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A VIRADA CULTURAL NA COMPREENSÃO DOS SABERES ESCOLARES

1 CAPÍTULO I – A CAPOEIRA EM QUESTÃO: BUSCAS, CONTEXTOS E

3.1 A VIRADA CULTURAL NA COMPREENSÃO DOS SABERES ESCOLARES

Com uma atitude inter-relacional de reconhecimento e valorização de cada um dos saberes escolares e preocupada em não dar mérito mais para um e menos para outro tipo de conhecimento ou saber, encontra-se nos debates sobre conhecimento escolar e currículo de A.R.C. Lopes a ideia de um estatuto próprio de conhecimento ao conhecimento escolar, aos saberes escolares, no âmbito de uma epistemologia singular e toda própria, o que faz pensar além de uma dimensão educacional geral da Capoeira, a partir de uma compreensão dos saberes da Capoeira como saberes educacionais e escolares, especificamente considerados no currículo escolar das escolas.

Justifica-se a escolha de A.R.C. Lopes (1999) devido à autora discutir conceitos como ‘saber’ e ‘conhecimento’ relacionados ao conceito de ‘conhecimento escolar’ numa perspectiva plural que admite o diálogo entre saberes científicos e cotidianos na escola, especialmente diferenciando o conhecimento dos saberes populares do conhecimento do senso comum, muito embora eles sejam modalidades de saberes sociais, em constante relação na escola, nem sempre de forma harmônica, considerando-se embates político-ideológicos, epistemológico-pedagógicos e sociológicos na área de currículo. “Questões como o confronto de saberes na escola, a necessidade de valorização do saber popular, a crítica às concepções positivistas de conhecimento são alvo de estudos de diferentes autores da sociologia do

currículo”, conforme A.R.C. Lopes (1993, p. 15), ao se referir a Giroux e Simon (1988), Giroux (1988), e Young apud Moreira e Barros (1992)29.

Por meio da abordagem do (s) saber popular (es), com sua importância no currículo e no espaço escolar, A.R.C. Lopes (1993 e 1999) abriu o caminho de encontro ao que se propõe esta pesquisa, isto é, perguntar sobre as possíveis relações pedagógico-epistemológicas entre saberes da Capoeira e saberes da escola, buscando-se compreender os saberes aos quais o conhecimento escolar se constitui.

Especificamente ao saber popular (da cultura popular), um dos fundamentos constitutivos dos “saberes em encontro” (HEINE, 2010) e do “diálogo de saberes” (ABIB, 2004) onde se localiza a Capoeira, numa diversidade de saberes e práticas sociais que a constituem popular e oficialmente como expressão de cultura, educação, esporte e lazer de matriz afro-brasileira.

Nesse sentido, a obra escrita por A.R.C. Lopes (1999) “Conhecimento escolar: ciência e cotidiano” foi fundamental para a constituição das bases teóricas desta pesquisa, a partir das discussões pós-críticas de currículo, principalmente no Brasil, com T.T. SILVA, (2014)30 e

MOREIRA e T.T. SILVA (2011)31, de fundamentação pós-estruturalista, a partir da década de

1990. Acrescentam-se aqui artigos de A.R.C. Lopes (1993; 1997; 2006; 2013; 2015; 2017)32, além do livro organizado por A.R.C. Lopes e Macedo (2010), intitulado “Currículo: debates contemporâneos” e do livro “Teorias de currículo” (2011), escrito por A.R.C. Lopes e Macedo.

Diversos são os tópicos de A.R.C. Lopes (1999), mas de modo geral, a autora trata de questões dinâmicas de produção do conhecimento e relação com os diferentes saberes sociais (conhecimento científico, conhecimento cotidiano – senso comum e saberes populares – e conhecimento escolar); trata das teorias de currículo, cuja abordagem esclarecedora acerca do conhecimento escolar e sobre os saberes em relação aos quais este se constitui, de fundamental importância para o entendimento de que os diferentes tipos de conhecimento, produzidos na sociedade, são saberes sociais.

