. 46.

5 KIFFER, Ana Paula. Graciliano Ramos e Josué de Castro: um debate acerca da fome no

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personagens, descrições e paisagens com forte apelo simbólico, sobretudo à fome e miséria.

Graciliano Ramos em Vidas secas (1938) lança uma visão da sociedade brasileira em seus níveis mais profundos em uma dimensão social e psicológica da repressão política junto a dimensão natural. O autor invoca personagens agarrados com a miséria e a fome à fuga da seca. Entre a esperança e o desalento enfrentam as contrariedades da natureza e a opressão subalterna em uma narrativa que se constrói em meio ao silêncio, e quando há diálogo, duras e ríspidas palavras são lançadas. A desolação é tanta que, em um trágico episódio o papagaio, até então visto como membro do grupo, é devorado pela própria família6.

O desígnio do sertanejo e de tantas vidas secas é não padecer da morte Severina. Aquela anunciada por João Cabral de Melo Neto:

— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...

— Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição.

— Finado Severino, etc..

. — Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.

— Finado Severino, etc.. . — Dize que coisas de não,

ocas, leves:

como o caixão, que ainda deves. — Uma excelência dizendo que a hora é hora.

— Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.

— Duas excelências... - ...dizendo é a hora da plantação.

— Ajunta os carreadores... - ...que a terra vai colher a mão7.

6 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107a ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

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A vida e a caminhada do “não” refletem uma imagem da expressiva impetuosidade das literaturas. E dentre elas, há uma autora em especial e única mulher desse movimento, ainda não citada, que faz desse encontro uma constante em sua obra: Rachel de Queiroz.

Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma mulher nova, algumas crianças. Os meninos choramingavam, pedindo de-comer [...] dominava agora uma eterna preguiça da vida, da eterna luta com o sol, com a fome, com a natureza8.

Em seu clássico inaugural O Quinze (1930), Rachel de Queiroz edifica fidelidade às figuras humanas, à paisagem, aos costumes e à linguagem da região, que incorpora com vivacidade a fala comum para abordar questões complexas testemunhadas em sua vida: a escassez de vida, os movimentos migratórios, a seca nordestina. Uma obra que foge dos requintes linguísticos e também alimentar, o que importa para Chico Bento, um de seus personagens, é não padecer de fome. O romance cearense não é o único livro que trata sobre o assunto, mas a crítica pondera seu destaque: Para Mario de Andrade, Rachel de Queiroz através de sua obra nos dá um modo novo de conceber a ficção sobre o flagelo brasileiro. O crítico literário Augusto Frederico Schmidt também comenta que “O quinze é mesmo o que temos de melhor no gênero” 9.

É uma obra prolífera de imagens estéticas do sertão nordestino, da pobreza e da seca voraz. Contudo, existem nas páginas de Rachel de Queiroz narrativas que ultrapassam as imagens descritas na obra e que refletem um contexto histórico e amplia a discussão das mazelas sociais sob o olhar do leitor. Estas narrativas foram aqui chamadas de literatura famélica. E este é o objetivo do trabalho: compreender a partir de sua literatura as modificações causadas

8 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 48. 9 SCHMIDT, Augusto Frederico. Fortuna Crítica (Uma revelação: O quinze). In: QUEIROZ,

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pela fome no espaço alimentar. Uma fome que é histórica e lança uma problematização para além de obra literária.

A obra de Rachel de Queiroz e outros literatos regionalistas serviram a Durval Muniz (2009) como parte estruturante para fundamentar sua tese. O autor discute a importância de Rachel na Invenção do Nordeste ao mesmo tempo em que faz uma alerta: à primeira vista, a literatura de Queiroz e os demais representantes do romance nordestino contribui para uma invenção na história brasileira, assim, não pode ser tomado como objeto de estudo fora desta historicidade, sob pena de se cometer anacronismos e reduzi-lo a um simples recorte geográfico naturalizado10.

Tomando por base essa ideia, um campo científico que, recentemente, toma esse modelo de análise e que aqui foi utilizado como parte estruturante do trabalho é a geografia literária. O uso de passagens literárias como dado de análise, foi sendo modificado por um crescente destaque humanístico na experiência subjetiva do lugar. O enfoque que inicialmente encontrava-se nos recortes geográficos passou a entender o papel do texto literário como próprio espaço que conta com a interação de múltiplos agentes. O espaço narrativo aparece como produto de interrelações entre autor, voz narrativa e leitor, e não apenas como recipiente de representações ou descrições caracterizadas na obra11 12. A literatura famélica em O Quinze foi pensada nesse seguimento13.

10 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife:

FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.

11 BROUSEAU, M. Geography’s literature. Progress in Human Geography, v. 18, n. 3, p. 333-

353, 1994.

12 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of geography.

New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.

13 Além deste, outros estudos propuseram estudar a fome lançando mão da literatura como

objeto de conhecimento, como corpus de pesquisa. Pereira Filho (2010) tomou posse das obras do brasileiro Rodolfo Teófilo (A fome) e do norueguês Knut Hamsun (Fome), ambas publicadas em 1890, para discutir a disparidade entre os escritores explorando os limites humanos e questões como a ânsia e a carência. Outra aposta em desenvolver um produto científico que relaciona fome e literatura foi realizado por Chaves e Jacob (2018), dessa vez, com a obra Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, propositaram compreender a literatura como via para subjetivação e enfrentamento da situação de precariedade alimentar vivenciada pela poetisa. As autoras firmam contrato com a literatura para produção de um conhecimento no contexto da fome.

