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Zumthor (2010) diz que “a voz ultrapassa a palavra”. Muitas vezes não importa o significado das palavras, basta o som da voz – a música da voz – para suscitar as mais intensas emoções. Zumthor traz como exemplo a voz da feiticeira Circe, personagem da Odisseia de Homero. O poeta grego diz que a voz dela se assemelha à voz das sereias, e elogia seu “tom e calor” (ZUMTHOR, 2010, p. 15). Para Zumthor, em uma comunicação poética, a linguagem tem uma “função encantatória”, ela aspira libertar-se das limitações semânticas e alcançar a plenitude, “onde tudo que não seja simples presença seja abolido” (Idem, p. 179).

A qualidade de uma comunicação poética depende da forma como as palavras são ditas, depende da técnica do artista, tanto ou mais do que o conteúdo da mensagem – dependendo da intenção do ator. As palavras em cena não podem restringir-se somente ao seu significado literal. Falar em cena não é apenas discorrer sobre uma associação de ideias, mas é uma ação vocal que “desencadeia impressões por associação de imagens ao despertar e explorar as potencialidades da voz e apropriar-se da palavra” (LOPES, 1997, p. 25, grifo da autora).

Lopes afirma que há uma conexão “profunda e instintiva” da palavra com o sensorial e essa compreensão leva o ator a revelar mais do que descrever o conteúdo da mensagem: “a palavra, de símbolo, torna-se feita carne” (Idem, p. 30, grifo da autora).

As palavras em cena precisam ir além do uso cotidiano, o ator precisa transformá-las em poesia, em imagens, que incitam sensações e emoções: “Quando as palavras são vistas, saboreadas, sentidas, tocadas, elas criam profundidade e rompem os padrões estabelecidos do pensamento; despertam emoções, memórias, associações e detonam a imaginação; trazem vida” (Idem, p.29).

Fortuna (2000) também considera a voz como “portadora da sensorialidade da palavra” (p. 123). Ela propõe que o ator visualize não a palavra em si, apenas sua exterioridade, pois isto pode ocasionar uma interpretação superficial, uma repetição mecânica de um discurso vazio. O ator precisa buscar os sentidos ocultos das palavras, sua essência: “Assim, o ator dilacera o mero

efeito decorativo das palavras e emissões, para geri-las em ações viscerais” (FORTUNA, 2000, p. 119).

É preciso “desenhar imagens visuais” (STANISLAVSKI, 1976) para o que se diz, perceber quais sensações e imagens as palavras despertam para encontrar a melhor forma de dizê-las. “Para o ator, uma palavra não é apenas um som, é uma evocação de imagens” (Idem, p. 132). Stanislavski afirma que palavras ditas “sem alma ou sentimento” são apenas sons vazios. Para ele, a função da palavra em cena é a de despertar “toda sorte de sentimentos, desejos, pensamentos, imagens interiores, sensações visuais, auditivas e outras” (p. 128), tanto no próprio ator, como no público.

Lecoq (2010) conduz os alunos a brincarem com as sensações das palavras em várias línguas. Ele considera que as palavras têm movimento, que são organismos vivos e pede aos alunos que busquem o “corpo das palavras”. De acordo com a língua utilizada, as palavras podem suscitar sensações diferentes. Lecoq dá como exemplo a palavra “manteiga”: em francês, le beure, a manteiga parece estar espalhada, derretida, enquanto que em inglês, the butter, ela parece rígida, em forma de tablete. Ao trabalhar com poesias, Lecoq também sugere que os alunos percebam as sensações de frases inteiras. Por exemplo, na frase do poema de Charles Péguy: “la meuse endormeuse et douce à mon enfance”, Lecoq diz que essas palavras “escorregam na planície com a mesma lentidão de um rio” (LECOQ, 2010, p. 88).

Eleonora Montenegro (2007) também sugere a exploração das letras e sons, buscando além do significado das palavras, os sons que elas evocam, “seus cantos e suas capacidades de se fazerem ação e emoção” (p. 322). Montenegro diz que a fala pode ser assimilada pelo público em vários níveis, desde o máximo de significado – no sentido literal das palavras – a um máximo de som, “compreendida como pura música” (p. 323), dependendo da intenção do intérprete. O ator não pode ver as palavras de um texto como meras palavras, mas olhar para elas com encantamento, e encantar também a platéia com seu “corpo-voz-impulso-espaço-movimentos em energia viva e presenteísta” (p. 324).

A arte do ator não está em o quê ele diz, mas em como ele diz: “A arte trabalha antes de mais nada com a percepção. Seu poder principal não está em o quê dizer, mas no como” (BURNIER, 1999, p. 10, grifo do autor). É necessário, portanto, o saber dizer, rechear as palavras de todas as possibilidades e atrativos que as transformem em ação, gesto vivo e intenção

clara. A fala do ator em cena precisa ter vida, “ter tanta vida que ela vai virando ritmo, que ela vai virando música” (CORREA apud GAYOTTO, 1997, p. 26). O ator precisa escolher os sons como um compositor de música, planejar cuidadosamente sua fala, podendo exaltar o significado da palavra ou modificá-lo, de acordo com sua enunciação. É preciso “cantar as palavras”, como fala Stanislavski:

Cabe ao ator compor a música de seus sentimentos para o texto do seu papel e aprender como cantar em palavras esses sentimentos. Quando ouvimos a melodia de uma alma viva, então, e só então, podemos avaliar plenamente o valor e a beleza das falas e tudo que elas encerram (STANISLAVSKI, 1976, p. 129).