29 GIROUX, H., SIMON, R. Schooling, popular culture and a pedagogy of possibility, 1988; GIROUX, H.

Critical theory and the politics of culture and voice: rethinking the discourse of educational research, 1988;

MOREIRA, A.B., BARROS, A. A sociologia do currículo e a construção do conhecimento na escola: notas para discussão, 1992. Apud Lopes, 1993, p. 15.

30 SILVA, T.T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo, 2014. 31 MOREIRA; SILVA. Currículo, cultura e sociedade, 2011.

32 Cfr. LOPES, A.R.C. As relações entre senso comum, saber popular e saber escolar, 1993; Conhecimento

escolar: processos de seleção cultural e de mediação didática, 1997; Discursos nas políticas de currículo, 2006; Teorias pós-críticas, política e currículo, 2013; Por um currículo sem fundamentos, 2015; Currículo, conhecimento e 1nterpretação, 2017.

Como a escola é extensão dessa sociedade, há saberes sociais escolares específicos, por isso o conhecimento escolar, em linhas gerais, é caracterizado pelas realidades da ciência e do cotidiano; nesse sentido, o conhecimento científico, o conhecimento/senso, o conhecimento cotidiano e o conhecimento popular (saberes populares) compõem o conjunto de saberes sociais da escola e fundamentam as práticas pedagógicas no espaço escolar.

A pesquisa contemporânea sobre as teorias curriculares e o conhecimento escolar devem bastante às investigações de A.R.C. Lopes, mas é importante esclarecer que “uma das principais marcas do pensamento curricular brasileiro atual é mescla entre o discurso pós- moderno e o foco político na teoria crítica (...)” (LOPES, A.R.C.; MACEDO, 2010, p. 47), com a qual se identifica a pesquisadora Alice Casimiro Ribeiro Lopes e também esta pesquisa. Ademais, “visível, principalmente, nas teorizações que envolvem as teorias pós- estruturalistas, essa mescla encontra-se também, em grande parte das demais produções da área” (Id. Ibid., p. 47-48).

A relevância de “Conhecimento escolar: ciência e cotidiano” (LOPES, A.R.C., 1999) para a investigação sobre saberes da Capoeira e saberes da escola em curso, neste estudo, está no ponto de fusão, ou de “hibridação/hibridização”, firmado na consideração dos saberes populares na discussão curricular e do conhecimento escolar, intersectada à “valorização de uma discussão da cultura, na medida em que vêm sendo intensificadas, sob referências teóricas diversas, as discussões sobre multiculturalismo ou estudos culturais” (Id. Ibid., 2010, p. 49).

A discussão sobre os estudos culturais33 pode ser acessada por meio dos textos de McLaren (2000; 2011), Candau (2002; 2005), Hall (2006), Moreira e Candau (2011), dentre outros, que nesta pesquisa dão sustentação à discussão sobre a Capoeira e seus saberes enquanto cultura popular no currículo escolar. Ocorre que “está em curso um processo de virada cultural que associa a educação e o currículo aos processos culturais mais amplos, contribuindo para uma certa imersão na definição do campo intelectual do currículo” (LOPES, A.R.C.; MACEDO, 2010, p. 49).

Por isso que a partir de A.R.C. Lopes (1993; 1999), o lócus dos saberes da Capoeira no currículo escolar pode ser construído no contexto dos saberes populares, que são saberes

33 Cfr. MCLAREN, Peter. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio, 2000;

CANDAU, V.M. (org.). Didática, currículo e saberes escolares, 2002; CANDAU, V.M.F. Sociedade, cotidiano escolar e cultura (s): uma aproximação CANDAU, V.M. (org.). Cultura (s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico, 2005; HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade, 2006. MOREIRA, A.F.; CANDAU, V.M. (orgs). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas, 2011.

sociais e, inter-relacionados ao conhecimento/senso comum, no conhecimento cotidiano, são os saberes aos quais o conhecimento escolar se constitui.

