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A visão sistêmica da situação de trabalho

1. Introdução

1.2. A ergonomia

1.2.2. A visão sistêmica da situação de trabalho

Entender as diferentes situações de trabalho sob o ponto de vista da ergonomia implica em considerá-las como um sistema aberto, que proporciona múltiplas soluções para os problemas e revela a dinâmica das inter-relações de seus componentes. A força da ergonomia, segundo Wilson (2000), reside justamente na perspectiva sistêmica e na compreensão integral da situação de trabalho. Qualquer modificação em um dos elementos implica na alteração do sistema como um todo (Figura 3). Os limites impostos pela organização, por exemplo, podem exigir, da parte dos trabalhadores, ajustes informais em suas ações de trabalho para que o compromisso de produção seja efetivado. Tais ajustes, por sua vez, possibilitam a acomodação da organização às regulações feitas pelos trabalhadores. Assim, a atividade de trabalho aparece como o elemento central e organizador do sistema, contribuindo para a estruturação dos diferentes elementos que o compõem (Guérin e cols., 2001).

A compreensão da situação de trabalho exige o conhecimento dos seus elementos e das inter-relações nele existentes. As informações tanto dos trabalhadores como da organização são fundamentais para a abordagem ergonômica. Os dados sobre as características físicas, antropométricas, fisiológicas, sociais, culturais e psicológicas da população de trabalhadores, bem como as informações da organização do trabalho sobre a tarefa prescrita, a hierarquia funcional, os tempos de trabalho, os objetivos e instrumentos de produção, compõem os aspectos que distinguem e singularizam a situação de trabalho.

As condições materiais e físicas para a execução do trabalho constituem fatores que limitam ou dinamizam as inter-relações do sistema, reforçando a interdependência de cada um dos elementos do sistema de trabalho (Abrahão e cols. 2009). Conhecê-los permite, portanto, identificar a natureza das inter-relações existentes e intermediadas pela atividade

17 de trabalho, tomada como princípio norteador das ações de transformação e concepção do trabalho.

A atividade de trabalho para a ação ergonômica passa, inexoravelmente, pela distinção conceitual do trabalho prescrito e seus possíveis desdobramentos. Nessa perspectiva, em ergonomia, dois conceitos são determinantes para a compreensão do trabalho: a tarefa e a atividade.

Figura 3. Abordagem sistêmica da ergonomia sobre a situação de trabalho, baseada no modelo de Guérin e cols. (2001).

Explícitas no contrato social de trabalho ou contidas, implicitamente, entre o que é determinado e o que é esperado pela organização, as instruções e prescrições sobre “o que fazer”, “como fazer” e “quem fará para quem” constituem a tarefa. Seus termos abrangem

(a) o objetivo quantitativo e qualitativo do produto final desejado, e (b) as condições de trabalho, o ambiente físico, os procedimentos, os horários e prazos, os instrumentos e ferramentas, a remuneração e demais meios disponibilizados que possibilitam a realização do trabalho (Abrahão e cols., 2009; Falzon, 2007). Sua importância no sistema de trabalho reside, principalmente, no seu papel indispensável na determinação e na autorização das ações destinadas à realização do trabalho (Abrahão e cols., 2009).

A tarefa prescrita está relacionada aos objetivos, expectativas e exigências organizacionais dentro do processo de produção. No entanto, o produto desejado não corresponde ao resultado final, assim como as condições de trabalho determinadas pela organização não são as condições reais (Guérin e cols., 2001). Na execução da tarefa, o trabalhador tem a sua própria representação do que é prescrito, elaborando a chamada tarefa efetiva, ou tarefa real, “constituída pelos objetivos e restrições que o sujeito coloca para si mesmo” (Falzon, 2007, p. 10). A tarefa real também agrega a compreensão do trabalhador, a respeito do que foi prescrito pela organização, e a tarefa resultante do julgamento do próprio trabalhador, chamada por Veyrac (1998, citado em Falzon, 2007) de tarefa apropriada (Figura 4).

Figura 4. Relação da intervenção dos trabalhadores e das condições de trabalho na formação da tarefa real.

19 Em breve reflexão sobre a necessidade do conhecimento das diferentes fontes de prescrição da tarefa, Daniellou e Béguin (2007) enfatizam que “as prescrições são tão „reais‟ quanto a atividade implementada pelos trabalhadores” (p. 285) e que distinguir as diversas fontes permite a identificação das suas contradições e das limitações para o seu cumprimento. Os autores assinalam, ainda, ser essa identificação “uma dimensão essencial da abordagem ergonômica” (p. 286).

Elemento integrador das características técnicas, organizacionais e dos trabalhadores, a atividade é uma das principais bases para a compreensão e definição dos objetivos dos trabalhadores no seu compromisso de produção dentro do sistema. Conceitos sobre atividade esbarram na amplitude e na diversidade de aplicação do termo em inúmeras áreas do conhecimento. A abordagem conceitual ergológica da atividade sugerida por Yves Schwartz (2007) constitui a união de duas fontes resultantes do processo histórico- filosófico: (a) a linha de pensamento que preconiza a impossibilidade de previsão, antecipação e padronização da atividade humana, e (b) a linha que julga ser impossível a coexistência com a predeterminação e normatização das atividades humanas. Schwartz aponta que a atividade humana é o processo dinâmico de tentativa de articulação entre as limitações impostas por toda forma de normatização e as inúmeras experiências da vida humana.

No mundo do trabalho, essa abordagem amplia a distinção entre tarefa e atividade, e transcende a noção de que a atividade refere-se somente a movimentos e gestos na execução do trabalho, ao incluir a dimensão subjetiva na realização do trabalho (Abrahão e cols., 2009). As tomadas de decisão e as estratégias utilizadas pelos trabalhadores para a resolução de problemas, com base na construção de competências individuais e coletivas, por meio da aquisição de conhecimento, habilidades e experiências (Béguin, 2007b), constituem importantes dimensões para a coerência do sistema.

Ao entender a atividade como a síntese dos diferentes aspectos que a determinam no sistema de trabalho, tais como as características dos trabalhadores, os objetivos e a estrutura da organização, as condições físicas de trabalho, e as tarefas prescritas e reais, ela comparece como o elemento estruturador (Abrahão e cols., 2009), integrador e articulador (Béguin, 2007a) das inter-relações do sistema de trabalho. Igualmente, a atividade de trabalho está inserida num dado contexto sócio-técnico, que tanto oferece os recursos necessários para a sua execução, como os seus limites que definem o trabalhador como um “agente inteligente” (Béguin, 2007b). As experiências vividas nas interações do contexto da situação real de trabalho (Wilson 2000) são fonte de revisões e novos investimentos no seu papel dentro do sistema (Béguin, 2007b).

Cabe, aqui, o posicionamento de Hubault (2004) ao tratar a atividade como um fato que é percebido pela vivência própria do trabalhador e, simultaneamente, é submetido à verificação científica, ao explicar os fatos observados. Assim, é interesse dos estudos em ergonomia tanto a atividade observável como a atividade não observável, construída a partir das experiências e representações dos trabalhadores. Esse entendimento ratifica a ideia de que a atividade não pode ser interpretada como uma simples execução de tarefa (Abrahão e cols., 2009; Daniellou & Béguin, 2007), sendo ampliada, significativamente, quando vista como favorecedora e renovadora da tarefa prescrita (Hubault, 2004) destinada a novos projetos.