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A Voz da Psicanálise e o Discurso de Normalização Social

No documento Download/Open (páginas 74-77)

Conforme Donzelot (2001), os psiquiatras, no final do século XIX, lutaram para expandir seu campo de atuação, que se restringia a pareceres sobre crimes e criminosos. Eles

queriam atuar com os menores mais do que com os adultos, atuar com a profilaxia mais do que com a própria delinqüência. A escola gratuita e obrigatória passou a atender uma população com dificuldades diversas e não possuía mecanismos para identificar os problemas que atingiam as crianças. Por outro lado, o exército enfrentava os mesmos problemas com a generalização do alistamento e a necessidade de adestramentos especiais, gerando uma demanda percebida pela a psiquiatria.

A justificativa utilizada pelos psiquiatras para os diferentes problemas enfrentados pela escola, pelo exército e pela sociedade, estava centrada na infância como a promotora dos problemas. O delinquente apresentava os efeitos patológicos das fraquezas infantis, quando não corrigidas em tempo hábil. Nasce a psiquiatria infantil, não ligada a um objeto próprio, a uma patologia mental infantil, mas como resultado das novas ambições da psiquiatria e de sua busca por inclusão no campo social (Donzelot, 2001).

De acordo com este sociólogo francês, o esforço decisivo da psiquiatria infantil foi o deslocamento da categoria jurídica para a categoria da educabilidade. Por outro lado, o aparelho judiciário estava ávido por reforma e queria a substituição da coerção por educação. Na luta da psiquiatria por inclusão social e na busca do juiz para abrandar a punição surge a psicanálise e como diz Donzelot (2001, p. 170), “novos diretores da consciência”.

Segundo Donzelot (2001), na Europa, no final do século XIX, o costume de deixar os filhos a cargo dos serviços sociais era um gerador de flagelos sociais. Era necessário deixar as crianças com suas famílias, mas controlar a educação que recebiam. Era necessário controlar os trabalhadores sociais, que, na maioria das vezes, mantinham as famílias apenas no âmbito da assistência e era preciso revalorizar o juiz de menores. A psicanálise e a psiquiatria transferem ao juiz o controle jurídico de crianças delinquentes, anormais e as assistidas. O psiquiatra que, anteriormente, era o rival do juiz, com a psicanálise se tornou seu aliado indispensável e passou a oferecer opções de medidas e distribuição dos menores para o juiz. A psiquiatria limitou a autonomia dos patronatos, circulou livremente nas instâncias assistencial, médica e penal e passou de um papel menor de elaboração de pareceres nos casos difíceis, para o papel de inspirador das decisões judiciárias. Para as escolas, passou a fornecer uma técnica de intervenção à ação educacional e iniciou a instauração de um novo sistema com a utilização da família nas práticas de normalização. Na visão de Donzelot (2001), o psicanalista com a ajuda dos trabalhadores sociais marcou o início de seu reinado.

Conforme Donzelot (2001), a psicanálise ocupou o lugar da psiquiatria e construiu um conhecimento que possibilitou tratar cientificamente o problema da sexualidade. Deu a instrução sexual não mais centrada nas doenças sexuais, mas no equilíbrio mental e afetivo e

na relação família-escola. Surgem as associações relativas ao sexo e à família como os grupos de aconselhamento conjugal, Escola de Pais e Planejamento Familiar, este criado em 1956.

A história da sexualidade tomou outro caminho, mais discreto, menos glorioso, menos épico. Em torno dela ainda se pode muito bem continuar a reativar os fantasmas das lutas passadas, os prestígios da repressão, as obsessões da destruição. É uma forma de fazê-la retomar o fôlego que lhe faz falta. A solução da questão familiar desertou do campo escabroso da medicina para ocupar aquele, muito mais confortável, da psicanálise (Donzelot, 2001, p. 170).