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Grandes períodos de fome e escassez alimentar na história da humanidade se designa como sequela de injustiças e vulnerabilidades sociais – miséria, guerras, marginalização − que atinge centenas de milhares de pessoas no mundo. Não seria demais imaginar o alcance desses fenômenos no centro das discussões políticas, nas agendas científicas e em numerosos estudos acadêmicos. Discorrer sobre essa temática envolve a percepção de angústia ou preocupação diante da incerteza de uma alimentação irregular (em termos de qualidade e quantidade) até sua total privação14. Corpos famintos que tantas

vezes não come nem a metade do necessário. E são milhares em escala planetária.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em seu relatório anual (2017) alertou que após uma década em constante declínio, a fome no mundo está novamente em ascensão, no ano de 2016, afetou 815 milhões de pessoas que correspondem a 11% da população global15. No

Brasil foi possível identificar que 14,7 milhões de brasileiros passam por alguma restrição ou privação alimentar devido à falta de recursos para adquirir alimentos, sendo o Nordeste a região mais afetada (38,1%) segundo os dados do levantamento suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)16.

Este quadro tem direcionado historicamente o reconhecimento da alimentação adequada como direito humano na ótica da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), ocupando de forma progressiva a agenda pública em um processo de construção participativa de saberes e ações, com impactos expressos sob a estrutura político-institucional de diversos setores

14 DIAS, Eliotério Fachin. A Fome, a pobreza e o Direito Humano à alimentação adequada.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS, v. 11, n. 2, 2009.

15 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The State

of Food Security and Nutrition in the World: Building resilience for peace and food security,

Rome. 2017.

16 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa Nacional por

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governamentais e da sociedade civil17,18. No Brasil, a conceituação da SAN foi

desenvolvida considerando, como objetivo estratégico e permanente, sua subordinação às políticas públicas aos princípios da Soberania Alimentar, sob uma ótica multidimensional e integradora, estando diretamente relacionada à luta pelo direito humano à alimentação. Nesses termos entende-se o conceito de SAN como a “realização do direito humano a alimentação, e a garantia do acesso regular e permanente a uma alimentação saudável, de qualidade e quantidade suficiente, e que não comprometa o acesso a outras necessidades essenciais”

19.

Entretanto, ao tomar posse em 2019, o atual presidente da república Jair Messias Bolsonaro (2019 – 2022), tornou pública a decisão de extinguir, por meio da Medida Provisória 870, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), principal órgão de participação democrática na construção de propostas e diretrizes da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional20. Em nota sobre a medida, a Associação Brasileira de Saúde

Coletiva (Abrasco) afirma que com a extinção do conselho “fica automaticamente

fechado o principal canal de diálogo, compartilhamento de experiências e vocalização de demandas concretas relacionadas ao tema” e enfatiza que “foi a partir do CONSEA que o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade de

17 BRASIL. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos, lei nº 11.346, de 15 de

setembro de 2006. Brasília, DF: [s.n.]; 2006.

18 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Construção do Sistema

e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira.

Brasília: CONSEA, 2009.

19 BRASIL. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos, lei nº 11.346, de 15 de

setembro de 2006. Brasília, DF: [s.n.]; 2006, p. 1.

20 A MP 870 revogou todos os artigos da lei relacionados às competências do Consea, bom como

os artigos que estabelecem a sua composição. A medida provisória retirou do Consea a prerrogativa de convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e de definir os parâmetros “de composição, organização e funcionamento” do grupo. Pela redação antiga da lei, cabia ao Consea propor, em cima das deliberações da conferência, as diretrizes e prioridades do plano nacional de segurança alimentar e nutricional. Também foi revogado o trecho da legislação que deixava com o Consea a tarefa de articular, acompanhar e monitorar a implementação do plano nacional. O presidente ainda revogou trecho da lei com os critérios de composição do Consea, com um terço de representantes do governo e dois terços de representantes da sociedade civil.

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enfrentar as causas da fome e organizar um marco político legal para a garantia do direito humano à alimentação adequada” 21.

Por este cenário, encaramos esta pesquisa como uma possibilidade analítica que colabore com o contexto do atual sistema político alimentar inserido no princípio da democratização alimentar, visando um cenário em que os cidadãos têm conhecimento e se envolvem ativamente com as questões que perpassam o espaço onde se inserem. É a partir dessa compreensão que pontuamos as guias que foram construídas para a literatura famélica em O

Quinze. Assim, (1) estão elencados os elementos do espaço descritivo e

narrativo da obra e (2) relacionados com o regime da escassez. E por fim, (3) o espaço narrativo da fome no romance.

21 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota da Abrasco em defesa do direito humano à

alimentação adequada! Não à extinção do Consea! ABRASCO, 2019. Disponível em

https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2019/01/Nota-da-ABRASCO-em-

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3 SISTEMATIZAÇÃO DO ESTUDO

3.1 APRSENTAÇÃO DO CORPUS

Compreender o significado que os acontecimentos e interações têm para os indivíduos é uma tarefa apoiada por pesquisas qualitativas. Este trabalho de ênfase interdisciplinar trata-se, portanto, de um estudo qualitativo do tipo exploratório.

