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2 MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL DE REFERÊNCIA

2.3 O funcionamento do poder em Foucault

2.3.1 A visão usual do poder: a concepção jurídico-discursiva

Frequentemente, escutamos menções aos poderosos e aos que não possuem poder. Os primeiros exercem poder, controlam, reprimem e dominam os segundos, ou seja, o poder é apresentado como algo que reprime e frequentemente proíbe, geralmente concedido pela posição ou pelo cargo que uma pessoa ocupa dentro da organização.

Para Foucault (1988), esse é o modo jurídico-discursivo, já que está essencialmente centrado na enunciação da lei. Segundo Silveira (2005), esse modo jurídico-discursivo é proveniente das grandes instituições que se desenvolveram na Idade Média: a monarquia, o Estado nacional e seus aparelhos.

Em tais instituições, o poder exercia-se como instância de confisco, direito de apropriação de uma parte das riquezas e da vida das pessoas para suprimi-las, quando atentavam contra a boa ordem do Estado, explica Silveira (2005). As instituições (Estado e Igreja) funcionavam como instâncias de regulação e arbitragem. O poder se formulava na legislação personificada nessas instituições e, por isso, o direito constituiu o modo de manifestação e de aceitabilidade desse poder (FOUCAULT, 1988). Foucault (1988) observou que foi assim que o poder se consolidou como o grande guardião da justiça e, por isso, ocorria sua aceitação social.

Assim, na análise de Silveira (2005), o poder analisado por meio da concepção jurídico-discursiva possui dois traços fundamentais:

a) A relação negativa – o poder sempre exerceria uma relação negativa: rejeição, ocultamento, exclusão etc.;

b) A instância da regra – o poder seria essencialmente o que dita a lei.

Antes de prosseguir esta discussão, cumpre dizer que Foucault (1988) não entende o poder como,

um conjunto de instituições que garantem a sujeição das pessoas a um determinado estado ou soberano, também não o percebe como modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha se tornado uma regra; tampouco o vê como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou um grupo sobre outro e que tenha seus efeitos atravessando o corpo social como um todo. (SILVEIRA, 2005, p. 45).

Foucault (1995), discute uma analítica do poder para elucidar como o poder se exerce concretamente, suas especificidades, seus mecanismos e seus efeitos em níveis diferentes da sociedade.

De acordo com Foucault (1988, p. 88-89) devemos primeiramente entender o poder como “[...] o jogo que, por meio de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si”. Enfim, para Foucault (1988), devemos entender o poder como as estratégias em que se originam e cuja cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.

Se imaginarmos que as relações de poder se fundam exclusivamente em um caráter negativo como explicar o sucesso das inúmeras redes de dominação existentes em sociedade, que vem se perpetuando com certa facilidade? Talvez seja modificando nossa percepção do fenômeno do poder que podemos entender melhor essa dinâmica, considera Maia (1995). Assim, parece fazer mais sentido sustentar a seguinte posição:

o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 1979a, p. 8).

Foucault compreende o poder como um conjunto de correlações de forças que se autoconstituem, produzem e organizam os domínios em que estão presentes e inseridas (SILVEIRA, 2005). Essa concepção de poder, segundo esse autor, remete à noção de onipresença inerente a ele, já que é oriundo e atinge todos os lugares. Isto é, as relações de poder se enraízam profundamente na conexão e no conjunto da rede social.

Em sua análise da obra de Foucault, Machado (2017) explica que não existe uma teoria geral de poder, na qual podemos entender o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procura definir por suas características universais. O poder é uma prática social, e como tal, constituída historicamente.

Um importante aspecto nesta concepção de poder reside no fato do abandono de qualquer modelo centralizador. Ou seja, o poder não deve ser pensado como fundamentalmente emanado de um ponto (em geral, identificado com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente, na procura de uma compreensão da dinâmica das relações de poder, a ideia de uma rede. Rede esta que, como explica Maia (1995), permeia todo o corpo social, articulando e integrando os diferentes focos de poder (Estado, universidade, prisão, hospital, asilo, família, fábrica, etc.) que se apoiam uns nos outros. Com efeito, esta assertiva conduz a uma forma diferente de perceber o poder, pois por meio deste modelo relacional abre-se a possibilidade de compreender com mais acuidade a dinâmica, fragmentada, móvel e, às vezes contraditória, do poder em funcionamento na sociedade (MAIA, 1995).

Nesta perspectiva, o poder é concebido como algo que existe em relação, envolvendo forças que se chocam e se contrapõem. Deve-se frisar esta característica pois ela é absolutamente essencial à compreensão foucaultiana de poder, ressalta Maia (1995). A partir desta ideia, temos um dos princípios da analítica do poder: “deve se ter sempre em mente o reconhecimento de uma pluralidade de correlações de forças - constitutivas das relações de poder - que atravessam todo o corpo social” (MAIA, 1995, p.89). Este aspecto relacional informa toda a perspectiva foucaultiana, como ele explica:

O que caracteriza o poder que estamos analisando é que traz à ação relações entre indivíduos [ou entre grupos]. Para não nos deixar enganar; só podemos falar de estruturas ou de mecanismo de poder na medida em que supomos que certas pessoas exercem poder sobre outras. O termo ‘poder’ designa relacionamentos entre parceiros [e com isto não menciono um jogo de soma zero, mas simplesmente, e por ora me referindo em termos mais gerais, a um conjunto de ações que induzem a outras ações, seguindo-se umas às outras]. (FOUCAULT, 1982, p. 217).

Silveira (2005) explica que se analisarmos bem as ligações entre relações de poder e estratégia veremos, mais especificamente, que elas não são possuídas por ninguém, mas, induzem a estados de poder. Apoiado em Foucault (1987 e 1988), Silveira argumenta que não há uma oposição entre dominadores e dominados como a matriz geral e global das relações de poder, em uma dada sociedade, mas que, antes disso, as múltiplas correlações de força que se formam e atuam nas organizações, nas famílias e na universidade (como é o caso deste

estudo) servem de suporte a amplos efeitos de clivagem (divisão/fragmentação) que atravessam o corpo social como um todo (de cima para baixo, de baixo para cima, em diagonal e lateralmente), formando uma linha de força que transpassa os afrontamentos locais e os ligam entre si redistribuindo alinhamentos e homogeneizações. “Assim, as grandes dominações são efeitos hegemônicos sustentados pela intensidade dos afrontamentos.” (SILVEIRA, 2005, p.50).

A pesquisa de Foucault impõe um deslocamento em relação ao Estado ao identificar a existência de uma série de relações de poder na sociedade (por exemplo, entre homem e mulher, entre membros de uma sociedade, entre colegas de trabalho), que se colocam fora do Estado. Dar conta destas relações é uma das preocupações da analítica foucaultiana, pois sem entendê-las dificilmente se poderá alterar efetivamente o jogo do poder na sociedade. “Mas não se negligencia o papel do Estado, apenas este papel é deslocado em relação às análises tradicionais”, assinala Maia (1995, p. 88).