A exploração de parâmetros musicais é um excelente recurso para conseguir desenhar imagens com a voz: “Quando associada à palavra, a música tem um grande poder de sugerir imagens, de colorir e avivar as palavras” (RATNER, 1983, p. 2). O que se quer expressar pode ser conseguido através de um “desenho musical” da fala, manipulando os recursos de infinitas variações que são os parâmetros musicais.

Maletta entrevista o ator e diretor Paulo José em sua tese, com quem trabalhou em 2003 na montagem do espetáculo O Inspetor Geral, com o grupo Galpão – MG. Segundo Maletta, desde o início da montagem, Paulo José preocupava-se com o estímulo às diversas habilidades artísticas, mas, quanto ao estudo do texto, a música era referência fundamental:

O conjunto de qualidades não verbais da voz, como o timbre, registro tonal, volume, ritmo geral da fala, somado às alterações provocadas pelo riso, choro, tosse, bocejo... São esses elementos que criam a dinâmica da fala, isto é, são as variações de intensidade, andamento, inflexões e de tantos outros parâmetros

oferecidos pela música que permitem que o ator possa dizer o texto com a

qualidade devida (JOSÉ apud MALETTA, 2005, p.209, grifo meu).

Paulo José destaca a necessidade do ator de conhecer o vocabulário e teoria musicais. Ele ensina aos atores que, para trabalhar variações na fala, faz-se necessária a percepção de “diversos elementos do campo da música como o ritmo e o andamento, no que tange à idéia de movimento, e a intensidade, a tonalidade e a sonoridade, no que se refere ao som” (Idem, p. 210).

Outra importante entrevista feita por Maletta em sua tese foi com a atriz Bibi Ferreira. O título dessa entrevista é: A Musicalidade como Recurso Fundamental para o Trabalho com o Texto – O Ator como Regente de um Texto Orquestrado: A Experiência de Bibi Ferreira. Ela

fala de sua carreira artística, mostrando como sua formação em música e dança foram fundamentais para o seu trabalho como atriz. Mas, assim como Paulo José, no que diz respeito ao estudo do texto, ela considera a música como essencial. Sobre a sua atuação no espetáculo Gota

D’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, ela fala:

Quando estudei esse papel... eu estudo como se fosse música. Por que razão? Porque a coisa mais desagradável é você ouvir um solilóquio – e lá temos vários solilóquios – ditos num tom igual, falando tudo aqui assim praticamente na mesma nota [...] e não tendo que procurar a música da palavra que é muito importante e recebi de meu pai falando em casa porque ele falava muito bonito. Aquilo foi apurando o ouvido (FERREIRA apud MALETTA, 2005, p.225, grifo do autor).

O próprio Maletta também declara que sua formação musical contribuiu para o seu desempenho como ator. Dentre as contribuições, destaco: “a habilidade para reconhecer a musicalidade intrínseca aos textos e elaborar uma partitura vocal para a interpretação [...]; uma grande disponibilidade corporal, conseguida através de uma prática constante dos exercícios de associação corpo e voz” (MALETTA, 2005, p. 176).

Como fazer para encontrar a música da palavra ou transformar as palavras em música? O presente trabalho é um caminho percorrido, uma experiência unindo teoria e prática, o desejo de buscar uma voz que se realiza como movimento vivo e transformador.

Não proponho algo novo, pois, há tempos, grandes encenadores se utilizam da música ou de elementos do discurso musical em seu fazer teatral. Há tempos que os atores constroem partituras físicas e vocais, recorrendo a termos musicais no trabalho com o texto, e rabiscam seus textos anotando as inflexões, pausas, ênfases, ações, objetivos, subtextos, etc. Relato uma forma, ou formas de manipular parâmetros musicais no processo de criação vocal do ator.

Cap. 2 – CONSTRUINDO O BARCO

“Uma música que seja como os mais belos harmônicos da

natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios, aumentando gradativamente de tom até atingir aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito. Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto. Uma música que seja como a nota lancinante deixada no ar por um pássaro que morre. Uma música que seja como o som dos altos ramos das grandes árvores vergastadas pelos temporais. Uma música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes em busca de uma harmonia nova. Uma música que seja como o vôo de uma gaivota numa aurora de novos sons...”

Descrevo a seguir alguns parâmetros da música que considero recursos fundamentais, que permeiam e auxiliam minha jornada de descobertas. Não é minha pretensão adentrar profundamente na teoria e história da música, mas explicar os parâmetros escolhidos na perspectiva do que utilizo em minha prática. Busco me apropriar desses parâmetros, trazendo-os para todo trabalho corporal e vocal em cena, com foco especial para o estudo do texto e possibilidades de como dizê-lo.