Aqui foi utilizado a 107ª edição do livro, publicada em 2017 pela editora José Olympio. Na trama de 26 capítulos magros e ligeiros encontra-se um total de 141 páginas. A autora situa a história do romance no Ceará a partir de um fato histórico importante da época: a seca de 1915, uma das estiagens que mais marcaram o sofrimento do sertanejo nordestino, e que dá origem ao título do livro. A trama centra duas narrativas.

3.2 SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS

Inicialmente foram tecidas três leituras flutuantes da obra integral com o objetivo de reconhecimento do corpus e tratamento dos dados, à medida em que as leituras aconteciam grifos em cores diferentes eram feitos com o intuito de selecionar informações para alimentar o espaço narrativo de acordo com a proposta de Sheila Hones (ver apêndice I). Em seguida, uma matriz foi arquitetada, a priori, compondo as três dimensões do espaço narrativo proposto por Sheila Hones, as quais foram nomeadas de espacialidades narrativas22. A

primeira diz respeito ao contexto de produção da obra, o objetivo é reconstruir o quadro em que ele instala o projeto de literatura apresentado pela autora. A segunda corresponde ao espaço ficcional, este, envolve a configuração espacial do que é desvelado na obra em si e suas relações com o objeto de interesse na pesquisa: a alimentação. Para essa tarefa foi usado a ideia de

espaço social alimentar (imagem 5) de Jean-Pierre Poulain e Rossana Proença

que corresponde “as inter-relações entre um grupamento humano e o seu meio

que, encontra na alimentação um campo de aplicação particularmente fecundo”.

Nele destacam-se seis dimensões principais que focalizam espaços e sistemas

22 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of

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diversos: o comestível, a produção alimentar, o culinário, os hábitos de consumo alimentar, a temporalidade e as diferenciações sociais. As ações privilegiadas aqui se confundem com a sinopse da obra e os objetos enfatizados são aqueles que se aproximam da materialidade ambiental do espaço. E por último os sentidos do leitor dizem respeito a uma concepção que ultrapassa sentidos de um leitor passivo, que apenas interpreta o que o autor quis dizer. No nosso caso, este sentido são as leituras que a obra em análise nos permite fazer sobre alimentação. Precisamente nos pontos em que essas leituras nos levam a reflexões que giram em torno da Segurança alimentar e nutricional e dos princípios que a orientam, o direito humano à alimentação e a soberania alimentar, conforme já pensado por Medeiros (2014)23.

Um dos argumentos desse modelo é o espaço narrativo não como coisa, mas como um evento geográfico de colaboração dinâmica. Um processo de reflexão de “com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não

passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia”24.

Esta é uma abordagem que compreende a escrita literária como eventos em algum lugar e em algum momento específicos e criam interrelações complexas na criação do autor e sua interpretação pelos leitores. Embora uma diversidade de teóricos literários aceite que os leitores são essenciais para completar um texto, o romance como um evento revela a contingência espacial e temporária (e instabilidade) de interpretações leitoras. Os eventos estão situados de maneiras particulares — formas que provavelmente não serão repetidas — o que nos ajuda a entender que cada leitura de um romance, cada performance, provavelmente será diferente da anterior, mesmo para o mesmo leitor25.

23 MEDEIROS, Michelle. Marcel Proust para além das madeleines. Uma culinária indócil.

2014. 252f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

24 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 01. São

Paulo: Ed. 34, p. 96, 1995. p. 12.

25 HONES, S. Literary geography: setting and narrative Space. Social and; Cultural

(28)

27

Quadro 3. Dimensões do espaço narrativo da obra

CONTEXTO DE PRODUÇÃO

1930. Fortaleza/CE. Romance que mostra a luta do povo nordestino contra a seca e a miséria. Demonstrando preocupação com questões sociais e hábeis na análise

psicológica de seus personagens, destaca‐se no

desenvolvimento do romance nordestino. O título faz referência à grande seca de 1915.

ESPAÇO FICCIONAL

A trama centra duas narrativas. De início, entremeados pela seca e falta de recursos para sobrevivência (1) a saga de Chico Bento e sua família pelas terras cearense é o principal fio condutor da ficção. Ele, sua esposa Cordulina, a cunhada apelidada de Mocinha e cinco filhos partem do Logradouro a caminho de Fortaleza para de lá seguir até o Amazonas. É desse núcleo que vêm as cenas mais impactantes de toda a obra: fome, miséria, desalento e morte são palavras-chave que decodificam o enredo. Por outro lado, (2) a relação infrutuosa de Vicente e Conceição sustenta outra narrativa. Vicente tenta enfrentar a seca e manter os animais vivos até a chegada das primeiras chuvas. Ele e Conceição vivem um caso de amor, apenas idealizado, pois há uma barreira intelectual e social impede que o namoro se concretize. Ela é a moça que não se contentou esperar pelos dias de São José. Ele vive seu ofício de vaqueiro: prioriza o trabalho na fazenda acima de todas as outras coisas. Seguem todos a desolação da seca, onde nenhuma natureza prospera, nem paixão floresce. A pungência literária não nega características psicológicas. O leitor imerge sobre os pensamentos e sentimentos dos personagens. A análise exterior que compõe a obra é possível, mas a autora

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vai soltando uma característica aqui, outra além, sem interromper a narrativa para pormenores.

