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2.3 Abolicionismos

2.3.2 Abolicionismos no Brasil

No Brasil, conforme Batista (2011, p. 61-62), a perspectiva abolicionista encontra seu mais fecundo representante no Núcleo de Sociabilidade Libertária, o Nu-Sol, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenado por Passetti:

Edson Passetti e seu Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária, da PUC-SP) produzem, há anos, o que EXISTE de inovador e libertário na crítica do autoritarismo e do poder punitivo no Brasil. Junto com Salete de Oliveira, Acácio Augusto, Thiago Rodrigues, entre outros, eles construíram um espaço potente, criativo e múltiplo para os discursos deslegitimantes da pena. É deles a mais militante bandeira brasileira do abolicionismo penal.

Passetti é Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e leciona na mesma instituição, desenvolvendo pesquisas principalmente nos temas anarquismo, teoria política, abolicionismo penal, amizade, ecopolítica e sociedade de controle. O Núcleo de Sociabilidade Libertária, da PUC- SP, que Passetti integra como pesquisador, por sua vez, de acordo com informações disponibilizadas junto ao CNPq, tem como linhas de pesquisa anarquia, anarquismos e abolicionismo penal; poder,

resistências e liberações; relações internacionais; sociedade de controle e estética da existência. Conforme termos do próprio grupo, em sua página oficial, estuda as “[...] relações entre política, resistências e liberações [...]. Articulação entre as humanidades, dissolvendo fronteiras do conhecimento, ultrapassando a relação interior/exterior e fornecendo análises de fluxos internacionalistas”.

Desde 1999, o Nu-Sol publica o boletim eletrônico mensal

hypomenmata; entre 1999 e 2003, editou a coleção Escritos Anarquistas; em 2002, iniciou a publicação da revista semestral

autogestionária Verve, com estudos e pesquisas libertários, e, desde 2007 publica, semanalmente, a Flecheira Libertária. Também desde 2007, o Nu-Sol organiza aulas-teatro.

O grupo disponibiliza ainda, em sua página, um conjunto de verbetes sobre abolicionismo libertário, como abolicionismo penal, criminalização, defensoria pública, democratização da prisão, justiça restaurativa, penas alternativas, periculosidade, seletividade e situação- problema, dentre vários outros, de conteúdo objetivo, crítico e radical, confirmando a descrição de Batista em sua Introdução crítica à

criminologia brasileira.

Consultado o verbete “abolicionismo penal”, tem-se:

O abolicionismo penal é um estilo de vida livre. Contesta a ontologia do crime, mostrando que este é uma construção histórica por parte da sociedade que não sabe lidar com o insuportável. O abolicionismo penal é também um movimento acadêmico e social instituinte de novas linguagens e práticas não criminais na solução de uma situação problema. Informa e combate as seletividades do sistema penal que recaem regularmente sobre aqueles vistos como perigosos, suspeitos, anormais, sediciosos, indecentes, libidinosos, subversivos. O abolicionismo penal ganha vigor na década de 1970, associado aos movimentos antiprisionais. Não é uma utopia e tampouco uma alternativa de reforma ao sistema penal. Sua atualidade está em investir de maneira radical na obstrução do encarceramento de qualquer pessoa e, principalmente, de jovens. Ele é composto por forças heterogêneas que enfrentam desde os conservadores aos reformistas críticos que não abrem mão do direito penal e da

continuidade da prisão. Nele encontramos radicalizações libertárias que apontam para a possibilidade de abolição do sistema penal e também tangenciamentos com o marxismo. O percurso abolicionista atualiza os embates anarquistas contra o castigo, desde a crítica de William Godwin no final do século 18, passando pela corajosa prática anarquista que, já no século seguinte, explicitava que o direito moderno não só é uma invenção da burguesia, como a seletividade inerente ao sistema penal é efeito indissociável da gestão de legalidades e ilegalidades. O abolicionismo penal atrai tanto forças libertadoras voltadas para a utopia da sociedade igualitária, quanto as forças liberadoras que buscam um abolicionismo penal heterotópico. O abolicionismo penal faz bem à saúde e é uma possibilidade singular, possível e urgente para abolir o encarceramento de jovens no Brasil (NU-SOL, grifo nosso).

Destaca-se do verbete a indicação de que o abolicionismo se destina à obstrução do encarceramento, em especial, do encarceramento dos jovens. Em entrevista recente sobre a proposta da redução da maioridade penal, Passetti (2015) reafirmou seu compromisso para acabar com a prisão de jovens e adultos, mas salientou que acabar com a prisão dos jovens é primordial. Segundo ele, “do ponto de vista estratégico, nós deveríamos pensar que soluções educativas, num país que se diz „a pátria educadora‟, ela tem pra me dar que não seja castigar, não é?”