A educação sexual surge desde o início do século XX ligada a uma campanha de higiene e tem como lócus privilegiado a escola primária. Muitas campanhas, no entanto, foram feitas contra o ensino da sexualidade. Em 1967, na França, foi criada uma lei que autorizou, pela primeira vez, o ensino de sexualidade no liceu que o desejasse, sendo ministrado por grupos de aconselhamento conjugal, Escola de Pais ou do Planejamento Familiar. O conteúdo estava centrado no desenvolvimento psicossexual harmônico da criança, na preparação para a vida adulta em seus aspectos individuais, conjugais e parentais, na prevenção dos distúrbios mentais e na desadaptação escolar (Donzelot, 2001).

Partindo da escola, dos problemas de desadaptação escolar, passou-se para os problemas da procriação, da vida familiar e da harmonia conjugal, para finalmente, voltar-se à escola com a instauração da educação sexual. Neste circuito escola- família, o operador de cada etapa foi a psicanálise (Donzelot, 2001, p. 177).

A psicanálise teve a autoridade de transferir os problemas de aprendizagem escolar para os da harmonia familiar. Para Donzelot (2001), a corrente defensora da família ocupou um lugar de elaboração contínua de uma política discursiva regida pela psicanálise, que serviu de suporte para todas as técnicas de direção da vida relacional.

Donzelot (2001) concluiu que a psicanálise conseguiu influenciar tão fortemente o último século porque seus profissionais não trabalhavam com coerção e nem com promessas de libertação, apenas com a possibilidade de cura. Não procuravam os clientes, não visitavam as casas como um assistente social ou um educador e não queriam ser confundidos com trabalhadores sociais, porque não aceitavam outro mandato senão a demanda do sujeito. Não aceitavam denúncia, intrusão direta na vida do cliente, inquéritos, investigação de comportamento, vigilância e correção. Aceitavam apenas, aquilo que os clientes relatavam e recusavam qualquer eventual intervenção. Com o rigor das instituições e a redução da família a seu núcleo (pai, mãe e filhos), os psicanalistas, em seus diferentes campos teóricos, desempenharam o papel de ajudar a reencontrar o sentido da vida no mundo moderno.

A psicanálise satisfez as ambições das famílias e difundiu as normas sociais porque não repassava diagnósticos fatais, valorizava a possibilidade de mudanças no comportamento da criança e incitou o reequilíbrio das atitudes. O objetivo era destituir a família do seu poder total de controle social dos filhos, mas ao mesmo tempo não anulá-la para que novas tarefas educacionais e sanitárias fossem cumpridas. Para a psicanálise, a relação entre pais e filhos não estava baseada na hereditariedade e transmissão, mas em sua reestruturação e liberação dos vínculos familiares. Não incriminava a pessoa em particular e nem o seu comportamento inadequado, mas sim as relações estabelecidas no interior da família e as representações mentais inconscientes de seus membros (Donzelot, 2001).

Para o sociólogo francês, o século XIX não descansou enquanto não equilibrou dois objetivos: a necessidade de impor normas sociais de saúde e educação e a de manter os sujeitos e as famílias autônomos e ambiciosos para a liberdade de iniciativa. O freudismo conseguiu salvar a referência familiar, lançando suspeitas sobre as carências e as práticas abusivas da família, mas também a deixando com um horizonte a conquistar. A psicanálise se tornou operacional, porque justificou e reiterou a normal social e evitou os perigos reais de autonomia da família. Teve por missão controlar o corpo, não o corpo higiênico dos médicos, nem o corpo dos psiquiatras e psicólogos, mas o corpo representado pela revolta das mulheres, o corpo que recusava disciplinas, o corpo que demonstrava uma realidade e denunciava uma irrealidade, este era o corpo que a psicanálise precisava compreender para controlar. É importante ressaltar que a psicanálise desenvolveu várias escolas com interpretações diferenciadas e ampliadas do pensamento do seu fundador, Sigmund Freud. A seguir veremos as teorias deste autor sobre a sexualidade infantil.

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