SENTIDOS DO LEITOR

É notória a crítica social a qual a autora encaminha para o leitor: a fome como produto de injustiças sociais, e que não atinge do mesmo modo a todos: há explicitamente uma diferenciação de classes que desponta, sobretudo, com desolação das contrariedades naturais e políticas (próprias do contexto histórico). É possível ainda identificar uma abertura para a discussão da (in)segurança alimentar e nutricional, visto que, esta, não se dissocia da fome e miséria.

ESPAÇO NARRATIVO

O espaço narrativo faz clara referência ao sertão e todas as suas mazelas políticas, sociais e históricas. A fome e a seca são temas recorrentes neste espaço narrativo. Ambas

acompanhadas de: movimentos migratórios,

fanatismo religioso, que trazem elementos do contexto de produção das obras e do espaço ficcional trazido pela autora.

FONTE: dados da pesquisa

Após essa etapa, a matriz inicial foi remodelada, agora, com a inserção das dimensões do espaço social alimentar junto as espacialidades narrativas. Para esse processo mais três leituras sucessivas foram empreendidas com o fim de preencher a matriz. Em cada leitura eram destacados por cor fragmentos que pudessem servir para delinear o espaço social alimentar (cada cor correspondeu a uma dimensão específica – verde, rosa, amarela, azul e laranja – ver anexo 1) bem como os câmbios que a obra deixava entrever. Em seguida, os fragmentos foram sendo lançados na matriz. A seguir, um exemplo que ilustra um fragmento deste compilado.

As dimensões do espaço social alimentar delimitadas por Jean-Peirre Poulain e Rossana Proença (2003) são:

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29

O espaço do comestível: corresponde as múltiplas substâncias naturais - minerais, vegetais e animais, as quais podem, potencialmente, servir de alimento e são colocadas pela natureza à disposição dos homens.

O sistema alimentar: A segunda dimensão corresponde ao conjunto de estruturas tecnológicas e sociais empregadas desde a coleta até a preparação culinária, passando por todas as etapas de produção e de transformação. Ela constitui o sistema de ação que permite a um alimento chegar ao consumidor.

O espaço do culinário: três características englobam esta dimensão. O culinário no sentido geográfico do termo, ou seja, o espaço físico de distribuição, preparação e posição da cozinha. O senso social, o qual representa a repartição sexual e social das atividades de cozinha, e por fim, no sentido lógico do termo, englobando relações formais e estruturadas.

O espaço dos hábitos de consumo: envolve o conjunto de rituais que rodeiam o ato alimentar no seu sentido estrito.

A temporalidade alimentar: é um ritmo cotidiano, suas alternâncias de tempos de cada refeição e as diferenças das comidas.

O espaço de diferenciação social: marca as fronteiras identidade entre os grupos humanos de uma cultura e de outra, mas também no interior de uma mesma cultura, entre os membros que a constituem.

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Imagem 4 – O espaço social alimentar. FONTE: Poulain e Proença (2003)

Com os dados organizados de acordo com as categorias elaboradas, foram dadas significâncias aos dados com objetivo de extrair o destaque das informações obtidas. Esse momento foi essencial para produzir sínteses a fim de responder à questão inicial levantada nesta investigação.

(32)

31

(33)

1 GUIAS PARA PENSAR A LITERATURA FAMÉLICA

No texto O algodão da terra a escritora Elvira Bezerra pontua três questões essenciais que iluminaram a construção literária de Rachel de Queiroz. Dentre eles, o que há de mais genuíno são suas experiências de vida e andanças pelo sertão cearense, que tão íntimos, ecoam em suas obras. Em verdade, O

quinze não se traduz como autobiografia ou diário pessoal da escritora, mas

guarda sentimentos profundos que vai além de descrições narrativas e mantém o viço de uma verdadeira arte sobre os movimentos da história. Esse processo mais amplo se exprime na novidade formal do romance, cuja construção literária abarca a dimensão problemática da experiência a que ele dá forma.

A literatura nesse papel, como afirma Alex Galeno (2014) “é fornecedora de imagens que dizem sobre nossa ação diante do mundo”26. E o autor, como

intérprete social, encaminha valiosas percepções que a ciência habitualmente posterga a segundo plano. Logo, antes de apresentar Rachel de Queiroz, surge uma questão de plano teórico: o que justifica uma análise sobre fome a partir de sua obra?

3.1 CIÊNCIA E LITERATURA

A obra literária regionalista tem sido definida, de acordo com Ligia Chiappini, como “qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais”, e que forma uma estética espacial. Decerto, toda obra literária seria regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar e que pode ser apreendida como objeto de estudo27.

No campo das ciências humanas é possível observar o interesse de acadêmicos sobre estudos das relações sociais e o espaço. Edward Soja fundamenta sua crítica de Geografias Pós-modernas à medida que elenca os

26 GALENO, Alex. Comunicação, crueldade e compreensão. In: GALENO, A. FRANÇA, F.

AZEVEDO, G. Ensaios indisciplinados: comunicação, cultura e arte. EDUFRN: Natal. 2014, p. 261.

27 CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: Dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos

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33

contributos de Henri Lefebvre, Michel Foucault, John Berger, Ernest Mandel e Anthony Giddens. Nota-se o debate sobre a importância da espacialidade na teoria e na prática social — o que torna visível o espaço como a (re)produção da sociedade. Um fenômeno inerente que se pode incluir a essa discussão é alimentação: tema que foi explorado por Vidal de La blache (1954) em seu clássico Princípios de Geografia Humana. O autor estabelece que entre as forças mais significativas que ligam o homem a um determinado espaço é o alimento28.