Sem esgotar o conjunto de verbetes oferecido pelo Nu-Sol, mas para permitir uma visão um pouco mais abrangente do posicionamento do grupo, colhem-se outros exemplos. Quando fala de “defensoria pública”, caracteriza-a como “mero paliativo humanista” do sistema penal, caso sua implementação não esteja calcada em crítica ao sistema penal. Sob o mesmo viés, tem-se que “Democratizar a prisão é ajustá-la ao presente para garantir sua continuidade sem revoltas e ao mesmo tempo reafirmar o imperativo de cárceres de segurança máxima”.

De igual modo, acerca da justiça restaurativa, entende o Nu-Sol que sua inserção no direito contemporâneo é resultado da “colonização criminal de práticas específicas apartadas de um olhar penal da cultura Maori [da Nova Zelândia] na solução de seus problemas” e, como

programa governamental, teria aparecido como uma “prática apaziguadora” dos protestos daquela população tradicional. No Brasil, a pretensão da justiça restaurativa seria a de “institucionalizar a criminalização ampliada e seletiva, exercitada, mais uma vez, como tribunal sobre o corpo dos jovens, agora como modulações da imediação de conflitos a partir da casa, da escola, da comunidade”.

À dura crítica do Nu-Sol, parece se encontrar uma resposta na obra de Achutti, que busca justamente fundamentar a implantação da justiça restaurativa no Brasil a partir do abolicionismo:

Embora amplamente reconhecidos por suas críticas certeiras ao sistema penal, o aspecto construtivo das críticas dos autores é pouco considerado pela literatura jurídica e criminológica brasileira – igualmente pouco atenta aos cenários internacionais da justiça restaurativa e da sua importância prática e teórica enquanto mecanismo alternativo de resolução de conflitos (ACHUTTI, 2014, p. 122).

Assim, segundo o autor, os autores abolicionistas Hulsman e Christie só seriam reconhecidos no Brasil por suas críticas ao sistema penal, ignorando os pesquisadores brasileiros também o aspecto construtivo das críticas abolicionistas. Além disso, a literatura jurídica e criminológica brasileira estaria pouco atenta às experiências de justiça restaurativa e ao seu potencial.

3 MENORISMO NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DO ESTEREÓTIPO DE “MENOR INFRATOR”13

O estudo da produção acadêmica nacional pós-Estatuto da Criança e do Adolescente e das disputas hermenêuticas entre o Direito Penal Juvenil e a responsabilização estatutária, sob a perspectiva de um grande balanço crítico, deve ser, necessariamente, antecedido por incursão no modelo teórico e prático que a Lei nº 8.069/1990 substituiu, isto é, o modelo menorista.

Dentre os pontos em comum entre os autores do Direito Penal Juvenil e da responsabilização estatutária está justamente a crítica à legislação e à doutrina que antecederam a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, especialmente, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, faz-se necessário apresentar um panorama acerca dos Códigos de Menores brasileiros e da produção menorista que interpretou e sustentou esse modelo, a fim de melhor compreender as críticas que posteriormente seriam dirigidas ao menorismo.

A abordagem se justifica também na medida em que a produção pós-Estatuto frequentemente aponta a mudança paradigmática operada pela nova lei como ponto de partida para a defesa seja do Direito Penal Juvenil, seja da responsabilização estatuária, existindo, por parte das correntes interpretativas, acusações recíprocas de retrocesso, isto é, de retorno ao paradigma anterior. Em sentido inverso e complementar, observa-se que autores menoristas que continuaram escrevendo após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao apresentarem suas críticas aos postulados da socioeducação, desvelam uma faceta menos prestigiosa da lei vigente.

Além disso, somente a partir da apresentação dos principais aspectos do menorismo, pode-se compreender a construção do estereótipo do “menor”, termo que pode ter sido rechaçado pelos adeptos tanto do Direito Penal Juvenil, quanto da responsabilização estatuária, mas ainda prevalece no senso comum, nas manifestações da grande mídia nacional e, conforme se observou em outra oportunidade,

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O presente capítulo constitui síntese parcial do trabalho de conclusão de curso Entre o modelo menorista e o modelo protetivo: a identidade da atuação jurisdicional na aplicação de medidas socioeducativas no Brasil contemporâneo, defendido por mim perante o Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito, sob orientação da Prof. Dra. Vera Regina Pereira de Andrade, no ano de 2013.

na jurisprudência nacional. Considerando que uma das categorias críticas cujo emprego se pretende verificar na produção acadêmica pós- Estatuto é, justamente, a de estigmatização, compreender os sentidos do “menor” vai ao encontro de nosso objetivo.

É o “menor”, com toda a sua carga estigmatizante, afinal, que fundamenta as propostas de redução da maioridade penal e estas, desde a Constituição Federal de 1988, nunca tinham avançado tanto em sua trajetória rumo à alteração do texto constitucional quanto hoje, o que também explica a relevância do presente capítulo.