A partir do quadro a seguir, que é resumido e resultante da AC do livro “Conhecimento escolar: ciência e cotidiano” de A.R.C. Lopes (1999), que pode ser acessado de forma completa no Anexo D (p. 203-205), é possível conhecer as categorias fornecidas sistematicamente com base numa classificação analógica e progressiva de elementos, concebidas após o processo de codificação, conforme seguem:

SÍNTESE CATEGORIAL (CATEGORIAS) – (LOPES, 1999 [R3]) – RESUMIDO

Codificação do Conjunto Categorial (CC) Descrição de Categorias D-XXIII.p/abcde.t-a.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-a.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-

c.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/P; D-XXIII.p/abcde.t-l.CC/D; D- XXIII.p/abcde.t-l.CC/E; D-XXIII.p/abcde.t-m.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t- o.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-q.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-q.CC/C; D- XXIII.p/abcde.t-r.CC/H; D-XXIII.p/abcde.t-s.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t- s.CC/C; D-XXIII.p/abcde.t-t.CC/H.

Conhecimento escolar

D-XXIII.p/abcde.t-e.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-e.CC/C. Saber D-XXIII.p/abcde.t-f.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-f.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-

j.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/C; D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/G; D- XXIII.p/abcde.t-j.CC/I; D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/K; D-XXIII.p/abcde.t- j.CC/O.

Saberes

D-XXIII.p/abcde.t-e.CC/B Conhecimento

D-XXIII.p/abcde.t-c.CC/C Senso Comum

D-XXIII.p/abcde.t-c.CC/D Conhecimento científico

D-XXIII.p/abcde.t-i.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-i.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-

i.CC/C; D-XXIII.p/abcde.t-i.CC/D Saberes Populares

D-XXIII.p/abcde.t-h.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-h.CC/B. Conhecimento cotidiano D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/L; D-XXIII.p/abcde.t-

k.CC/A. Saberes escolares

D-XXIII.p/abcde.t-a.CC/C; D-XXIII.p/abcde.t-g.CC/A. Saberes sociais

D-XXIII.p/abcde.t-j.CC/D Relações entre saber e poder

D-XXIII.p/abcde.t-m.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-l.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-

a.CC/F. Processos curriculares

D-XXIII.p/abcde.t-d.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-d.CC/B. Seleção cultural D-XXIII.p/abcde.t-a.CC/G; D-XXIII.p/abcde.t-a.CC/I; D-XXIII.p/abcde.t-

m.CC/C; D-XXIII.p/abcde.t-n.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-n.CC/C; D- XXIII.p/abcde.t-n.CC/D; D-XXIII.p/abcde.t-t.CC/B.

Perspectiva pluralista de cultura D-XXIII.p/abcde.t-c.CC/E; D-XXIII.p/abcde.t-m.CC/F. Mediação Didática D-XXIII.p/abcde.t-b.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-o.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-

p.CC/A; D-XXIII.p/abcde.t-p.CC/B; D-XXIII.p/abcde.t-s.CC/B. Contradições epistemológicas D-XXIII.p/abcde.t-q.CC/D; D-XXIII.p/abcde.t-t.CC/F. Pluridisciplinaridade Quadro 07 – ANEXO D – Resumo do Quadro de Análise de Conteúdo 1 (c) do [R3]: Categorias (síntese categorial elaborada a partir do texto D-XXIII.p/abcde/LOPES, 1999 [R3]).

Fonte: Elaborado pelo autor M. Pertussatti (2018).

Por meio deste quadro estão evidentes 17 categorias, sendo elas ‘conhecimento escolar’, ‘saber’, ‘saberes’, ‘conhecimento’, ‘senso comum’, ‘conhecimento científico’, ‘saberes populares’, ‘conhecimento cotidiano’, ‘saberes escolares’, ‘saberes sociais’, ‘relações entre saber e poder’, ‘processos curriculares’, ‘seleção cultural’, ‘perspectiva pluralista de

cultura’, ‘mediação didática’, ‘contradições epistemológicas’ e ‘pluridisciplinaridade’. Por essa taxonomia, segue-se rumo à continuidade deste trabalho investigativo dos saberes da escola, face os saberes da Capoeira identificados no capítulo II.