Em verdade, grande parte dos problemas alimentares enfrentados pela Saúde Coletiva têm profundas conexões com o cotidiano das pessoas e o lugar onde elas habitam. O processo de territorialização emerge como instrumento profícuo para localizar eventos e entender os contextos de uso do território em todos os níveis das atividades humanas (econômicos, sociais, culturais, políticos), viabilizando estas como categoria de análise social a atenção integral em saúde, que considera o homem em sua dimensão biopsicossocial, por conseguinte, a dimensão alimentar29. Logo, o construto dessas dimensões

supracitadas faz com que diversos sistemas alimentares sejam produzidos. Isto porque, na constituição desses sistemas, intervêm fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social e econômica que implicam representações e imaginários sociais envolvendo escolhas e classificações, que variam em cada território disposto. Suas inúmeras facetas se ordenam em dois grandes universos, pelo menos. O primeiro se estende do biológico ao cultural, da função nutritiva à função simbólica. O segundo, do indivíduo ao coletivo, do psicológico ao social. O homem biológico e o homem social, a fisiologia e o imaginário, estão próximos e mesclados no ato alimentar30.

Edificar um instrumento metodológico com fins de estudo para um fenômeno (espaço e alimentação) multidimensional, complexo e com múltiplos

28 VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Princípios de Geografia Humana. Lisboa, Edições Cosmos,

1954.

29 GONDIM, Grácia; MOKEN, Maurício. Territorialização em saúde. In: BRASIL. Ministério da

Saúde. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Brasília: MS, 2009. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/tersau.html>. Acesso em: 12 set. 2018.

30 FISCHLER, C. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Editorial Anagrama, Barcelona,

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acessos demanda a construção de um referencial epistemológico que abarque estes pressupostos. A ideia de espaço social alimentar proposta por Poulain e Proença (2003) constitui “um objeto sociológico total no sentido Maussiniano do termo quer dizer que coloca em movimento ... a totalidade da sociedade e de suas instituiç es”. Esta ferramenta funciona como uma possibilidade que assinala a conexão bioantropológica do estudo de fen menos alimentares deriva do conceito de espaço social de George Condôminas que busca “compreender as interrelaç es entre um grupamento humano e o seu meio, e encontra na alimentação um campo de aplicação particularmente fecundo”31.

Tratando-se da fome, a conexão entre o homem e o seu meio, ou seja, seu espaço, é princípio elementar para compreender o fenômeno. No Brasil, Josué de Castro em seu estudo pioneiro intitulado Geografia da Fome (1946) baseou-se nos princípios estabelecidos por Vidal de La Blache e outros geógrafos como Carl Ritter (1779-1859) e Alexander Von Humboldt (1769-1859) para “localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fen menos naturais e culturais que ocorrem à superfície da terra”. O resultado apresentado foi uma representação cartográfica em cinco áreas alimentares e as principais carências nutricionais existentes no país: a área Amazônica, o Nordeste açucareiro, o Sertão Nordestino, o Centro-Oeste e o Extremo-Sul32.

Outra apresentação, pouco mais ambiciosa em termos de território, provém do Martín Caparrós e sua obra A fome publicada em 2016. Entremeado na Índia, Bangladesh, Sudão do Sul, Estados Unidos, Argentina, Madagascar e Nigéria o autor apresenta disposições causais de como a fome se expressa em cada uma das regiões a as influências condicionantes do espaço político, social, cultural e econômico.

Acredita-se que discutir eventos acerca da alimentação, sobretudo da fome, é uma tarefa que pode ser apoia através das produções literárias como

31 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar:

um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3, pp. 245-256.

32 Castro J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio de Janeiro: Antares

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35

fonte de acesso àquele espaço. Pois, as obras de arte, como nos lembra Edgar Morin, guardam reflexões sobre o humano e abriga um cosmo de possibilidades transcendentais. Pois, para além de uma estética da representação, pautada sob os direcionamentos de uma mimesis, a arte é criação do novo, poiesis33 34. A

geografia literária enquanto campo do conhecimento reflete essa potência criativa.

O conhecimento de uma poética social revela possibilidades para a compreensão da sociedade e seus espaços. É dessa forma que Walter Benjamin percebe a obra de Baudelaire. Com sua grande sensibilidade perceptiva, ele viu nessa obra uma fonte primacial, complexa, para compreender a relação entre homem e o lugar em que habita35. O espaço literário surge como categoria de

análise. Nesse sentido, é considerado como uma metáfora central e topos na literatura, e a crítica literária pondera o espaço como uma nova ferramenta e participação. Da mesma forma, a literatura revela-se como um campo ideal para estudos das Ciências Humanas36.

A ideia de representar os espaços literários não é recente. Um estudo que remonta historicamente o campo, mostra que há mais de um século pesquisadores tentam empreender esta tarefa, sobretudo, por meio da construção cartográfica. Um representante que talvez tenha feito isso em primeira instância e de forma mais sistematizada foi Franco Moretti, que tenta, em Atlas do romance europeu 1800-1900 (1997)37, ler fenômenos culturais,

33 MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-feita: Repensar a Reforma, Reformar o Pensamento.

Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

34 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999. 35 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire – Um autor lírico na época do Alto Capitalismo. São

Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras Escolhidas, v. 3).

36 PERALDO, Emannuelle. Literature and Geography: The Writing of Space throughout History.

Cambridge Scholars Publishing; 1 ed. 2016.

37 Moretti discute tanto a distribuição das formas literárias no espaço geográfico quanto o efeito

do espaço na literatura. No primeiro capítulo, Jane Austen e Sir Walter Scott são os temas de sua investigação sobre a ligação entre o enredo de um romance e os locais onde a história se passa - o campo, a fronteira e as colônias. O segundo capítulo diz respeito a uma comparação da Paris de Balzac com a Londres de Dickens, enquanto a terceira é dedicada a uma investigação sociológica sobre a dispersão de gêneros em toda a Europa. Moretti está convencido de que a geografia determina a forma literária. Sem um certo tipo de espaço, um certo tipo de história é simplesmente impossível. A geografia é o espaço informacional que

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descritos nas obras literárias do século XIX, sob o apoio de mapas e diagramas. O ensejo deste autor localiza-se em uma década, anos 90’s, onde a abordagem do espaço começa tomar o lugar de um dos conceitos primordiais de análise nas Ciências Humanas: o de temporalidade. Sobre essa abordagem, Pierre Monbeig, apontou a necessidade de a Geografia trazer para seu escopo leituras não-técnicas com a finalidade de expressar seus conteúdos de forma mais vívida, mais humana. Leituras como as de literatura, que tão bem descrevem o espaço vital, poderiam ser auxiliares neste intento38 39.

No entanto, a geografia literária ultrapassou simplesmente a combinação das duas disciplinas para aprender umas com as outras. No passado, havia um foco nas maneiras pelas quais as configurações descritas em um romance ajudam a conectar esse espaço com localizações físicas no mundo. Este ainda é um bom ponto de partida para estudar as muitas facetas da geografia literária, todavia, mais recentemente uma abordagem interdisciplinar tem sido vista como mais útil e melhor representante de como essas tradições acadêmicas trabalham juntas para forjar novos conhecimentos. Novos estudos no campo da geografia literária precisam demonstrar mais do que apenas a “análise literária de temas geográficos ou a análise geográfica de textos literários”. Há menos preocupação com a precisão de um cenário específico e mais investigação sobre a geografia do próprio texto e o que nós, como leitores, podemos aprender com isso40.

O uso de passagens literárias descritivas como dado de análise foi sendo modificado por um crescente destaque humanístico. Inicialmente o enfoque que

estrutura a narração e programa as possibilidades da trama. A título de exemplo, em seus mapas, Moretti mostra que a estrutura dos romances de Dickens está ligada à estrutura geográfica (e social) de Londres. A Paris de Balzac (com suas margens esquerda e direita do Sena) programa outros anseios e planos do que a Londres socialmente estratificada de Dickens, ou a fronteira nos romances de Scott.

38 PIATTI, Barbara; REUSCHEL, Anne-Kathrin; HURNI, Lorenz. Literary Geography–or How

Cartographers Open up a New Dimension for Literary Studies. In: INTERNATIONAL CARTOGRAPHY CONFERENCE, 24, 2009, Santiago de Chile. Disponível em:

<&lt;http://icaci.org/files/documents/ICC_proceedings/ICC2009/html/nonref/24_1.pdf&gt;>. Acesso em: 31 jul. 2018.

39 MONBEIG, Pierre. Novos estudos da Geografia Humana brasileira. São Paulo: Difusão

européia do livro, 1957.

40 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of geography.

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37

se encontrava nos recortes geográficos passou a entender o papel da narrativa literária como um evento espacial próprio que conta com a interação de múltiplos agentes; assim como propõe Sheila Hones (2017), a autora diz que a geografia apresentada em um romance é entendida como resultante das relações entre o escritor, o texto e o leitor. Nesse sentido, a geografia é uma co-construção edificada pelo o autor e o leitor, com o texto também escrevendo parte da geografia contida nele. Pois de fato, não existe uma compreensão única do corpo literário dispostas de leitores ou obras genéricos, o que existe são potenciais de criatividade moldados por eles. Saunders (2010) observa que “se quisermos obter uma compreensão mais completa do evento espacial do texto, precisamos entender as outras interseções a partir das quais ele é composto; aqueles que ocorrem no processo de criação do trabalho e não apenas o seu consumo”41.

Essa guia transdisciplinar foi usada por Hones em suas análises literárias: a autora tomou o espaço narrativo no romance Let the Great World Spin (2009), de Colum McCann. Ela indica que esta é uma tentativa de conectar teoria e método em estudos literários com teoria e método em geografia cultural. Seu trabalho propõe uma combinação de espaço geográfico e literário e rejeita a ideia de que o espaço dentro de um romance é simplesmente contido dentro do cenário. O romance foi usado como um estudo de caso para testar possíveis práticas dentro da geografia literária — esta pesquisa não foi projetada para ser uma crítica do romance. Hones observa que o livro oferece apenas uma abordagem do “amplo espectro do trabalho” que está sendo feito em geografia literária e questiona como o futuro da disciplina pode parecer, à medida que acadêmicos de estudos literários continuam adicionando discussão complexa.