Logo de início quer-se deixar claro que não há uma intenção de abarcar todos os saberes presentes na escola e assim identificá-los ou nominá-los um a um, como que numa listagem de itens com suas explicações ou de uma coleção de definições dos saberes escolares. A razão de questionar sobre saberes da escola está diretamente ligada ao sentido de perguntar sobre saberes da Capoeira, partindo-se do interesse pelas possíveis relações entre ambos. Portanto, a questão de pesquisa deste capítulo III está posta em relação à questão de pesquisa do capítulo II, cuja discussão apresentou e desenvolveu entendimentos de quais sejam os saberes da Capoeira (HEINE, 2010) e quais as suas formas de transmissão (ABIB, 2004), sem se fechar apenas nas categorias que insurgiram do processo de AC das unidades de análise (dos documentos) investigados.

Com esses apontamentos, precisa ficar nítido que esta pesquisa não investiga os saberes da Capoeira (capítulo II) e os saberes da escola apoiada num entendimento apenas explicativo, catalográfico, classificatório ou tipológico, muito embora em muitos momentos seja necessário expor as conceituações de certos termos, para melhorar o entendimento, aprofundar e/ou ampliar a compreensão.

Entretanto, mais que conceituar, o intento deste estudo é problematizar os saberes e suas relações, investigando, por assim dizer, quais seriam os elos entre eles para que possam compor o currículo escolar, conforme discute o capítulo IV, trazendo junto de A.R.C. Lopes outros estudiosos para compor e integrar esta ‘roda do conhecimento’, no ritmo dos jogos simbólicos representativos dos saberes da Capoeira e da escola, em inter-relações no espaço escolar, porém, ainda sem visibilidade no currículo.

Numa postura científica e filosófico-investigativa bachelardiana, que busca constantemente, com espírito vigilante, estar o mais próximo possível da criticidade em vista da retificação do saber, para gerar novos quadros de conhecimento, a delimitação da referência para a fundamentação teórica desta pesquisa, em virtude de desenvolver a discussão das categorias, das inferências e interpretar os dados das ACs, está pautada nos estudos de Alice Ribeiro Casemiro Lopes sobre o conhecimento escolar e o currículo.

Diante disso, assume-se o desafio de se lançar em meio a conceituações de um currículo pós-crítico para a escola, considerando a dinamicidade permanente dos saberes da Capoeira, enquanto cultura popular e ancestral, cujos discursos constantemente estão

construindo e reconstruindo significados e representações simbólicas, em devir, em transformação, a partir da tradição oral dos (das) mestres (as).

Com suas práticas culturais e pedagógicas de Capoeira, desenvolvidas por eles nas suas comunidades de Capoeira – nas vivências com seus discípulos e discípulas, alunos e alunas, pesquisadores e apoiadores; bem como por meio de pesquisas acadêmico-científicas e outras literaturas que têm procurado dar visibilidade à invisibilidade dos saberes e fazeres da cultura popular no espaço e no currículo escolar; as temáticas e os conteúdos de Capoeira se relacionam a grandes temas como preconceito, racismo, segregação, tortura, negação de direitos, de um lado, mas também de luta, libertação, conquista e superação de outro.

A própria possibilidade de se tratar saberes da cultura popular, como no caso da Capoeira, nos âmbitos escolar, acadêmico, até mesmo em outros espaços de desenvolvimento do conhecimento na sociedade, sofre preconceitos históricos, pelas marcas de opressão, marginalização, exploração e discriminação herdadas do sistema escravocrata que o Brasil viveu desde sua fundação. Há um corpo social de corpos individuais cheio de estigmas perpetuados por uma cultura hegemônica, colonialista e eurocêntrica a ser restabelecido por novas compreensões de mundo, de pensamento, cultura e educação, que seja capaz de respeitar de fato toda e qualquer diferença, principalmente nos conflitos e dissensos.