A partir das dimensões do espaço narrativo proposto por Sheila Hones é que o romance de Rachel de Queiroz foi aqui analisado, para esse trabalho, três pontos elementares versa a literatura famélica em sua obra. São eles:

Primeiro: A trama de Rachel é encarnada pela seca, fator de um determinismo da natureza impiedosa, uma expressão objetiva dos infortúnios sociais para aqueles que não tinham melhores condições de sobrevivência nos

41 SAUNDERS, A. Literary geography: reforging the connections. Progress in Human

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períodos prolongados de estiagem, sendo forçados a migrarem. A partir das dimensões apresentadas por Hones é possível traçar uma análise da fome que foge a imagem naturalizada da seca, neste caso há, o envolvimento político- social revelado pelo contexto de produção. A voz da autora como militante política de esquerda expressava o ensejo de uma transformação anunciada na obra. Pode-se considerar que a sua utopia era um ordenamento da natureza e que, portanto, a ordem social deveria estar mais de acordo com a “natureza humana”, a autora

trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia, fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da denúncia das transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil, o ponto de partida para a utopia de uma sociedade nova que, no entanto, resgatasse a pureza, os vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional. O seu socialismo se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta de uma filha de famílias tradicionais da região, que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio das cidades. Seus personagens são subversivos à medida que contestam a ordem capitalista, mas a sua visão de sociedade futura mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia “liberdade”, “pureza”, “sinceridade”, “autenticidade”. Seus personagens se debatem mais contra o social do que pela mudança social. São seres sempre em busca desta verdade irredutível do homem contra as “mentiras” e o “artifício” do mundo moderno42.

Segundo: o espaço social alimentar engajado às dimensões narrativas do romance constitui uma ferramenta de análise que ultrapassa a compreensão alimentar por apenas a coleta de dados contidos na obra, e parte para o fomento de resquícios históricos imbricados no contexto de sua produção sob o olhar da autora. Ainda é possível inserir o trabalho do leitor (pesquisador) como voz ativa de relação com o objeto de estudo e o tempo atual.

Terceiro: estudos que tomam obras literárias como corpus ganham um campo cada vez mais dinâmico de abertura para uma abordagem transdisciplinar. Ao aproximar eixos múltiplos de conhecimento há diversas contribuições sobre os princípios de sua prática cientifica, desde a observação e

42 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife:

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39

descrição do lugar ao desenvolvimento de novas concepções e abordagens subjetivas nas relações sociais. A literatura como expressão artística cumpre o papel disseminador do conhecimento humanístico, do ato de criação e da produção artística. Como foi visto, a literatura pode viabilizar a produção de estudos científicos por uma ótica que rompe com o pragmatismo dos estudos cartesianamente biomédicos para o fenômeno alimentar. Assim, encontra-se no diálogo da literatura com o tema da fome, uma maneira de despertar no mundo inquietações do imaginário, (re)pensando sobre como compreender os aspectos singulares daqueles que têm fome.

2.2 A FILHA DA CAATINGA: RACHEL DE QUEIROZ

Requer na tentativa de construir vida e obra de Rachel de Queiroz atravessar suas geografias literárias e também de vida. Professora de formação, escritora por experiência, Rachel viveu grande parte da juventude numa casa de alpendre e arquitetura franciscana entre os grandes clássicos da literatura francesa e russa. Lugar modesto, mas intelectualmente primoroso. O gosto pelo ofício da escrita demonstra ser de família, a jovem parente do também escritor José de Alencar quando questionada como poderia ser apresentada responde:

“Bem, eu também sou filha da caatinga. Do sertão central do Quixadá, semeado pelos altos serrotes de granito, no meio dos quais a cidade se aninha” 43.

Os movimentos desse sertão ressequido, a natureza morta e o desalento dos que caminham por essas paisagens são codinomes para uma das maiores obras da literatura regionalista (e por que não nacional?). Para aqueles que nunca viajaram entre as páginas de O Quinze reconhecem-no quando escutam falar sobre o cenário e os personagens que deram origem a obra. A responsável pelo feito apresentou-se inicialmente pela imagem abscôndita de Rita de Queluz. Mas, não demorou muito para revelar-se verdadeiramente: chama-se Rachel Franklin de Queiroz, filha do juiz de Direito e fazendeiro Daniel de Queiroz e Clotilde Franklin de Queiroz.

Nasceu no dia 17 de novembro de 1910 em Fortaleza estado do Ceará, mais precisamente na casa número 86 (hoje 814) da rua Senador Pompeu.

43 QUEIROZ, Rachel de. As terras ásperas. In: . As terras ásperas. 2ªed. São Paulo:

(41)

Lugar sem memórias para menina que logo aos 45 dias de nascida foi levada para as terras da família na fazenda do Junco, em Quixadá, sertão do estado44.

Residiu por lá até os três anos de idade, quando retornou a Fortaleza devido a promoção de emprego ao seu pai Daniel. Na capital, nomeado promotor, pouco exerceu a profissão, logo decidiu deixar o cargo e dirigiu-se até o Governador com a carta de demissão em mãos. Abandonou a carreira jurídica para exercer o seu real ofício: professor de Geografia lecionando no Liceu do Ceará até o ano 191545.

Tempo depois, de volta à Fortaleza e ainda no mesmo bairro, após uma breve estada nas cidades do Rio de Janeiro e de Belém, Rachel “[...] tinha

loucura pra frequentar uma escola e ninguém deixava. Já estava com oito anos e nunca entrara numa sala de aula”. Isso porque sua família era pouco devotada

tanto à educação formal quanto à educação religiosa. Tal situação só foi atendida quando Rachel passou a frequentar a escola de Dona Maria José a pedido de sua mãe, Clotilde. Mais tardiamente somente aos dez anos de idade conseguiu matrícula no Colégio da Imaculada Conceição por insistência de sua avó paterna, que não se conformava de a neta ainda não ter recebido uma educação religiosa46.

Na vida estudantil Rachel trouxe à tona preciosos interesses de geografia e história, mas era um fiasco quando tinha que revelar o que sabia de matemática, gramática, ciências e catecismo, diz ela que:

[...] não sabia tabuada, nem conta de multiplicar, quanto mais dividir e frações! Não sabia catecismo, nem ci ncias, não distinguia um advérbio de um adjetivo, só conjugava verbos “de ouvido”, não tinha a menor noção do que fosse análise gramatical, pior ainda, análise lógica.

44 FANINI, M. As mulheres e a academia brasileira de letras. História, v. 29(1), 2010. p.345-367. 45 ACIOLI, Socorro. Rachel de Queiroz. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007.

46 QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria L. de. Tantos anos. 3ªed. São Paulo: Siciliano, 1998,

(42)

41

Mesmo assim, com um esforço aqui e um empurrão acolá da irmã Apolline que muito ajudara, em 1925, aos quinze anos de idade, Rachel saía com o diploma de professora primária, normalista47. Após a graça de sua formação,

passados dois, em 1927, Daniel, seu pai, comprou o sítio do Pici – nome proveniente de um riacho que ainda existe no perímetro do sítio (hoje uma casa com amplo quintal) e cujo nome era grafado Picy “Tinha açude, pomar, baixio de cana, num vale fresco e ventilado, para os lados da lagoa de Parangaba. Só que nesse tempo se dizia Porangaba, tal como fala José de Alencar em

Iracema”48.

Decorrente da proximidade do sítio de Fortaleza, Rachel começou a frequentar a roda dos literatos da cidade, liderada por Antônio Sales (romancista e poeta cearense), sendo ela a única mulher que frequentava os cafés da Praça do Ferreira, o que para sociedade da época era um estrondoso escândalo. Ainda em 1927, Rachel se iniciava na literatura escrevendo as primeiras crônicas no jornal O Ceará, ofício que conseguiu quando, com o pseudônimo de Rita de Queluz, publicou uma carta satirizando o concurso “Rainha dos Estudantes” – concurso o qual, ironicamente, ganhou três anos depois, quando professora substituta de História no Colégio da Imaculada Conceição. Rachel, portanto, foi jornalista antes mesmo de ser romancista, profissão que fazia questão de reivindicar e que influenciou sobremaneira seus romances, no que a própria escritora evidencia “Os meus romances é que foram maneiras de eu exercitar meu ofício, o jornalismo”49.

47 Em 1965 o Colégio da Imaculada Conceição completou cem anos. Para celebrar o feito seus

dirigentes organizaram um livro, Colégio da Imaculada Conceição: do Gênese ao Apocalipse, nesse ínterim, Rachel era uma escritora consagrada e, como uma ilustre ex-aluna, escreveu sobre os espaços, as pessoas e os instantes que marcaram sua vida naquele local que ela carinhosamente chamava de Santa Gaiola. No capítulo denominado Livro de Rachel, em alusão aos livros que compõem a Bíblia Sagrada escreveu: Nossa Santa Gaiola, agora centenária. Tentei captá-lo num livro [As Três Marias], mas não consegui. Como lhe apanhar a essência íntima, aquele perfume de convento e jardim, de mocidade e clausura, de arrebatamento e misticismo? Lá nos moldaram a alma. Por mais que o mundo, depois, nos batesse e arrastasse, nos seduzisse e açoitasse – o velho molde ficou, irredutível. É uma espécie de irmandade que nos identifica a todas e que reconhecemos imediatamente, seja qual for o tempo e a distância, como um sinal maçônico (p. 163).

48 QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria L. de. Tantos anos. 3ªed. São Paulo: Siciliano,

1998, p. 77.

49 FANINI, M. As mulheres e a academia brasileira de letras. História, v. 29(1), 2010. p.345-

(43)

Foi a aparição nos jornais que autografou sua bravura como escritora. Do ponto de vista estilístico, a iniciante é a mesma que se consagraria na crônica e no romance. Àquela época, em seus dezesseis anos de idade, utilizou a imprensa como ducto para expressar suas inquietações mais latentes: temas sociais e políticos, que tratou sem rodeios, em linguagem corrente e objetiva. Em segundo lugar, os três mil quilômetros que separavam Rachel de Queiroz de São Paulo não lhe embaraçavam a consciência em relação ao momento literário que se vivia no final da década de 1930, quando, no Sudeste, o movimento modernista chegava ao final da primeira fase. Acompanhava tudo à gosto, que graças a sua mãe, possuía em mãos revistas literárias brasileiras e estrangeiras. Nesse município, havia várias fazendas da família Queiroz (Junco, Califórnia, Arizona, Biscaia, Não Me Deixes, Manaus, Umari, entre outras), mas as lembranças mais fortes de Rachel são conduzidas, especialmente, às experiências que teve no Junco, Califórnia e Não Me Deixes. Junco e Não Me Deixes são, ainda hoje, fazendas da família Queiroz e ficam a cerca de 20 quilômetros da sede do município de Quixadá. A família Queiroz era de uma elite rural, cuja atividade econômica principal tinha base na lavoura e na pecuária. Criavam gado e plantavam algodão, milho, feijão e mandioca, entre outras culturas50.

Referências

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